Dizer o Direito

quinta-feira, 10 de abril de 2025

A Lei Kandir não autoriza explicitamente a compensação de créditos acumulados de ICMS com débitos de ICMS por substituição tributária (ICMS-ST); portanto, se uma lei estadual proíbe essa prática, ela não pode ser permitida por interpretação diferente

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Alfa Eletro é uma grande rede varejista do setor de eletrodomésticos.

Ela possui diversos estabelecimentos no Estado de São Paulo, incluindo lojas físicas e um centro de distribuição.

A empresa adota o seguinte modelo de operação:

• o Centro de Distribuição adquire produtos de fabricantes e fornecedores (ex: adquire uma geladeira Electrolux);

• o Centro de Distribuição transfere esses produtos para as lojas físicas da rede;

• as lojas físicas realizam a venda ao consumidor final.

 

No Estado de São Paulo, a Alfa Eletro aderiu voluntariamente a um Regime Especial de Substituição Tributária, previsto no Decreto Estadual nº 57.608/2011.

Sob esse regime, o Centro de Distribuição da empresa passou a funcionar como substituto tributário, sendo responsável por recolher antecipadamente o ICMS-ST (ICMS por Substituição Tributária) que seria devido pelas lojas quando da venda ao consumidor final.

 

Problema fiscal

Com o passar do tempo, a Alfa Eletro começou a acumular um significativo saldo credor de ICMS próprio em seu Centro de Distribuição. Isso ocorria porque o Centro de Distribuição tinha direito a créditos de ICMS pelas entradas de mercadorias, mas suas operações de saída para as lojas do mesmo grupo empresarial geravam poucos débitos comparativamente.

Ao mesmo tempo, a empresa tinha que desembolsar valores consideráveis para pagar o ICMS-ST relativo às futuras vendas das lojas.

 

O que a empresa queria?

A Alfa Eletro queria usar os créditos de ICMS que acumulou (ICMS-próprio) para pagar o ICMS-ST (substituição tributária) que ela é obrigada a recolher antecipadamente.

• ICMS-próprio: a empresa paga ICMS ao comprar mercadorias e pode usar esse valor como crédito na sua contabilidade.

• ICMS-ST (Substituição Tributária): é um ICMS pago antes mesmo da venda do produto final, para simplificar a cobrança do imposto.

 

A empresa queria “abater” o imposto que devia (ICMS-ST) com os créditos que já tinha (ICMS-próprio), sem precisar desembolsar dinheiro novo.

 

Legislação estadual não permitia

Ocorre que o art. 49, § 4º, da Lei Estadual nº 6.374/1989, do Estado de São Paulo, proíbe a compensação de ICMS-ST com créditos de ICMS-próprio:

Lei Estadual nº 6.374/1989

Art. 49 (...)

§ 4º O recolhimento do imposto retido por contribuinte, na qualidade de sujeito passivo por substituição, deve ser efetuado independentemente do resultado da apuração relativa às operações ou prestações realizadas pelo estabelecimento no período, conforme disposto em regulamento.

 

No mesmo sentido:

Regulamento do ICMS-SP (Decreto nº 45.490/2000)

Art. 283. O sujeito passivo por substituição efetuará o recolhimento do imposto retido antecipadamente, apurado nos termos desta subseção, até o dia indicado no Anexo IV, independentemente do resultado da apuração relativa às suas operações próprias.

 

Esse dispositivo impede que uma empresa como a Alfa Eletro use créditos acumulados de ICMS-próprio para compensar o ICMS-ST. Isso acontece porque o ICMS-ST deve ser pago antecipadamente, antes mesmo de qualquer cálculo de créditos e débitos.

A justificativa do Estado é que a substituição tributária foi criada para garantir que o imposto seja recolhido antes da venda ao consumidor final. Se empresas pudessem usar créditos de ICMS-próprio para compensar ICMS-ST, isso poderia afetar a arrecadação e o controle fiscal.

 

MS impetrado pela empresa

Diante dessa situação, a Alfa Eletro impetrou mandado de segurança invocando os seguintes argumentos:

1) Princípio da não cumulatividade

A Constituição diz que o ICMS deve ser não cumulativo, ou seja, o que foi pago na etapa anterior deve ser abatido na etapa seguinte.

Para a empresa, isso significa que ela deveria poder usar os créditos acumulados de ICMS para compensar o ICMS-ST.

 

2) O ICMS é um imposto único

A empresa argumentou que o ICMS-ST e o ICMS-próprio são o mesmo imposto e, por isso, não faria sentido impedir a compensação entre eles.

Afinal, ambos são formas diferentes de pagamento do mesmo tributo.

 

3) A Lei Kandir permite compensação

A Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir) regula o ICMS e permite compensação de créditos.

Para a empresa, essa lei não proíbe expressamente a compensação do ICMS-ST com ICMS-próprio, então ela deveria ser permitida.

 

4) A proibição estadual seria ilegal

A empresa alegou que o Estado de São Paulo não poderia proibir essa compensação porque a Constituição e a Lei Kandir garantiriam esse direito.

 

Defesa da Fazenda Pública

O Estado de São Paulo, por sua vez, defendeu que:

1) ICMS e ICMS-ST são regimes diferentes

O ICMS-próprio é calculado com base no faturamento da empresa e pode ser compensado com créditos acumulados.

O ICMS-ST é um pagamento antecipado, feito por um substituto tributário (exemplo: centros de distribuição que vendem para as lojas).

Como os regimes são diferentes, não se pode misturar os créditos de um com os débitos do outro.

 

2) O princípio da não cumulatividade não dá direito automático à compensação

O Fisco alegou que o princípio da não cumulatividade (que evita imposto em cascata) não significa que a empresa pode usar créditos acumulados de qualquer jeito.

A Constituição exige que uma lei complementar regulamente isso, e a Lei Kandir não autoriza expressamente a compensação do ICMS-ST com créditos de ICMS-próprio.

 

3) O STF já decidiu que a não cumulatividade pode ser limitada pela lei

O STF possui decisões afirmando que Estados podem definir regras sobre compensação de créditos de ICMS. Como São Paulo proíbe expressamente essa compensação, a decisão do Estado deve ser respeitada.

 

4) A substituição tributária exige pagamento antecipado

O ICMS-ST é um regime criado para facilitar a arrecadação, garantindo que o imposto seja recolhido antes da venda final.

Se as empresas pudessem compensar créditos de ICMS, isso enfraqueceria a lógica da substituição tributária e poderia prejudicar a arrecadação.

