quinta-feira, 10 de abril de 2025
A Lei Kandir não autoriza explicitamente a compensação de créditos acumulados de ICMS com débitos de ICMS por substituição tributária (ICMS-ST); portanto, se uma lei estadual proíbe essa prática, ela não pode ser permitida por interpretação diferente
Imagine a seguinte situação
hipotética:
A Alfa Eletro é uma grande rede
varejista do setor de eletrodomésticos.
Ela possui diversos
estabelecimentos no Estado de São Paulo, incluindo lojas físicas e um centro de
distribuição.
A empresa adota o seguinte modelo
de operação:
• o Centro de Distribuição
adquire produtos de fabricantes e fornecedores (ex: adquire uma geladeira
Electrolux);
• o Centro de Distribuição
transfere esses produtos para as lojas físicas da rede;
• as lojas físicas realizam a
venda ao consumidor final.
No Estado de São Paulo, a Alfa Eletro
aderiu voluntariamente a um Regime Especial de Substituição Tributária,
previsto no Decreto Estadual nº 57.608/2011.
Sob esse regime, o Centro de
Distribuição da empresa passou a funcionar como substituto tributário, sendo
responsável por recolher antecipadamente o ICMS-ST (ICMS por Substituição
Tributária) que seria devido pelas lojas quando da venda ao consumidor final.
Problema fiscal
Com o passar do tempo, a Alfa
Eletro começou a acumular um significativo saldo credor de ICMS próprio em seu
Centro de Distribuição. Isso ocorria porque o Centro de Distribuição tinha
direito a créditos de ICMS pelas entradas de mercadorias, mas suas operações de
saída para as lojas do mesmo grupo empresarial geravam poucos débitos
comparativamente.
Ao mesmo tempo, a empresa tinha
que desembolsar valores consideráveis para pagar o ICMS-ST relativo às futuras
vendas das lojas.
O que a empresa queria?
A Alfa Eletro queria usar os créditos
de ICMS que acumulou (ICMS-próprio) para pagar o ICMS-ST (substituição
tributária) que ela é obrigada a recolher antecipadamente.
• ICMS-próprio: a empresa paga
ICMS ao comprar mercadorias e pode usar esse valor como crédito na sua
contabilidade.
• ICMS-ST (Substituição
Tributária): é um ICMS pago antes mesmo da venda do produto final, para
simplificar a cobrança do imposto.
A empresa queria “abater” o
imposto que devia (ICMS-ST) com os créditos que já tinha (ICMS-próprio), sem
precisar desembolsar dinheiro novo.
Legislação estadual não
permitia
Ocorre que o art. 49, § 4º, da Lei Estadual nº 6.374/1989,
do Estado de São Paulo, proíbe a compensação de ICMS-ST com créditos de
ICMS-próprio:
Lei Estadual nº 6.374/1989
Art. 49 (...)
§ 4º O recolhimento do imposto
retido por contribuinte, na qualidade de sujeito passivo por substituição, deve
ser efetuado independentemente do resultado da apuração relativa às operações
ou prestações realizadas pelo estabelecimento no período, conforme disposto em
regulamento.
No mesmo sentido:
Regulamento do ICMS-SP (Decreto
nº 45.490/2000)
Art. 283. O sujeito passivo por
substituição efetuará o recolhimento do imposto retido antecipadamente, apurado
nos termos desta subseção, até o dia indicado no Anexo IV, independentemente do
resultado da apuração relativa às suas operações próprias.
Esse dispositivo impede que uma
empresa como a Alfa Eletro use créditos acumulados de ICMS-próprio para
compensar o ICMS-ST. Isso acontece porque o ICMS-ST deve ser pago
antecipadamente, antes mesmo de qualquer cálculo de créditos e débitos.
