terça-feira, 29 de abril de 2025
Quando o próprio consumidor fornece voluntariamente cartão e senha ao estelionatário, sem evidência de falha do banco, configura-se culpa exclusiva do consumidor, afastando a responsabilidade da instituição financeira
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina estava em tratamento
contra um câncer.
Ela havia terminado uma sessão de
quimioterapia há poucos dias e estava em casa repousando.
Foi então que recebeu a ligação
de um número que exibia o nome do banco em seu identificador de chamadas.
A pessoa do outro lado dizia ser
da “central de segurança do banco” e informava que havia uma tentativa de
compra suspeita no cartão de crédito dela.
Para resolver, disseram que ela
deveria ligar para o número no verso do cartão.
“Senhora Regina,
como medida preventiva, a senhora precisa entrar em contato imediatamente com
nossa central de relacionamento. Por favor, desligue esta chamada e ligue para
o número que consta no verso do seu cartão”, orientou o suposto funcionário.
Regina seguiu a orientação e
pensou ter ligado para o número no verso do cartão. Ocorre que, apesar de ela
não perceber, continuava conectada à ligação anterior. Trata-se de uma técnica
que os golpistas usam e que é denominada de “spoofing” ou “golpe da linha
cruzada”.
Assim, a falsa central continuava
do outro lado, simulando ser o banco.
Durante a ligação, solicitaram
que ela instalasse um aplicativo (AnyDesk) para “verificar remotamente o acesso
indevido”. Com medo e confusa pelo tratamento recente, ela seguiu as
instruções, instalou o programa e permitiu o acesso remoto ao computador.
Uma vez instalado o AnyDesk, os
golpistas assumem o controle do dispositivo da vítima (celular ou computador).
Eles conseguem:
• ver senhas
digitadas;
• acessar
aplicativos bancários;
• fazer
compras ou transferências com a senha armazenada;
• modificar
configurações;
• instalar
malwares para capturar mais dados.
Em seguida, a falsa central do
banco pediu que ela entregasse seu cartão para um motoboy da “área de segurança”
que iria buscar o cartão em sua casa para “análise técnica”.
Ela concordou e o cartão foi
entregue. Com o cartão e a senha obtida anteriormente por meio do AnyDesk, os
estelionatários realizaram uma compra de R$ 16.899,00, em uma loja física,
parcelada em 12 vezes.
Regina, ao descobrir o golpe,
registrou boletim de ocorrência e ligou para o banco, mas não conseguiu
cancelar a operação.
O banco se recusou a restituir o
valor, alegando culpa exclusiva da consumidora, pois ela entregou o cartão e a
senha de forma voluntária.
Ação de indenização
Regina ingressou com ação
pedindo:
• declaração da inexistência do
débito;
• devolução dos valores cobrados;
• indenização por dano moral.
Ela argumentou que sua situação
de saúde a tornava especialmente vulnerável e que o banco falhou em seu dever
de segurança ao não detectar uma operação atípica e de alto valor que destoava
completamente de seu perfil de consumo.
Após tramitar pelas
instâncias ordinárias, o caso chegou até o STJ. O Tribunal concordou com os
pedidos da autora? Foi reconhecida a responsabilidade do banco?
NÃO. Em um caso semelhante a
esse, a 3ª Turma do STJ, por maioria, não concordou com os argumentos da
autora.
Vejamos abaixo um resumo das
posições que se formaram nos debates:
MINISTROS QUE VOTARAM PELO
PROVIMENTO DO RECURSO (A FAVOR DA CONSUMIDORA):
Ministra Nancy Andrighi
(Relatora original - voto vencido):
• Hipervulnerabilidade: argumentou
que a consumidora, por estar em tratamento de câncer (quimioterapia) na época
do golpe, encontrava-se em estado de hipervulnerabilidade, com possível redução
da capacidade cognitiva. Esse estado poderia, excepcionalmente, afastar a
excludente de responsabilidade por “culpa exclusiva do consumidor”.