 

Juiz e TJ deram razão à Fazenda Pública

O pedido da empresa foi negado tanto em primeira instância quanto pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o fundamento de que a legislação estadual expressamente veda a compensação nos moldes pretendidos e que, nos termos do art. 170 do Código Tributário Nacional, a compensação tributária depende de autorização legal específica, inexistente no caso em questão.

Ainda inconformada, a empresa interpôs recurso especial insistindo na tese.

 

O STJ concordou com os argumentos da impetrante?

NÃO.

O objeto principal enfrentado pelo STJ foi o seguinte: a Lei Complementar n. 87/1996 (Lei Kandir) permite que o contribuinte use créditos acumulados de ICMS para compensar valores devidos a título de ICMS por Substituição Tributária (ICMS-ST), mesmo quando há uma proibição expressa na legislação estadual?

O STJ entendeu que não.

 

O que diz a Constituição sobre o ICMS:

De acordo com o art. 155, caput, II, e § 2º, I, da Constituição Federal, os Estados e o Distrito Federal têm competência para instituir o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que deve ser não cumulativo. Isso significa que é possível compensar o valor devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.

Além disso, o art. 155, § 2º, XII, b e c, da Constituição Federal estabelece que cabe à lei complementar regular a substituição tributária e o regime de compensação para garantir a não cumulatividade.

Este sistema de créditos pode ser usado para liquidar o tributo por compensação, permitindo abater da quantia devida de ICMS os créditos acumulados nas operações anteriores.

 

O que diz a Lei Kandir:

Na legislação infraconstitucional, o regime de compensação foi disciplinado pela Lei Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), principalmente em seus arts. 19, 20, 24 e 25.

Por outro lado, a substituição tributária progressiva do ICMS segue regras diferentes, como as estabelecidas nos arts. 6º e 8º, caput, II, e § 5º, da LC 87/1996.

 

Diferença entre compensação do ICMS e compensação no CTN

É importante não confundir a compensação usada para apuração do ICMS com a compensação prevista no Código Tributário Nacional (CTN, art. 156, II, e art. 170).

• No primeiro caso, a compensação faz parte do cálculo do imposto, garantindo a não cumulatividade e reduzindo o impacto do tributo ao longo da cadeia produtiva.

• No segundo caso, trata-se de um mecanismo de extinção do crédito tributário, permitindo que um contribuinte utilize um valor pago indevidamente para abater outra dívida tributária, desde que haja reciprocidade entre crédito e débito.

 

O entendimento do STF sobre a não cumulatividade

A Constituição não restringe a aplicação da não cumulatividade apenas ao ICMS sobre operações próprias, o que possibilitaria sua aplicação também nos casos de substituição tributária progressiva - cuja instituição por lei é amparada pelo art. 150, § 7º, da Constituição Federal.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal tradicionalmente adota uma interpretação diferente, validando restrições ao princípio da não cumulatividade quando estabelecidas por lei complementar.

Segundo o STF, o princípio da não cumulatividade do ICMS pode ser moldado pelo legislador infraconstitucional, o que legitima limitações ao creditamento integral e ao uso de créditos acumulados para liquidar o tributo por compensação, procedimento permitido apenas quando há autorização legal expressa.

Embora o amplo alcance da norma constitucional da não cumulatividade impeça restrições indevidas ao aproveitamento de créditos no regime de substituição tributária progressiva do ICMS, mesmo que previstas em lei complementar, a jurisprudência do STF adota uma interpretação diferente, permitindo a compensação apenas quando há autorização legal expressa.

 

Como isso afeta a compensação do ICMS-ST?

Mesmo que, em tese, os Estados e o Distrito Federal possam ampliar as formas de compensação do ICMS-ST, o STF tem validado restrições estabelecidas por lei complementar. No caso específico analisado, a legislação estadual proíbe expressamente a compensação pretendida.

Dessa forma, como a LC 87/1996 não traz autorização expressa para essa compensação e há uma vedação na lei estadual, o entendimento do STF impede que o contribuinte utilize os créditos acumulados para pagar o ICMS-ST.

Assim, havendo proibição expressa em lei estadual, não é possível adotar interpretação diferente.

 

Em suma:

Não se extrai diretamente da Lei Kandir autorização expressa e suficiente a possibilitar a utilização de créditos de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), acumulados na escrita fiscal, para compensação com valores devidos a título de ICMS por substituição tributária (ICMS-ST), razão pela qual, havendo expressa vedação a tal procedimento em lei estadual, inviável a adoção de exegese diversa. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.120.610-SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 4/2/2025 (Info 841).


quarta-feira, 9 de abril de 2025

A indenização do seguro garantia tributário não está vinculada à vigência do contrato principal, mas à vigência da própria apólice, sendo possível sua exigência se o sinistro ocorrer dentro desse período, ainda que sua comprovação ocorra posteriormente

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

A Citrosuco S/A Agroindústria, uma das maiores produtoras de suco de laranja do Brasil, enfrentava um problema comum no setor de exportação: o acúmulo de créditos de ICMS. Como a maior parte de sua produção era destinada ao mercado externo (operação imune a pagamento de ICMS – art. 155, § 2º, X, “a”, da CF/88), a empresa acumulava créditos tributários que dificilmente conseguiria compensar em suas operações no mercado interno.

Para solucionar esse problema, em janeiro de 2016, a Citrosuco aderiu ao “Regime Especial de Apropriação de Crédito Acumulado de ICMS” oferecido pelo Estado de São Paulo. Este regime permitia que a empresa se apropriasse dos créditos acumulados de forma mais ágil e flexível, possibilitando inclusive sua transferência para terceiros.

 

Exigência de seguro garantia

Como condição para a adesão ao Regime Especial, o Estado de São Paulo exigiu que a Citrosuco contratasse um seguro garantia. Esta é uma prática comum da administração tributária para se proteger contra eventuais irregularidades que possam ser detectadas posteriormente.

A Citrosuco, então, contratou apólice de seguro garantia junto a uma seguradora. Esta apólice tinha como finalidade garantir o pagamento de eventuais débitos fiscais caso a empresa descumprisse as regras do regime especial durante sua vigência.

A apólice continha cláusula que estabelecia:

• a vigência do seguro seria igual ao prazo do regime especial;

• o seguro garantiria o pagamento de débitos referentes a infrações ocorridas durante a vigência do regime;

• o seguro se extinguiria quando o contrato principal (regime especial) fosse extinto.

