Imagine a seguinte situação adaptada:
Mariana, jovem saudável de 28
anos, aceitou participar como voluntária de um ensaio clínico de um novo
anticoncepcional oral (composto por duas substâncias hormonais).
Antes da inclusão no estudo, ela
passou por diversos exames, dentre eles:
• Anamnese médica detalhada;
• Exames laboratoriais completos;
• Exame cardiológico;
• Avaliação dermatológica.
Todos os exames atestaram que
Mariana estava em perfeitas condições de saúde, sem nenhuma doença
dermatológica ou histórico de reações adversas a medicamentos.
Ela assinou então o Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), no qual foram explicados os possíveis
riscos e benefícios do estudo, além dos seus direitos como participante.
Aproximadamente 10 dias após
tomar a segunda dose do medicamento, Mariana começou a apresentar lesões
cutâneas severas, descamação da pele, vermelhidão generalizada e coceiras
intensas.
Ela foi então diagnosticada com
pitiríase rubra pilar (PRP), uma doença rara e crônica de causa desconhecida.
Diante disso, Mariana ajuizou
ação contra o instituto e o laboratório pleiteando:
1) custeio integral e vitalício
do seu tratamento dermatológico, psicológico e psiquiátrico;
2) compensação por danos morais e
estéticos;
3) pensão mensal vitalícia em
razão da incapacidade laboral permanente.
Em sua defesa, o laboratório
argumentou que:
1) não havia nexo causal
comprovado entre o contraceptivo testado e a doença;
2) a pitiríase rubra pilar é uma
doença de causa desconhecida, não relacionada ao uso de medicamentos.
Perícia judicial
Durante o processo, foi realizada
perícia médica por especialista em dermatologia.
O laudo pericial concluiu que:
• a pitiríase rubra pilar é uma
dermatose rara, crônica e de etiologia desconhecida;
• “Até a presente data não há
como imputar que os fármacos testados na paciente foram os agentes etiológicos
da presente patologia”;
• no entanto, a patogênese da
doença “pode estar relacionada com reações idiossincráticas a fármacos”.
O juiz e o Tribunal de Justiça
julgaram os pedidos procedentes.
Inconformado, o laboratório
interpôs recurso especial alegando, dentre outros argumentos, que a
inconclusividade do laudo pericial deveria levar à improcedência da ação ou, no
mínimo, à realização de perícia complementar.
O STJ manteve a condenação
do laboratório?
SIM.
Teoria da verossimilhança
preponderante
A teoria da verossimilhança
preponderante, também conhecida como “preponderância de provas” ou
“probabilidade prevalente”, é um importante instrumento para solução de casos
complexos onde há dificuldade na produção de prova conclusiva ou certeza
absoluta sobre os fatos.
Esta teoria tem origem no direito
comparado, principalmente no sistema da common law, onde é conhecida como
“preponderance of evidence” ou “more likely than not”.
Foi desenvolvida como uma
alternativa ao standard probatório tradicional que exige certeza para a
formação da convicção judicial.
O conceito central desta teoria é
relativamente simples: a parte que apresentar a versão mais provável, mais
verossímil dos fatos, deve ser beneficiada pelo resultado do julgamento. Ou
seja, não se exige certeza absoluta, mas uma probabilidade maior de uma versão
em relação à outra.
No caso julgado pelo STJ, a
Ministra Nancy Andrighi ressaltou que esta teoria é compatível com o
ordenamento jurídico-processual brasileiro, desde que aplicada como instrumento
para superar o estado de dúvida do julgador.
O STJ já havia reconhecido a
aplicabilidade desta teoria em julgados anteriores, como no REsp 1.320.295/RS,
onde estabeleceu que:
(...) 5. Em situações excepcionais, em que o julgador,
atento às peculiaridades da hipótese, necessita reduzir as exigências
probatórias comumente reclamadas para formação de sua convicção em virtude de
impossibilidades fáticas associadas à produção da prova, é viável o julgamento
do mérito da ação mediante convicção de verossimilhança.