A justificativa do Estado é que a
substituição tributária foi criada para garantir que o imposto seja recolhido
antes da venda ao consumidor final. Se empresas pudessem usar créditos de
ICMS-próprio para compensar ICMS-ST, isso poderia afetar a arrecadação e o
controle fiscal.
MS impetrado pela empresa
Diante dessa situação, a Alfa Eletro
impetrou mandado de segurança invocando os seguintes argumentos:
1) Princípio da não
cumulatividade
A Constituição diz que o ICMS
deve ser não cumulativo, ou seja, o que foi pago na etapa anterior deve ser
abatido na etapa seguinte.
Para a empresa, isso significa
que ela deveria poder usar os créditos acumulados de ICMS para compensar o
ICMS-ST.
2) O ICMS é um imposto único
A empresa argumentou que o
ICMS-ST e o ICMS-próprio são o mesmo imposto e, por isso, não faria sentido
impedir a compensação entre eles.
Afinal, ambos são formas
diferentes de pagamento do mesmo tributo.
3) A Lei Kandir permite
compensação
A Lei Complementar 87/96 (Lei
Kandir) regula o ICMS e permite compensação de créditos.
Para a empresa, essa lei não
proíbe expressamente a compensação do ICMS-ST com ICMS-próprio, então ela
deveria ser permitida.
4) A proibição estadual seria
ilegal
A empresa alegou que o Estado de
São Paulo não poderia proibir essa compensação porque a Constituição e a Lei
Kandir garantiriam esse direito.
Defesa da Fazenda Pública
O Estado de São Paulo, por sua
vez, defendeu que:
1) ICMS e ICMS-ST são regimes diferentes
O ICMS-próprio é calculado com
base no faturamento da empresa e pode ser compensado com créditos acumulados.
O ICMS-ST é um pagamento
antecipado, feito por um substituto tributário (exemplo: centros de
distribuição que vendem para as lojas).
Como os regimes são diferentes,
não se pode misturar os créditos de um com os débitos do outro.
2) O princípio da não
cumulatividade não dá direito automático à compensação
O Fisco alegou que o princípio da
não cumulatividade (que evita imposto em cascata) não significa que a empresa
pode usar créditos acumulados de qualquer jeito.
A Constituição exige que uma lei
complementar regulamente isso, e a Lei Kandir não autoriza expressamente a
compensação do ICMS-ST com créditos de ICMS-próprio.
3) O STF já decidiu que a não
cumulatividade pode ser limitada pela lei
O STF possui decisões afirmando
que Estados podem definir regras sobre compensação de créditos de ICMS. Como
São Paulo proíbe expressamente essa compensação, a decisão do Estado deve ser
respeitada.
4) A substituição tributária
exige pagamento antecipado
O ICMS-ST é um regime criado para
facilitar a arrecadação, garantindo que o imposto seja recolhido antes da venda
final.
Se as empresas pudessem compensar
créditos de ICMS, isso enfraqueceria a lógica da substituição tributária e
poderia prejudicar a arrecadação.
Juiz e TJ deram razão à
Fazenda Pública
O pedido da empresa foi negado tanto em primeira
instância quanto pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o fundamento de que
a legislação estadual expressamente veda a compensação nos moldes pretendidos e
que, nos termos do art. 170 do Código Tributário Nacional, a compensação
tributária depende de autorização legal específica, inexistente no caso em
questão.
Ainda
inconformada, a empresa interpôs recurso especial insistindo na tese.
O STJ concordou
com os argumentos da impetrante?
NÃO.
O objeto principal enfrentado
pelo STJ foi o seguinte: a Lei Complementar n. 87/1996 (Lei Kandir) permite que
o contribuinte use créditos acumulados de ICMS para compensar valores devidos a
título de ICMS por Substituição Tributária (ICMS-ST), mesmo quando há uma
proibição expressa na legislação estadual?
O STJ entendeu que não.
