Imagine a seguinte situação
hipotética:
João possui uma casa localizada
às margens de um rio. Trata-se de uma Área de Preservação Permanente (APP).
Área de
Preservação Permanente (APP) é uma área protegida, coberta ou não por vegetação
nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a
estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e
flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (art. 3º,
II, da Lei nº 12.651/2012).
João iniciou uma pequena reforma em sua residência.
Ele foi autuado pelo órgão
ambiental que determinou a paralisação da obra.
Mesmo assim, ignorou a
determinação e deu prosseguimento à reforma.
João concluiu então a ampliação
da casa, construindo um banheiro com área de 4m².
Diante desse cenário, o instituto
de proteção ambiental ingressou com ação civil pública contra João pedindo a demolição
da parte do imóvel que foi ampliada (o banheiro de 4m²) e a restauração
integral da área.
O juiz julgou os pedidos
improcedentes sob o argumento de que, devido à completa antropização
(modificação humana) da área ao longo de muitas décadas, a pequena reforma não
constituía um evento que caracterizasse degradação ambiental significativa.
O Tribunal de Justiça manteve a
sentença.
Inconformado, o instituto de
proteção ambiental recorreu ao STJ, alegando que a condição antropizada da área
era irrelevante para a solução da lide, e que a edificação ilícita em área de
preservação permanente configurava situação de dano ambiental presumido,
independentemente de sua extensão.
O STJ concordou com os
argumentos do instituto de proteção ambiental?
SIM.
A teoria do fato consumado da
antropização da área não pode servir para a mera e simples legalização da
conduta ambientalmente ilícita.
É evidente o dano ambiental
decorrente da construção em área considerada não edificável, situada às margens
de curso d’água.
A alegação de que a obra possui
pequena extensão — cerca de 4m² — também não é suficiente para afastar o pedido
de demolição.
No caso concreto, o particular
foi devidamente notificado quanto à ilegalidade de sua conduta, por meio de
autuação administrativa que determinava a imediata paralisação da obra. Apesar
disso, optou por desconsiderar a ordem e prosseguiu com a construção, sem
qualquer autorização legal ou administrativa.
Tal conduta não pode ser
considerada juridicamente aceitável.
Caso o particular estivesse
inconformado com a autuação administrativa, deveria ter buscado os meios legais
cabíveis, seja por via judicial, seja por recurso administrativo perante o
órgão competente. O que não se admite é que o administrado tome decisões
unilaterais com base no que entende ser seu direito. Não lhe é conferido, nesse
contexto, o poder de autotutela.
Trata-se de antiga e consolidada
regra do Direito — igualmente aplicável ao Direito Ambiental — a vedação de que
alguém se beneficie da própria torpeza, ou seja, que obtenha vantagem a partir
de sua própria conduta ilícita.
Neste caso, diante da conduta
flagrantemente desrespeitosa do particular, que deu prosseguimento à obra
embargada com total desconsideração aos bens jurídicos ambientalmente
protegidos e à autoridade do Poder Público, a transgressão deve ser
adequadamente sancionada. A atuação fiscalizatória ambiental não pode ser
tratada com descaso pela sociedade, mas sim valorizada.
Dessa forma, considerando a
postura abertamente desafiadora do particular, que, mesmo notificado quanto à
ilicitude de seu ato, deliberadamente ignorou o poder estatal e levou a cabo
empreendimento manifestamente ilegal, impõe-se o acolhimento da pretensão
recursal.
Em suma:
A pequena extensão de área ambiental atingida não
pode se sobrepor, como razão de decidir, ao comportamento flagrantemente
ofensivo ao meio ambiente cometido pelo particular, de modo que deve ser
demolida a edificação, bem como recuperado o meio ambiente, ainda que se trate
se obra de pequena extensão, da ordem de 4m², realizada em Área de Preservação
Permanente - APP.
STJ. 2ª
Turma. REsp 1.714.536-RJ, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 4/2/2025 (Info
842).