Dizer o Direito

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Não há falar em ilegalidade na abordagem realizada em razão de informe prévio com descrição pormenorizada do veículo que estaria transportando entorpecentes, bem como suas características e placa

Imagine a seguinte situação adaptada:

Na manhã de 5 de maio de 2022, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) recebeu uma informação detalhada sobre um caminhão que estaria transportando uma grande quantidade de drogas.

Segundo a denúncia, tratava-se de um caminhão modelo Mercedes-Benz Axor, de cor branca, placa ABC-1234, que havia partido do estado de Goiás com destino final a Patos de Minas, em Minas Gerais.

A informação continha elementos específicos sobre o veículo, incluindo não apenas a placa, mas também peculiaridades como adesivos laterais com o desenho de um cavalo e uma carroceria com baú refrigerado. A PRF repassou imediatamente essas informações às equipes da Polícia Militar que faziam o patrulhamento na rodovia na divisa entre os estados.

Por volta das 14h30, uma viatura da Polícia Militar avistou um caminhão com as exatas características descritas no informe, trafegando na rodovia BR-365, próximo à entrada da cidade de Patos de Minas.

Os policiais realizaram a abordagem ao veículo, identificando o motorista como João da Silva.

Durante a abordagem, os policiais explicaram os motivos da parada e solicitaram autorização para realizar uma busca veicular, tendo em vista as informações recebidas.

O motorista demonstrou nervosismo, mas consentiu com a revista.

Na inspeção realizada no compartimento de carga, os policiais encontraram um fundo falso sob o assoalho do baú, onde estavam escondidos 62 quilogramas de pasta-base de cocaína.

 

Prisão em flagrante e denúncia

João foi preso em flagrante e posteriormente denunciado pelo Ministério Público por tráfico interestadual de drogas (art. 33, caput, c/c art. 40, V, da Lei nº 11.343/2006).

O réu foi condenado, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial alegando nulidade da prova obtida, argumentando que a abordagem teria ocorrido com base apenas em denúncia anônima, sem qualquer outro elemento que justificasse a fundada suspeita exigida pelo art. 244 do CPP para a realização de busca veicular sem mandado judicial:

Art. 244.  A busca pessoal independerá de mandado, no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

O STJ concordou com a defesa e deu provimento ao recurso?

NÃO.

 

Hipóteses de busca pessoal sem mandado

A busca pessoal sem mandado judicial pode ser decretada nas seguintes hipóteses:

a) no caso de prisão (ex: o indivíduo é preso em flagrante, o que autoriza a realização de busca pessoal);

b) quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito; ou

c) quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar.

 

A situação em tela se enquadraria, segundo a narrativa dos policiais, na hipótese da letra “b”.

 

O que se exige em termos de standard probatório* para se realizar a busca pessoal em caso de fundada suspeita?

Para a busca pessoal ou veicular sem mandado judicial exige-se, em termos de standard probatório, a existência de fundada suspeita (justa causa) baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência.

Vale ressaltar, contudo, que o art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.

 

* O que são standards de prova?

Standards de prova “são critérios que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que o julgador considere um enunciado fático como provado” (BADARÓ, Gustavo H. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: RT, 2019, p. 236).

 

A lei não permite busca pessoal de rotina

O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata.

Desse modo, a busca pessoal não pode ser realizada com base unicamente em:

a) informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas); ou

b) intuições e impressões subjetivas, intangíveis, apoiadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio (experiência) policial.

 

Não é possível a busca pessoal com base em suspeita subjetiva

Não é possível a busca pessoal unicamente pelo fato de o policial, a partir de uma classificação subjetiva, ter considerado que a pessoa:

• apresentou uma atitude ou aparência suspeita; ou

• teve uma reação ou expressão corporal tida como “nervosa”.

Essas circunstâncias não preenchem o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP.

 

O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita de posse de corpo de delito” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida, droga ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida.

A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.

 

A mera alegação genérica de “atitude suspeita” é insuficiente para a licitude da busca pessoal.

STJ. 6ª Turma. RHC 158.580-BA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 19/04/2022 (Info 735).

 

Concluiu-se, portanto, que não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g. denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial.

 

Não há ilegalidade na abordagem realizada em razão de informe prévio com descrição pormenorizada do veículo que estaria transportando entorpecentes, bem como suas características e placa

No caso analisado, a abordagem do caminhão pelos policiais militares foi justificada.

Os agentes receberam informações da Polícia Rodoviária Federal (PRF) sobre um veículo que estaria transportando drogas. Essa informação incluía detalhes precisos, como a placa e as características do caminhão, além do trajeto que ele percorreria, saindo de Goiás e indo para Patos de Minas.