O que diz a Constituição
sobre o ICMS:
De acordo com o art. 155, caput,
II, e § 2º, I, da Constituição Federal, os Estados e o Distrito Federal têm
competência para instituir o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços
(ICMS), que deve ser não cumulativo. Isso significa que é possível compensar o
valor devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores.
Além disso, o art. 155, § 2º,
XII, b e c, da Constituição Federal estabelece que cabe à lei complementar
regular a substituição tributária e o regime de compensação para garantir a não
cumulatividade.
Este sistema de créditos pode ser
usado para liquidar o tributo por compensação, permitindo abater da quantia
devida de ICMS os créditos acumulados nas operações anteriores.
O que diz a Lei Kandir:
Na legislação
infraconstitucional, o regime de compensação foi disciplinado pela Lei
Complementar nº 87/1996 (Lei Kandir), principalmente em seus arts. 19, 20, 24 e
25.
Por outro lado, a substituição
tributária progressiva do ICMS segue regras diferentes, como as estabelecidas
nos arts. 6º e 8º, caput, II, e § 5º, da LC 87/1996.
Diferença entre compensação
do ICMS e compensação no CTN
É importante não confundir a
compensação usada para apuração do ICMS com a compensação prevista no Código
Tributário Nacional (CTN, art. 156, II, e art. 170).
• No primeiro caso, a compensação
faz parte do cálculo do imposto, garantindo a não cumulatividade e reduzindo o
impacto do tributo ao longo da cadeia produtiva.
• No segundo caso, trata-se de um
mecanismo de extinção do crédito tributário, permitindo que um contribuinte
utilize um valor pago indevidamente para abater outra dívida tributária, desde
que haja reciprocidade entre crédito e débito.
O entendimento do STF sobre
a não cumulatividade
A Constituição não restringe a
aplicação da não cumulatividade apenas ao ICMS sobre operações próprias, o que
possibilitaria sua aplicação também nos casos de substituição tributária
progressiva - cuja instituição por lei é amparada pelo art. 150, § 7º, da
Constituição Federal.
No entanto, o Supremo Tribunal
Federal tradicionalmente adota uma interpretação diferente, validando
restrições ao princípio da não cumulatividade quando estabelecidas por lei
complementar.
Segundo o STF, o princípio da não
cumulatividade do ICMS pode ser moldado pelo legislador infraconstitucional, o
que legitima limitações ao creditamento integral e ao uso de créditos
acumulados para liquidar o tributo por compensação, procedimento permitido
apenas quando há autorização legal expressa.
Embora o amplo alcance da norma
constitucional da não cumulatividade impeça restrições indevidas ao
aproveitamento de créditos no regime de substituição tributária progressiva do
ICMS, mesmo que previstas em lei complementar, a jurisprudência do STF adota
uma interpretação diferente, permitindo a compensação apenas quando há
autorização legal expressa.
Como isso afeta a
compensação do ICMS-ST?
Mesmo que, em tese, os Estados e
o Distrito Federal possam ampliar as formas de compensação do ICMS-ST, o STF
tem validado restrições estabelecidas por lei complementar. No caso específico
analisado, a legislação estadual proíbe expressamente a compensação pretendida.
Dessa forma, como a LC 87/1996
não traz autorização expressa para essa compensação e há uma vedação na lei
estadual, o entendimento do STF impede que o contribuinte utilize os créditos
acumulados para pagar o ICMS-ST.
Assim, havendo proibição expressa
em lei estadual, não é possível adotar interpretação diferente.
Em suma:
Não se extrai diretamente da Lei Kandir autorização
expressa e suficiente a possibilitar a utilização de créditos de Imposto sobre
Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), acumulados na escrita fiscal, para
compensação com valores devidos a título de ICMS por substituição tributária
(ICMS-ST), razão pela qual, havendo expressa vedação a tal procedimento em lei
estadual, inviável a adoção de exegese diversa.
STJ. 1ª
Turma. REsp 2.120.610-SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 4/2/2025 (Info
841).