 

Voltando ao caso concreto

Durante o ano de 2016, a Citrosuco operou normalmente sob o regime especial. No entanto, o departamento fiscal da empresa teria praticado algumas irregularidades, como aproveitar créditos em percentual superior ao permitido.

Estas irregularidades ocorreram entre março e dezembro de 2016, período em que o regime especial estava em plena vigência.

 

Revogação do regime especial

Em 15 de fevereiro de 2017, por razões administrativas e estratégicas próprias, a Citrosuco solicitou a revogação do regime especial, o que foi aceito pelo Estado de São Paulo. A partir dessa data, a empresa voltou a operar sob o regime normal de tributação do ICMS.

 

Fiscalização e auto de infração

Em janeiro de 2018, o fisco estadual realizou uma auditoria nas operações da empresa e identificou as irregularidades que teriam sido cometidas durante o ano de 2016.

Em 5 de fevereiro de 2018, foi lavrado o Auto de Infração e Imposição de Multa.

Repare que este auto foi lavrado quase um ano após a revogação do regime especial.

 

Ação de cobrança

Diante do cenário acima, o Estado de São Paulo ajuizou ação de cobrança contra a seguradora, buscando receber a indenização prevista na apólice do seguro garantia.

O Estado argumentou que as infrações ocorreram durante a vigência do regime especial e, portanto, estariam cobertas pelo seguro, independentemente de o auto de infração ter sido lavrado após a revogação do regime.

 

Contestação da seguradora

A seguradora contestou alegando que:

• o seguro garantia era acessório ao contrato principal (regime especial) e, tendo este sido revogado em fevereiro de 2017, o seguro também estaria extinto;

• o auto de infração foi lavrado em fevereiro de 2018, muito depois da revogação do regime especial;

• o crédito tributário estava com exigibilidade suspensa considerando que a Citrosuco interpôs recurso administrativo contra a autuação, não sendo possível exigir o pagamento do seguro antes da decisão definitiva na instância administrativa.

 

O STJ concordou com os argumentos da Fazenda Pública ou da seguradora?

Da Fazenda Pública.

 

O prazo de vigência do seguro garantia se encerrou com a revogação do regime especial do ICMS; o auto de infração foi lavrado posteriormente; mesmo assim, é possível exigir a indenização da seguradora

O contrato de seguro tem natureza de contrato aleatório, justamente pela ausência de equivalência entre as prestações.

O segurado não consegue prever o que receberá em troca de sua contraprestação, já que o segurador assume um risco, elemento essencial desse tipo de contrato.

Assim, o segurador deve ressarcir o dano sofrido pelo segurado, caso o evento incerto previsto no contrato aconteça.

Dessa forma, o seguro garantia não pode ser tratado como um contrato meramente acessório ao regime especial.

A cobrança de indenização de seguro garantia que visa garantir pagamento de crédito tributário não pode estar vinculada estritamente ao prazo de vigência do contrato principal (regime especial). Essa lógica faria presumir que se houver infração no último dia de vigência do regime especial, o fisco não poderia lavrar auto de infração no dia seguinte para receber o prêmio da seguradora.

O cumprimento do contrato de seguro deve respeitar o princípio da boa-fé. Se a infração ocorreu durante a vigência da apólice, o pagamento da indenização deve ser garantido, ainda que o auto de infração tenha sido lavrado posteriormente.

A Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), autarquia reguladora do mercado de seguros, elaborou o Manual de Seguro Garantia, para facilitar a interpretação da Circular n. 662/2022, que estabelece regras e critérios para a elaboração e a comercialização de planos de Seguro Garantia. No citado manual é evidenciado esse mesmo entendimento às fls. 34:

“(...) caso a inadimplência do tomador perante a obrigação garantida tenha ocorrido durante a vigência da apólice, a caracterização do sinistro (sua comprovação) pode ocorrer a qualquer tempo, inclusive fora do prazo de vigência da apólice. Em outras palavras, a caracterização do sinistro fora da vigência da apólice não é motivação para negativa do sinistro. (...)”

 

Desse modo, o Fisco Estadual terá o direito de exigir o pagamento do prêmio do seguro garantia, desde que o sinistro tenha ocorrido durante a vigência da apólice.

 

Possibilidade de cobrança da indenização, mesmo que a exigibilidade do crédito tributário esteja suspensa devido a um recurso administrativo pendente

A existência de um recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário, conforme o art. 151, VI, do CTN. No entanto, isso não significa que a ação de cobrança do seguro deva ser extinta, mas apenas suspensa até a decisão final na esfera administrativa.

Mesmo sendo uma ação de cobrança, deve-se aplicar a jurisprudência pacífica do STJ, que determina que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário impede apenas o andamento do processo, sem extingui-lo:

O parcelamento ou qualquer suspensão de exigibilidade de crédito tributário no curso da ação fiscal obsta tão somente o curso do feito executivo, jamais extinguindo-o.

STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 1.996.377/AL, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 9/11/2022.

 

A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, perfectibilizada após a propositura da ação, ostenta o condão somente de obstar o curso do feito executivo e não de extingui-lo.

STJ. 1ª Seção. REsp 957.509/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/8/2010.

 

Em suma:

A possibilidade de exigir a indenização de seguro garantia, que visa assegurar o pagamento de crédito tributário, não está atrelada estritamente ao prazo de vigência do contrato principal (regime especial de ICMS), mas sim à vigência da própria apólice de seguro garantia, ainda que o auto de infração seja lavrado em data posterior. 

STJ. 2ª Turma. AREsp 2.678.907-SP, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 4/2/2025 (Info 841).


terça-feira, 8 de abril de 2025

É válida a sentença proferida de forma oral e registrada por meio audiovisual, sem a transcrição integral na ata de audiência

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi denunciado pelo Ministério Público pela prática do crime de estupro.

Foi realizada audiência de instrução e julgamento na qual foram ouvidas as testemunhas e realizado o interrogatório.

Depois das oitivas, o Promotor de Justiça e o advogado ofereceram alegações finais orais.

Todos os atos da audiência foram gravados em meio audiovisual.

 

O que foi feito acima é permitido? Os atos de instrução podem ser registrados por meio audiovisual?

SIM. O CPP foi alterado pela Lei nº 11.719/2008 com o objetivo de permitir que todos os atos de instrução sejam feitos de forma oral, inclusive os debates entre a acusação e a defesa. Confira:

Art. 403. Não havendo requerimento de diligências, ou sendo indeferido, serão oferecidas alegações finais orais por 20 (vinte) minutos, respectivamente, pela acusação e pela defesa, prorrogáveis por mais 10 (dez), proferindo o juiz, a seguir, sentença. (Redação dada pela Lei nº 11.719/2008)

(...)