Com base nesses dados concretos, os policiais montaram um cerco para interceptar o veículo de forma direcionada, ou seja, não foi uma abordagem aleatória, mas sim uma ação planejada com base em informações confiáveis.

Dessa forma, não houve nulidade, pois a busca veicular foi motivada por elementos concretos e objetivos, e não apenas por suspeitas vagas ou impressões subjetivas dos policiais.

Segundo o entendimento do STJ, esse tipo de diligência é legítimo quando há uma “fundada suspeita”, ou seja, quando existem indícios concretos de que um crime está sendo cometido.

O STJ já decidiu, em outros casos semelhantes, que a busca veicular sem mandado judicial é válida quando há uma suspeita bem fundamentada, baseada em informações precisas, como a descrição do veículo e sua placa. Nesse sentido:

A busca pessoal e veicular é válida quando há fundada suspeita, a qual deve ser baseada em fatos e circunstâncias objetivas, não em estereótipos ou discriminação.

No caso concreto, a busca realizada foi considerada lícita, pois a denúncia anônima foi minimamente confirmada pelos policiais ao identificarem um veículo com as características mencionadas na delação, configurando fundada suspeita para a abordagem. A fundada suspeita não exige certeza absoluta, mas deve estar embasada em elementos objetivos que justifiquem a ação policial.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 842.561/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 9/10/2023.

 

A busca veicular é legítima quando a denúncia anônima é minimamente confirmada por elementos objetivos, como a identificação das características do veículo abordado.

No caso concreto, a abordagem foi considerada lícita, pois a denúncia anônima especificava o modelo e parte da placa do veículo, elementos que foram confirmados pelos policiais antes da busca. Além disso, os depoimentos dos agentes de segurança possuem fé pública e são válidos como prova, especialmente quando corroborados por outros elementos nos autos.

STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 183.317/SC, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 18/9/2023.

 

Em suma:

Não há falar em ilegalidade na abordagem realizada em razão de informe prévio com descrição pormenorizada do veículo que estaria transportando entorpecentes, bem como suas características e placa. 

STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 2.096.453-MG, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 18/2/2025 (Info 841).

 

DOD Teste: revisão em perguntas

Qual é o fundamento legal que permite a busca pessoal ou veicular sem mandado judicial?

O fundamento legal para a busca pessoal sem mandado judicial está previsto no art. 244 do CPP, que permite a medida nos casos de prisão, quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a busca pessoal for determinada no curso de uma busca domiciliar.

 

O que caracteriza a "fundada suspeita" exigida pelo art. 244 do CPP para justificar a busca pessoal ou veicular?

A fundada suspeita exige a existência de indícios concretos e objetivos que indiquem a possibilidade de que a pessoa esteja na posse de drogas, armas ou outros objetos que constituam corpo de delito. Deve ser baseada em um juízo de probabilidade, descrita com precisão e justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto.

 

Uma denúncia anônima, por si só, é suficiente para justificar uma busca veicular sem mandado?

Não. A denúncia anônima, por si só, não é suficiente para justificar a busca veicular, pois não configura fundada suspeita. No entanto, se a denúncia for minimamente corroborada por elementos objetivos, como a confirmação das características do veículo e do trajeto informado, pode ser utilizada como base para a abordagem.

 

A experiência policial e a suspeita subjetiva podem justificar uma busca pessoal ou veicular?

Não. A mera intuição, experiência policial ou a percepção subjetiva de que um indivíduo está "nervoso" ou tem "aparência suspeita" não são suficientes para justificar a busca pessoal ou veicular. A suspeita deve ser fundada em elementos objetivos e concretos.

 

Quais são as consequências da realização de uma busca pessoal ou veicular sem o requisito da fundada suspeita?

Caso a busca pessoal ou veicular seja realizada sem fundada suspeita, as provas obtidas serão consideradas ilícitas e não poderão ser utilizadas no processo penal. Além disso, os policiais responsáveis podem ser responsabilizados pela prática ilegal.

 

O que significa o conceito de "standards de prova" no contexto da busca pessoal e veicular?

Standards de prova são critérios que estabelecem o grau de confirmação probatória necessário para que um enunciado fático seja considerado provado no processo penal. No caso da busca pessoal ou veicular, exige-se uma suspeita fundamentada, baseada em elementos objetivos e concretos.

 

O art. 244 do CPP permite buscas pessoais de rotina realizadas como praxe do policiamento ostensivo?

Não. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais de rotina ou motivadas apenas por práticas preventivas do policiamento ostensivo. A busca pessoal deve ter uma finalidade probatória e estar vinculada a uma suspeita fundada e objetivamente justificada.


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