• Falha no dever de segurança do
banco (nexo causal): a responsabilidade do banco é objetiva (Súmula 479/STJ e
Tema Repetitivo 466/STJ), decorrente do risco da atividade. A falha no dever de
segurança seria o nexo causal, manifestado por: a) Vazamento ou falha na guarda
de dados sigilosos do cliente (pois os golpistas tinham informações iniciais);
b) Insuficiência dos atuais protocolos de autenticação dos canais de
comunicação (telefone), que permitem fraudes como a simulação de centrais de
atendimento e exploração de falhas no sistema de telefonia; c) Incapacidade dos
sistemas de detecção de anomalias em identificar a fraude, mesmo com o
parcelamento da compra de alto valor (indicando que os criminosos se adaptaram
para burlar a segurança).
• Risco da atividade e confiança:
o risco de fraudes sofisticadas como o “golpe do motoboy” é inerente à
atividade bancária (fortuito interno) e não deve ser transferido ao consumidor,
especialmente o hipervulnerável. A falha em aprimorar a segurança mina a
confiança no sistema financeiro.
O Ministro Humberto Martins acompanhou
a Relatora e também ficou vencido.
MINISTROS QUE VOTARAM PELO
DESPROVIMENTO DO RECURSO (A FAVOR DO BANCO):
Ministro Ricardo Villas Bôas
Cueva (Relator para o Acórdão - Voto Vencedor):
• Culpa exclusiva do consumidor: principal
argumento foi que a consumidora agiu com culpa exclusiva ao fornecer voluntariamente
seus dados sigilosos (senha), entregar o cartão físico e permitir acesso remoto
ao seu computador, fragilizando a segurança. Essa conduta romperia o nexo
causal para a responsabilidade do banco (Art. 14, § 3º, II, do CDC).
• Ausência de defeito na
prestação do serviço: argumentou que não houve falha do banco, pois: a) a
transação foi realizada presencialmente em loja física, com o cartão original
(chip) e a senha pessoal correta; b) não ficou comprovado vazamento de dados
sigilosos pelo banco; c) os dados iniciais eram cadastrais e de fácil obtenção,
e os dados sensíveis foram fornecidos pela própria consumidora; a operação
(compra única, parcelada, dentro do limite) não era necessariamente atípica a
ponto de exigir um bloqueio automático pelo sistema de segurança do banco.
• Hipervulnerabilidade: considerou
que, embora a situação de saúde fosse delicada, ela não isenta a consumidora do
dever de cuidado com seus dados e cartão, especialmente na ausência de falha
comprovada do banco. Distinguiu da proteção específica conferida a idosos em
outros precedentes.
• Precedentes: citou
jurisprudência do STJ que afasta a responsabilidade do banco quando a transação
ocorre com cartão original e senha, a menos que se prove negligência da
instituição, o que não considerou ter ocorrido no caso.
O Ministros Moura Ribeiro e Antônio
Carlos Ferreira acompanharam a divergência.
RESUMINDO:
1) A responsabilidade da
instituição financeira no golpe do motoboy depende da concorrência de duas
causas: a) o fornecimento do cartão magnético original e senha pessoal ao
estelionatário pelo consumidor;
b) a inobservância do dever de
segurança pela instituição financeira em alguma etapa da prestação do serviço.
2) A responsabilidade da
instituição financeira tem origem no defeito em alguma das etapas da prestação
do serviço, como a guarda dos dados sigilosos do consumidor e o aprimoramento
dos mecanismos de autenticação dos canais de relacionamento com o cliente e de
verificação de anomalias nas operações que fujam do padrão do consumidor.
3) O compartilhamento de dados
bancários sigilosos pelo consumidor, após ser convencido de que estava falando
com representante do banco, que permite operação fraudulenta realizada em loja
física com a utilização do cartão, mediante inserção da senha pessoal e dentro
dos limites pré-aprovados, afasta a deficiência na prestação do serviço por
parte do banco e caracteriza culpa exclusiva do consumidor.
4) A vulnerabilidade do
consumidor em tratamento médico não autoriza, isoladamente, a mitigação de sua
responsabilidade quanto ao dever de cuidado com seus dados sigilosos e com o
cartão de acesso à conta.
Em suma:
Exclui-se a responsabilidade da instituição
financeira por danos decorrentes de fraude praticada por terceiro, quando a
compra, realizada em loja física, foi realizada com a entrega voluntária do
cartão original e de senha pessoal pelo correntista, prática comumente
conhecida como golpe do motoboy, caracterizando culpa exclusiva do consumidor,
ainda que vulnerável em decorrência de doença grave.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.155.065-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, rel. para acórdão Min.
Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 11/3/2025 (Info 843).