§ 3º O juiz poderá, considerada a complexidade do caso ou o número de acusados, conceder às partes o prazo de 5 (cinco) dias sucessivamente para a apresentação de memoriais. Nesse caso, terá o prazo de 10 (dez) dias para proferir a sentença. (Incluído pela Lei nº 11.719/2008)

 

Art. 405. Do ocorrido em audiência será lavrado termo em livro próprio, assinado pelo juiz e pelas partes, contendo breve resumo dos fatos relevantes nela ocorridos. (Redação dada pela Lei nº 11.719/2008)

§ 1º Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações. (Incluído pela Lei nº 11.719/2008)

§ 2º No caso de registro por meio audiovisual, será encaminhado às partes cópia do registro original, sem necessidade de transcrição. (Incluído pela Lei nº 11.719/2008)

 

As oitivas das testemunhas, vítima e réu e as alegações finais do MP e da defesa, se forem feitas oralmente, precisam ser transcritas? Há necessidade de degravação?

NÃO.

Não há necessidade de degravação no caso de depoimentos colhidos por gravação audiovisual, cabendo ao interessado promovê-la, a suas expensas e com sua estrutura, se assim o desejar, ficando vedado requerer ou determinar tal providência ao Juízo de primeiro grau.

STJ. 5ª Turma. HC 339.357/RS, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 08/03/2016.

 

O registro audiovisual de depoimentos colhidos em audiência dispensa sua degravação, salvo comprovada demonstração de sua necessidade.

STJ. 6ª Turma. RMS 36.625/MT, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 30/06/2016.

 

E a sentença? Imagine que, após os debates, o juiz proferiu a sentença, na própria audiência, de forma também oral. Assim, o magistrado, falando ao microfone e sendo filmado, analisou as provas produzidas e concluiu pela condenação do réu. Na ata da audiência, o juiz transcreveu apenas a dosimetria da pena e o dispositivo. Essa sentença é válida?

SIM.

A modernização do processo penal brasileiro trouxe avanços tecnológicos significativos na realização dos atos processuais, destacando-se a possibilidade de registro audiovisual das audiências e sentenças. Essa evolução tem amparo legal no artigo 405, § 2º, do Código de Processo Penal, alterado pela Lei nº 11.719/2008, que consagra os princípios da celeridade, simplificação e economia processual, além do princípio da oralidade.

No que se refere às sentenças criminais proferidas em audiência e registradas em meio audiovisual, consolidou-se o entendimento de que a ausência de transcrição integral do conteúdo não configura nulidade processual. Esse posicionamento se fundamenta na premissa de que o registro audiovisual possui valor probante igual ou até superior ao documento escrito, pois preserva não apenas o teor verbal da decisão, mas também elementos não verbais relevantes, como entonação e expressões do magistrado.

A exigência de transcrição integral da sentença audiovisual representaria um retrocesso, incompatível com os avanços tecnológicos aplicados ao processo penal. Tal exigência desconsideraria o valor do registro em áudio e vídeo da própria manifestação judicial e imporia uma valorização excessiva da forma escrita, em detrimento do conteúdo efetivamente gravado em meio digital. Essa interpretação está alinhada aos princípios da instrumentalidade das formas e da inexistência de nulidade sem demonstração de prejuízo.

A jurisprudência tem afastado a alegação de nulidade processual pela ausência de transcrição completa da sentença quando esta é armazenada em meio audiovisual e disponibilizada às partes. Desde que a dosimetria da pena e o dispositivo da decisão sejam registrados por escrito, permitindo a plena compreensão do julgamento e a interposição de eventuais recursos, não há comprometimento do direito à ampla defesa.

Dessa forma, o uso do registro audiovisual não viola os direitos do acusado. Pelo contrário, reforça a fidedignidade do ato judicial, reduzindo o risco de divergências interpretativas. Além disso, a adoção desse meio está em sintonia com a modernização dos instrumentos de documentação processual e com o princípio da oralidade, evitando formalismos excessivos que possam retardar a prestação jurisdicional. A exigência de degravação integral, além de onerar desnecessariamente o sistema judicial, configuraria um retrocesso diante das tecnologias disponíveis.

Assim, a jurisprudência consolidada pela Terceira Seção do STJ reafirma que o registro audiovisual é suficiente para garantir a validade e a segurança das decisões judiciais, sendo desnecessária sua transcrição integral.

 

Em suma:

É válida a sentença proferida de forma oral e registrada por meio audiovisual, sem a transcrição integral na ata de audiência. 

STJ. 5ª Turma. REsp 2.009.368-BA, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em 11/2/2025 (Info 841).

 

No mesmo sentido:

A ausência de degravação completa da sentença não prejudica o contraditório ou a segurança do registro nos autos, do mesmo modo que igualmente ocorre com a prova oral. 

STJ. 6ª Turma. Processo em segredo de justiça, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 3/9/2024 (Info 24 - Edição Extraordinária).

 

DOD Teste: revisão em perguntas

Os atos de instrução podem ser registrados por meio audiovisual sem necessidade de transcrição?

Sim. O art. 405, §§ 1º e 2º, do Código de Processo Penal, alterado pela Lei nº 11.719/2008, permite o registro audiovisual dos depoimentos de investigados, testemunhas e vítimas, dispensando a transcrição, salvo se demonstrada necessidade.

 

A ausência de degravação integral das alegações finais orais pode gerar nulidade do processo?

Não. O STJ entende que não há necessidade de degravação, cabendo ao interessado promovê-la, se desejar, a suas expensas. O registro audiovisual garante a fidelidade dos debates processuais, não comprometendo o contraditório e a ampla defesa.

 

O juiz pode proferir sentença oral na audiência e registrá-la apenas por meio audiovisual?

Sim. A legislação permite que a sentença seja proferida oralmente e registrada por meio audiovisual, sem necessidade de transcrição integral, conforme entendimento consolidado pelo STJ.

 

Quais partes da sentença devem obrigatoriamente constar na ata da audiência?

A ata da audiência deve conter, no mínimo, a dosimetria da pena e o dispositivo da sentença, para garantir a compreensão da decisão e viabilizar a interposição de eventuais recursos.

 

A ausência de transcrição integral da sentença pode gerar nulidade processual?

Não. O STJ firmou o entendimento de que o registro audiovisual da sentença possui valor probante e dispensa a degravação integral, salvo demonstração de prejuízo concreto à defesa.