6. A teoria da verossimilhança preponderante, desenvolvida
pelo direito comparado e que propaga a ideia de que a parte que ostentar
posição mais verossímil em relação à outra deve ser beneficiada pelo resultado
do julgamento, é compatível com o ordenamento jurídico-processual brasileiro,
desde que invocada para servir de lastro à superação do estado de dúvida do
julgador. É imprescindível, todavia, que a decisão esteja amparada em elementos
de prova constantes dos autos (ainda que indiciários). Em contrapartida,
permanecendo a incerteza do juiz, deve-se decidir com base na regra do ônus da
prova. (...)
STJ. 3ª Turma. REsp 1.320.295/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 15/10/2013.
Requisitos para aplicação
A aplicação da teoria da
verossimilhança preponderante requer alguns pressupostos:
1) Impossibilidade ou extrema
dificuldade na produção de prova conclusiva: situações em que a prova técnica é
inconclusiva ou insuficiente para formar convicção de certeza.
2) Existência de elementos probatórios
mínimos: a decisão deve estar amparada em elementos de prova constantes dos
autos, ainda que indiciários.
3) Comparação entre versões:
deve-se verificar qual das versões apresentadas pelas partes é mais verossímil,
considerando todo o contexto probatório.
4) Subsidiariedade: se o juiz
conseguir formar convicção de certeza, não se aplica a teoria. Ela serve
justamente para superar o estado de dúvida.
Aplicação no caso concreto
No caso específico julgado pelo
STJ, a teoria foi aplicada porque:
• o laudo pericial foi
inconclusivo quanto ao nexo causal (afirmou que "não há como imputar"
e não que "está comprovado que não há nexo").
• existiam elementos
circunstanciais fortes, como: a coincidência temporal (surgimento dos sintomas
10 dias após a administração do medicamento), a saúde perfeita da participante
antes do estudo, os exames pré-admissionais que comprovavam ausência de qualquer
doença, a raridade da doença e a possibilidade, mencionada no próprio laudo, de
reações a fármacos como possível causa da doença.
A versão da autora (de que o
medicamento causou a doença) mostrava-se mais verossímil que a versão do
laboratório (de que a doença surgiu por coincidência).
A responsabilidade por
eventos adversos graves em ensaios clínicos recai sobre o patrocinador,
conforme previsto na RDC 9/2015 e na Resolução 466/2012
A Resolução da Diretoria
Colegiada - RDC n. 9/2015 da Anvisa estabelece, em seu art. 12, que o
patrocinador é responsável por todas as despesas relacionadas com procedimentos
e exames, especialmente aquelas de diagnóstico, tratamento e internação do participante
do ensaio clínico, e outras ações necessárias para a resolução de eventos
adversos relativos ao ensaio clínico. A mesma norma define evento adverso (EA)
como sendo "qualquer ocorrência médica adversa em um paciente ou
participante do ensaio clínico a quem um produto farmacêutico foi administrado
e que não necessariamente tenha uma relação causal ao tratamento" (art.
6°, XXIII). E, se resultar em incapacidade/invalidez persistente ou
significativa, ou ainda em evento clinicamente significante, é tido como evento
adverso grave (art. 6°, XXIV).
A Resolução n. 466/2012 do
Conselho Nacional de Saúde exige que as pesquisas, em qualquer área do
conhecimento envolvendo seres humanos, assegurem aos seus participantes
"as condições de acompanhamento, tratamento, assistência integral e
orientação, conforme o caso, enquanto necessário, inclusive nas pesquisas de
rastreamento" (item III.2, "o"), bem como responsabiliza o
pesquisador, o patrocinador e as instituições e/ou organizações envolvidas nas
diferentes fases da pesquisa pela assistência integral aos participantes, no
que se refere às complicações e danos decorrentes, prevendo, inclusive, o
direito à indenização (itens V.6 e V.7).
Em suma:
Não demonstrando a prova técnica o nexo causal entre
o medicamento administrado e a doença desenvolvida, e considerando os demais
elementos de prova que confirmam a verossimilhança das alegações que imputaram
à ré o risco pelo mau êxito da perícia, esta deve ser condenada a indenizar a
parte contrária.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.145.132-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 18/2/2025 (Info
842).