 

Por que o STJ considera o registro audiovisual da sentença uma evolução processual?

Porque ele assegura maior fidedignidade ao ato judicial, preservando não apenas o teor verbal da decisão, mas também a entonação e expressões do magistrado, além de evitar formalismos excessivos que retardem o processo.

 

A defesa pode solicitar a degravação da sentença oral registrada em meio audiovisual?

Sim, mas deve promovê-la às suas expensas e com sua estrutura. Não cabe ao juízo de primeiro grau providenciar essa transcrição.

 

Qual princípio processual penal embasa a dispensa da degravação da sentença oral registrada por vídeo?

O princípio da instrumentalidade das formas, que determina que a nulidade só pode ser declarada se houver demonstração de prejuízo concreto à parte envolvida.

 

Como a jurisprudência do STJ se posiciona sobre a validade da sentença registrada em vídeo sem transcrição integral?

O STJ entende que a sentença registrada em meio audiovisual é válida, desde que a dosimetria da pena e o dispositivo sejam transcritos na ata da audiência, garantindo a segurança jurídica do ato.

 

Qual a principal vantagem da adoção do registro audiovisual no processo penal?

A celeridade processual, evitando a necessidade de transcrição integral de atos que podem ser fielmente armazenados em vídeo, reduzindo custos e garantindo maior eficiência na prestação jurisdicional.


segunda-feira, 7 de abril de 2025

Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJSE

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível a Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJSE.

Bons estudos.



A mera observação de venda de drogas na rua, próxima à residência, não justifica a busca domiciliar sem mandado ou consentimento legalmente comprovado do morador

Imagine a seguinte situação hipotética:

Por volta das 2h da madrugada, policiais militares realizavam patrulhamento ostensivo em uma área conhecida pelo intenso tráfico de drogas.

Durante esse patrulhamento, a guarnição decidiu fazer uma campana em frente a uma residência que, segundo informações prévias, seria um ponto de venda de entorpecentes.

Os policiais permaneceram em observação por aproximadamente 20 minutos.

Nesse período, os agentes visualizaram um adolescente, depois identificado como Lucas, de 17 anos, realizando o que parecia ser uma transação de venda de drogas com um homem, posteriormente identificado como João, na calçada em frente à casa.

Após testemunharem essa movimentação, os policiais abordaram João e Lucas, na via pública, encontrando com eles uma pequena quantidade de substância semelhante a cocaína. Ambos informaram que haviam acabado de adquirir a entorpecente de Regina, moradora da residência.

Sem solicitar um mandado judicial e sem obter autorização expressa e documentada da moradora, os policiais adentraram imediatamente na residência de Regina.

Durante a busca domiciliar, encontraram e apreenderam quantidades significativas de cocaína e crack, uma balança de precisão, materiais para embalagem, anotações relacionadas ao comércio de drogas e quatro aparelhos celulares.

 

Prisão e denúncia

Regina foi presa em flagrante e posteriormente denunciada pelo Ministério Público pelo crime de tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006).

A denúncia foi recebida.

Em seguida, a defesa impetrou habeas corpus argumentando que a busca domiciliar foi ilegal, pois ocorreu sem mandado judicial, sem fundada suspeita e sem autorização documentada da moradora.

 

A questão chegou até o STJ. O Tribunal concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

Não havia uma justificativa suficientemente forte para que os policiais entrassem na casa da acusada sem um mandado judicial ou autorização da moradora.

Os policiais apenas viram a negociação ocorrendo na rua e não dentro da residência. Mesmo assim, decidiram entrar na casa sem mandado e sem apresentar provas de que havia uma razão urgente para essa invasão.

Além disso, não ficou comprovado que a dona da casa permitiu a entrada dos policiais de forma voluntária e legal. A lei exige que, nesses casos, o Estado comprove que houve autorização para a entrada, de preferência com uma declaração assinada pelo morador, testemunhas e, se possível, gravações em áudio ou vídeo.

Logo, a busca e apreensão realizada dessa forma foi ilegal. Consequentemente, todas as provas obtidas dentro da residência devem ser anuladas, pois foram adquiridas de maneira irregular.

 

Em suma:

A visualização da comercialização do entorpecente na via pública pelos policiais, nas proximidades da residência do acusado, não configura fundada suspeita apta a autorizar a busca domiciliar, notadamente quando inexiste comprovação da legalidade e voluntariedade do consentimento morador para o ingresso no imóvel. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 907.770-RS, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 4/2/2025 (Info 841).

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Centro de Seleção e de Promoção de Eventos UnB - CESPE CEBRASPE 

Prova: CESPE/CEBRASPE - TJ PE - Titular de Serviços Notariais e Registrais - Provimento - 2024 

Assinale a opção correta no que se refere ao entendimento do STJ acerca da busca e apreensão domiciliar e pessoal.

É legítima a realização da busca e apreensão pessoal, sem mandado judicial, amparada na fundada suspeita (justa causa) de que o agente esteja na posse de objetos que constituam corpo de delito, como, por exemplo, no caso de o agente dispensar algo no chão ao notar a aproximação da polícia militar em patrulhamento de rotina. (Correto)


domingo, 6 de abril de 2025

É constitucional o exercício do policiamento ostensivo e comunitário pela guarda municipal no âmbito local correspondente, desde que respeitadas as atribuições dos outros entes federativos

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Em 08 de julho de 2004, foi promulgada a Lei municipal nº 13.866/2004, de São Paulo, que atribuiu à Guarda Civil Metropolitana atividades de policiamento preventivo e comunitário.

Veja a redação do inciso I do art. 1º da Lei:

Art. 1º A Guarda Civil Metropolitana de São Paulo, principal órgão de execução da política municipal de segurança urbana, de natureza permanente, uniformizada, armada, baseada na hierarquia e disciplina, tem as seguintes atribuições:

I - exercer, no âmbito do Município de São Paulo, o policiamento preventivo e comunitário, promovendo a mediação de conflitos e o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos; (redação original - impugnada)

 

I - exercer, no âmbito do Município de São Paulo, as ações de segurança urbana, em conformidade com as diretrizes e programas estabelecidos pela Secretaria Municipal de Segurança Urbana, promovendo o respeito aos direitos humanos; (Redação dada pela Lei nº 14879/2009 )

(...)

 

O Procurador-Geral de Justiça de São Paulo ingressou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI), perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, contra o art. 1º, I, da referida Lei municipal.

O autor sustentou que as atribuições previstas nesse inciso ultrapassavam os limites constitucionais impostos ao papel das guardas municipais.

Segundo o PGJ, as funções conferidas pela norma municipal se confundiam com atividades de segurança pública, cuja competência é atribuída às polícias civil e militar, nos termos do art. 144 da Constituição Federal e do art. 147 da Constituição do Estado de São Paulo.

O Tribunal de Justiça julgou procedente o pedido e declarou a inconstitucionalidade do art. 1º, inciso I, da Lei nº 13.866/2004.

A Câmara Municipal de São Paulo interpôs recurso extraordinário contra o acórdão defendendo a constitucionalidade da lei.

 

O que decidiu o STF? O art. 1º, I, acima transcrito, é constitucional?

SIM. O STF, por maioria, ao apreciar o Tema 656 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário para declarar a constitucionalidade do art. 1º, I, da Lei nº 13.866/2004 do Município de São Paulo/SP, tanto em sua redação original como também na redação dada pela Lei paulista nº 14.879/2009.

 

O que é a guarda municipal?

Guarda municipal é uma instituição de caráter civil, uniformizada e armada, vinculada ao Poder Executivo Municipal, formada por servidores públicos efetivos, concursados, e que tem por função a proteção dos bens, serviços e instalações do Município.

Veja o que diz a Lei:

Art. 2º Incumbe às guardas municipais, instituições de caráter civil, uniformizadas e armadas conforme previsto em lei, a função de proteção municipal preventiva, ressalvadas as competências da União, dos Estados e do Distrito Federal.

 

A guarda municipal mereceu previsão expressa na CF/88:

Art. 144 (...)

§ 8º Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.

 

Lei disciplinando as guardas municipais

Repare que o § 8º afirma que as guardas municipais devem ser disciplinadas por meio de lei.

A Lei nº 13.022/2014 foi editada com esse propósito e se constitui em norma geral, aplicável a todas as guardas municipais.

Vale ressaltar, no entanto, que cada Município deverá editar a sua própria lei regulando a respectiva guarda municipal, sempre respeitando as disposições da Lei nº 13.022/2014.

 

Competências previstas para as guardas municipais

As guardas municipais sempre tiveram um papel mais relacionado com a proteção do patrimônio físico dos Municípios (prédios públicos, escolas, parques etc.). Isso se dava em virtude da interpretação restritiva do § 8º do art. 144 da CF/88: as guardas municipais são destinadas à proteção dos “bens, serviços e instalações” dos Municípios.

A Lei nº 13.022/2014 ampliou essa interpretação prevendo que as guardas municipais possam colaborar de forma mais intensa com a segurança pública nas cidades, atuando em parceria com as Polícias Civil, Militar e Federal.

 

ADPF 995

A Associação Nacional dos Guardas Municipais (ANGM) ingressou com ADPF por meio da qual pediu que o STF declarasse expressamente que as Guardas Municipais são órgãos de segurança pública.

Para a autora, o não reconhecimento dos Guardas Municipais como agentes da Segurança Pública pode suscitar o requerimento, por parte de vários advogados do Brasil, de nulidade da prisão de vários indivíduos detidos por Guardas Municipais.

O STF julgou procedente o pedido para, nos termos do art. 144, § 8º, da CF/88, conceder interpretação conforme a Constituição ao art. 4º da Lei nº 13.022/2014 e ao art. 9º da Lei nº 13.675/2018, de modo a declarar que:

• as guardas municipais são reconhecidamente órgãos de segurança pública

• são inconstitucionais todas as interpretações judiciais que excluem as guardas municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.

 

Veja abaixo um resumo do que foi decidido:

É necessária a união de esforços para o combate à criminalidade organizada e violenta, não se justificando, nos dias atuais da realidade brasileira, a atuação separada e estanque de cada uma das Polícias Federal, Civis e Militares e das Guardas Municipais. Isso porque todas fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública.

Essa nova perspectiva de atuação na área de segurança pública fez com que o STF, no julgamento do RE 846.854/SP, reconhecesse que as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF/88), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º).

O reconhecimento dessa posição institucional de órgão de segurança pública autorizou o Congresso Nacional a editar a Lei nº 13.675/2018, na qual as Guardas Municipais são inseridas como integrantes operacionais do Sistema Único de Segurança Pública (art. 9º, § 1º, VII).

Desse modo, de acordo com a Constituição, a lei e a jurisprudência do STF, a Guarda Municipal é órgão de segurança pública, integrante do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

STF. Plenário. ADPF 995/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 28/8/2023 (Info 1105).

 

O entendimento acima foi reforçado pelo STF neste Tema 656

A atuação do legislador municipal ao definir as atribuições das guardas municipais — cuja função é proteger bens, serviços e instalações do município — deve levar em conta as necessidades locais e respeitar a finalidade constitucional de promoção da segurança pública dentro da sua competência, em cooperação com os demais órgãos de segurança.

O poder normativo do município precisa estar em harmonia com a divisão de competências prevista na Constituição. Assim, as leis municipais que criam e regulamentam suas guardas devem considerar as particularidades locais (o que limita o alcance do legislador municipal) e seguir a finalidade constitucional de segurança pública, sempre respeitando as normas gerais aprovadas pelo Congresso Nacional (Constituição Federal de 1988, art. 144, § 8º).

A Constituição não determinou de forma rígida como devem atuar as guardas municipais. Ela apenas estabeleceu diretrizes básicas, deixando a tarefa de regulamentar os detalhes para o legislador municipal.

Nesse sentido, o Estatuto Geral das Guardas Municipais (Lei nº 13.022/2014) foi considerado constitucional pelo STF.

Esse estatuto ajuda a definir com mais clareza o espaço normativo que a Constituição deu aos municípios, respeitando o pacto federativo. Além disso, reforça o caráter colaborativo das ações na área da segurança pública, que deve ser exercida de forma conjunta e harmônica entre os diferentes entes federativos.

Assim, as guardas municipais podem atuar na segurança urbana, e a realização de policiamento ostensivo e comunitário faz parte do modelo de federalismo de cooperação voltado à promoção da segurança pública — que é um dever do Estado e um direito e responsabilidade de todos.

Além disso, o policiamento ostensivo não é uma atividade exclusiva da polícia militar. As guardas municipais fazem parte do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), conforme previsto na Lei nº 13.675/2018.

De acordo com o art. 144 da Constituição Federal de 1988, as guardas municipais participam diretamente da segurança pública, no que se refere às questões ligadas ao interesse do município.

 

Controle externo do MP

Vale ressaltar que as guardas municipais estão sujeitas à supervisão do Ministério Público, para garantir que suas ações sejam realizadas de acordo com a lei. Essa atribuição, que está prevista no artigo 129, VII, da Constituição, reforça o papel do Ministério Público para a fiscalização de eventuais abusos pelas forças de segurança pública:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior;

 

Em suma:

A atuação legislativa local para disciplinar as atribuições das guardas municipais destinadas à proteção de bens, serviços e instalações do município deve estar adequada às especificidades locais e à finalidade constitucional de promoção da segurança pública no âmbito da respectiva competência e em cooperação com os demais órgãos de segurança.

É constitucional — e não afronta o pacto federativo — o exercício do policiamento ostensivo e comunitário pela guarda municipal no âmbito local correspondente, desde que respeitadas as atribuições dos outros entes federativos.

STF. Plenário. RE 608.588/SP , Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/02/2025 (Repercussão geral – Tema 656) (Info 166).

 

Tese fixada pelo STF:

É constitucional, no âmbito dos municípios, o exercício de ações de segurança urbana pelas Guardas Municipais, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal e excluída qualquer atividade de polícia judiciária, sendo submetidas ao controle externo da atividade policial pelo Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso VII, da CF. Conforme o art. 144, § 8º, da Constituição Federal, as leis municipais devem observar as normas gerais fixadas pelo Congresso Nacional.

STF. Plenário. RE 608.588/SP , Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 20/02/2025 (Repercussão geral – Tema 656) (Info 166).

 

Com base nesses e em outros entendimentos, o Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 656 da repercussão geral, (i) deu provimento ao recurso extraordinário para declarar a constitucionalidade do art. 1º, I, da Lei nº 13.866/2004 do Município de São Paulo/SP, em sua redação original e naquela dada pela Lei paulista nº 14.879/2009 ; e (ii) fixou a tese anteriormente citada.

 

DOD Teste: revisão em perguntas

De acordo com a Constituição Federal, qual é a função institucional das guardas municipais?

Proteger os bens, serviços e instalações dos Municípios, conforme dispuser a lei municipal, observadas as normas gerais estabelecidas em lei federal (art. 144, § 8º, da CF/88).

 

A atuação normativa dos municípios em relação às guardas municipais está sujeita a quais limites?

Deve respeitar as normas gerais aprovadas pelo Congresso Nacional, considerar as peculiaridades locais e observar a finalidade constitucional da segurança pública.

 

O que decidiu o STF na ADPF 995 quanto à natureza jurídica das guardas municipais?

O STF reconheceu expressamente que as guardas municipais são órgãos de segurança pública e declarou inconstitucional qualquer interpretação que as exclua do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP).

 

A guarda municipal pode exercer atividade de policiamento ostensivo e comunitário?

Sim. Segundo a jurisprudência do STF, essa atuação é compatível com a Constituição, desde que não haja usurpação das atribuições das polícias estaduais e federais.

 

Quais atividades podem ser exercidas pelas guardas municipais conforme a tese fixada pelo STF no Tema 656?

Conforme a tese fixada pelo STF no Tema 656, as guardas municipais podem exercer ações de segurança urbana, inclusive policiamento ostensivo e comunitário, respeitadas as atribuições dos demais órgãos de segurança pública e excluída qualquer atividade de polícia judiciária.

 

A tese firmada pelo STF no Tema 656 permite às guardas municipais exercerem funções de polícia judiciária?

Não. A atuação das guardas municipais não pode incluir funções de polícia judiciária, que são exclusivas das polícias civis, conforme fixado na tese de repercussão geral.

 

Qual órgão é responsável pelo controle externo da atividade das guardas municipais e qual dispositivo constitucional fundamenta essa atribuição?

O Ministério Público é responsável pelo controle externo da atividade das guardas municipais, com fundamento no art. 129, inciso VII, da Constituição Federal, que estabelece como função institucional do MP "exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar".

 

Qual a relação entre o entendimento do STF no Tema 656 e o federalismo cooperativo em matéria de segurança pública?

O STF entendeu que a atuação das guardas municipais na segurança urbana, realizando policiamento ostensivo e comunitário, se insere no modelo de federalismo de cooperação voltado à promoção da segurança pública, permitindo uma atuação conjunta e harmônica entre os diferentes entes federativos, respeitando suas respectivas competências.


A suspensão do processo e do prazo prescricional, na forma do art. 366 do CPP, bem como o restabelecimento da tramitação, não é automática, exigindo decisão judicial

RELEMBRANDO A CITAÇÃO POR EDITAL E O ART. 366 DO CPP

O que é a citação no processo penal?

Citação é o ato por meio do qual o Poder Judiciário...

• comunica ao indivíduo que foi recebida uma denúncia ou queixa-crime ajuizada contra ele; e

• convoca o acusado para ingressar no processo e se defender.

 

O que acontece se não houver a citação válida do réu?

O processo será nulo desde o seu início, nos termos do art. 564, III, “e”, do CPP, havendo, neste caso, violação ao art. 5º, LV, da CF/88 e ao artigo 8º, 2, “b”, da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Vale ressaltar, no entanto, que a falta ou a nulidade da citação estará sanada, “desde que o interessado compareça, antes de o ato consumar-se, embora declare que o faz para o único fim de argui-la. O juiz ordenará, todavia, a suspensão ou o adiamento do ato, quando reconhecer que a irregularidade poderá prejudicar direito da parte” (art. 570 do CPP).

 

Espécies de citação

Existem duas espécies de citação:

1) Citação real (pessoal)

2) Citação ficta (presumida)

 

Citação REAL (pessoal)

É aquela na qual o acusado é citado pessoalmente, ou seja, ele mesmo recebe a comunicação.

A citação pessoal pode ser dividida em subespécies:

a) Citação por mandado (art. 351);

b) Citação por carta precatória (art. 353);

c) Citação do militar (art. 358);

d) Citação do funcionário público (art. 359);

e) Citação do acusado que estiver preso (art. 360);

f) Citação do acusado no estrangeiro (art. 368);

g) Citação em legações estrangeiras (art. 369).

 

Citação FICTA (presumida)

Ocorre quando o acusado não é encontrado para ser comunicado pessoalmente da instauração do processo. Apesar disso, se forem cumpridos determinados requisitos legais, a lei presume que ele soube da existência do processo e, por isso, autoriza que a marcha processual siga em frente.

Existem duas subespécies de citação ficta:

a) Citação por edital (art. 361);

b) Citação por hora certa (art. 362).

 

Formas de citação que não são admitidas no processo penal

• Citação por via postal (correios);

• Citação eletrônica;

• Citação por e-mail;

• Citação por telefone.

 

Em que hipótese o CPP autoriza que o denunciado seja citado por edital?

Será realizada a citação por edital quando o acusado não for encontrado (§ 1º do art. 363).

Se o acusado é citado por edital, mesmo assim o processo continua normalmente?

O art. 366 do CPP estabelece que:

- se o acusado for citado por edital e

- não comparecer ao processo nem constituir advogado

- o processo e o curso da prescrição ficarão suspensos.

 

Se o réu comparecer ao processo ou constituir advogado, o processo e o prazo prescricional voltam a correr normalmente. O objetivo do art. 366 é garantir que o acusado que não foi pessoalmente citado não seja julgado à revelia.

 

Súmula 415-STJ: O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada.

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO

Imagine a seguinte situação hipotética:

No dia 23/09/2008, João, na época com 18 anos, foi denunciado pelo Ministério Público por homicídio qualificado, na vara criminal de Foz do Iguaçu (PR).

Em 16/10/2008, a denúncia foi recebida pelo juízo.

João fugiu da cidade e não foi encontrado para ser citado pessoalmente.

Em 20/10/2008, João foi preso em flagrante em Maringá (PR), por outro crime (roubo). Essa informação, contudo, não chegou ao conhecimento do juízo de Foz do Iguaçu.

Como João não foi encontrado para ser citado pessoalmente e o juízo de Foz do Iguaçu não sabia que ele estava preso em outra cidade, o magistrado determinou a citação do réu por edital.

Em 29/04/2009, é publicado edital de citação do réu, mesmo ele estando preso em Maringá (PR).

Em 03/02/2011, o réu foi citado pessoalmente, por meio de carta precatória, depois que se descobriu que ele estava preso em Maringá (PR).

Em 01/06/2017, foi publicada decisão de pronúncia.

Em 21/09/2022, o réu foi julgado pelo Tribunal do Júri e condenado a 12 anos de reclusão.

O condenado interpôs apelação.

Em 07/05/2024, a defesa ingressou com pedido de extinção da punibilidade do réu devido à prescrição da pena em concreto.

 

O que a defesa alegou no habeas corpus?

A defesa sustentou que houve a prescrição pelas seguintes razões:

• a pena imposta ao paciente foi de 12 anos de reclusão;

• considerando que o réu era menor de 21 anos na data do crime (o que reduz o prazo prescricional pela metade), o período prescricional aplicável seria de 8 anos;

• o tempo decorrido entre o recebimento da denúncia (16/10/2008) e a decisão de pronúncia (01/06/2017) ultrapassa esse prazo, configurando a prescrição da pretensão punitiva na modalidade retroativa.

• a defesa argumentou que a citação por edital foi irregular considerando que João estava preso na mesma unidade federativa à época;

• de acordo com a Súmula 351 do STF, “é nula a citação por edital de réu preso na mesma unidade da Federação em que o juiz exerce sua jurisdição”.

• o art. 366 do CPP prevê que, no caso de citação por edital, pode haver suspensão do curso do processo e do prazo prescricional. No entanto, essa suspensão não é automática, sendo necessária uma decisão judicial expressa, o que não ocorreu no caso. Sem essa determinação expressa, a prescrição seguiu seu curso normal e deve ser reconhecida.

 

O Ministério Público, por sua vez, contra argumentou afirmando que a suspensão do prazo prescricional é automática (ope legis), decorrente da própria lei, e não dependeria de uma decisão judicial formal. Logo, para o MP, o prazo prescricional ficou suspenso até 03/02/2011, data em que houve a citação pessoal.

 

Os argumentos da defesa foram acolhidos pelo STJ?

SIM.

No caso em questão, o Ministério Público sustentou que o prazo de prescrição estava automaticamente suspenso após a citação por edital do réu, permanecendo assim até que ele fosse encontrado e citado pessoalmente.

No entanto, este entendimento está equivocado.

Conforme o art. 366 do CPP, quando um réu é citado por edital e não comparece, o juiz pode suspender tanto o processo quanto o prazo prescricional, mas isto não acontece de forma automática. É necessária uma decisão judicial expressa determinando essa suspensão.

Vamos entender como isso impacta o caso:

• o réu foi condenado a 12 anos de reclusão por homicídio qualificado;

• como ele era menor de 21 anos quando cometeu o crime, o prazo prescricional é reduzido pela metade (artigo 115 do Código Penal);

• para uma pena de 12 anos, o prazo normal de prescrição seria de 16 anos (art. 109, inciso II do Código Penal);

• com a redução pela metade devido à menoridade, o prazo prescricional passa a ser de 8 anos;

• a denúncia foi recebida em 14/10/2008 (marco interruptivo da prescrição);

• a pronúncia só ocorreu em 01/06/2017, quase 9 anos depois;

• como não houve uma decisão judicial formalmente suspendendo o prazo prescricional, este continuou correndo normalmente.

 

Resultado: o prazo de 8 anos se esgotou antes da pronúncia, configurando a prescrição da pretensão punitiva estatal.

 

É importante destacar que a suspensão da prescrição ocorre por determinação da lei (ope legis), ou seja, ela independe da vontade do juiz. No entanto, isso não significa que a decisão judicial seja dispensável.

O juiz não precisa justificar detalhadamente por que está suspendendo o prazo prescricional, pois essa suspensão já está prevista em lei. No entanto, ele precisa formalizar essa suspensão por meio de uma decisão, pois, sem essa formalização, não é possível garantir a segurança jurídica do processo. A ausência dessa decisão poderia gerar incertezas quanto à contagem do prazo prescricional e comprometer princípios constitucionais fundamentais.

 

Em suma:

A suspensão do processo e do prazo prescricional, na forma do art. 366 do CPP, bem como o restabelecimento da tramitação, não é automática, exigindo decisão judicial. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 957.112-PR, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 11/2/2025 (Info 841).

 

Obs: como o STJ reconheceu a prescrição, ficou prejudicada a análise da irregularidade da citação por edital (Súmula 351 STF).

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual Paulista - VUNESP 

Prova: VUNESP - TJ RJ - Juiz Substituto - 2025 

De acordo com a norma do artigo 366 do CPP, se o acusado, citado por edital, não comparecer nem constituir advogado, decorrem duas consequências legais. O juiz tem, ainda, a prerrogativa de determinar duas providências. 

Nesse contexto, é correto afirmar que são consequências legais: a suspensão do processo e a interrupção do prazo prescricional. (Incorreto)


Dizer o Direito!