Dizer o Direito

quarta-feira, 9 de abril de 2025

A indenização do seguro garantia tributário não está vinculada à vigência do contrato principal, mas à vigência da própria apólice, sendo possível sua exigência se o sinistro ocorrer dentro desse período, ainda que sua comprovação ocorra posteriormente

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

A Citrosuco S/A Agroindústria, uma das maiores produtoras de suco de laranja do Brasil, enfrentava um problema comum no setor de exportação: o acúmulo de créditos de ICMS. Como a maior parte de sua produção era destinada ao mercado externo (operação imune a pagamento de ICMS – art. 155, § 2º, X, “a”, da CF/88), a empresa acumulava créditos tributários que dificilmente conseguiria compensar em suas operações no mercado interno.

Para solucionar esse problema, em janeiro de 2016, a Citrosuco aderiu ao “Regime Especial de Apropriação de Crédito Acumulado de ICMS” oferecido pelo Estado de São Paulo. Este regime permitia que a empresa se apropriasse dos créditos acumulados de forma mais ágil e flexível, possibilitando inclusive sua transferência para terceiros.

 

Exigência de seguro garantia

Como condição para a adesão ao Regime Especial, o Estado de São Paulo exigiu que a Citrosuco contratasse um seguro garantia. Esta é uma prática comum da administração tributária para se proteger contra eventuais irregularidades que possam ser detectadas posteriormente.

A Citrosuco, então, contratou apólice de seguro garantia junto a uma seguradora. Esta apólice tinha como finalidade garantir o pagamento de eventuais débitos fiscais caso a empresa descumprisse as regras do regime especial durante sua vigência.

A apólice continha cláusula que estabelecia:

• a vigência do seguro seria igual ao prazo do regime especial;

• o seguro garantiria o pagamento de débitos referentes a infrações ocorridas durante a vigência do regime;

• o seguro se extinguiria quando o contrato principal (regime especial) fosse extinto.

 

Voltando ao caso concreto

Durante o ano de 2016, a Citrosuco operou normalmente sob o regime especial. No entanto, o departamento fiscal da empresa teria praticado algumas irregularidades, como aproveitar créditos em percentual superior ao permitido.

Estas irregularidades ocorreram entre março e dezembro de 2016, período em que o regime especial estava em plena vigência.

 

Revogação do regime especial

Em 15 de fevereiro de 2017, por razões administrativas e estratégicas próprias, a Citrosuco solicitou a revogação do regime especial, o que foi aceito pelo Estado de São Paulo. A partir dessa data, a empresa voltou a operar sob o regime normal de tributação do ICMS.

 

Fiscalização e auto de infração

Em janeiro de 2018, o fisco estadual realizou uma auditoria nas operações da empresa e identificou as irregularidades que teriam sido cometidas durante o ano de 2016.

Em 5 de fevereiro de 2018, foi lavrado o Auto de Infração e Imposição de Multa.

Repare que este auto foi lavrado quase um ano após a revogação do regime especial.

 

Ação de cobrança

Diante do cenário acima, o Estado de São Paulo ajuizou ação de cobrança contra a seguradora, buscando receber a indenização prevista na apólice do seguro garantia.

O Estado argumentou que as infrações ocorreram durante a vigência do regime especial e, portanto, estariam cobertas pelo seguro, independentemente de o auto de infração ter sido lavrado após a revogação do regime.

 

Contestação da seguradora

A seguradora contestou alegando que:

• o seguro garantia era acessório ao contrato principal (regime especial) e, tendo este sido revogado em fevereiro de 2017, o seguro também estaria extinto;

• o auto de infração foi lavrado em fevereiro de 2018, muito depois da revogação do regime especial;

• o crédito tributário estava com exigibilidade suspensa considerando que a Citrosuco interpôs recurso administrativo contra a autuação, não sendo possível exigir o pagamento do seguro antes da decisão definitiva na instância administrativa.

 

O STJ concordou com os argumentos da Fazenda Pública ou da seguradora?

Da Fazenda Pública.

 

O prazo de vigência do seguro garantia se encerrou com a revogação do regime especial do ICMS; o auto de infração foi lavrado posteriormente; mesmo assim, é possível exigir a indenização da seguradora

O contrato de seguro tem natureza de contrato aleatório, justamente pela ausência de equivalência entre as prestações.

O segurado não consegue prever o que receberá em troca de sua contraprestação, já que o segurador assume um risco, elemento essencial desse tipo de contrato.

Assim, o segurador deve ressarcir o dano sofrido pelo segurado, caso o evento incerto previsto no contrato aconteça.

Dessa forma, o seguro garantia não pode ser tratado como um contrato meramente acessório ao regime especial.

A cobrança de indenização de seguro garantia que visa garantir pagamento de crédito tributário não pode estar vinculada estritamente ao prazo de vigência do contrato principal (regime especial). Essa lógica faria presumir que se houver infração no último dia de vigência do regime especial, o fisco não poderia lavrar auto de infração no dia seguinte para receber o prêmio da seguradora.

O cumprimento do contrato de seguro deve respeitar o princípio da boa-fé. Se a infração ocorreu durante a vigência da apólice, o pagamento da indenização deve ser garantido, ainda que o auto de infração tenha sido lavrado posteriormente.

A Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), autarquia reguladora do mercado de seguros, elaborou o Manual de Seguro Garantia, para facilitar a interpretação da Circular n. 662/2022, que estabelece regras e critérios para a elaboração e a comercialização de planos de Seguro Garantia. No citado manual é evidenciado esse mesmo entendimento às fls. 34:

“(...) caso a inadimplência do tomador perante a obrigação garantida tenha ocorrido durante a vigência da apólice, a caracterização do sinistro (sua comprovação) pode ocorrer a qualquer tempo, inclusive fora do prazo de vigência da apólice. Em outras palavras, a caracterização do sinistro fora da vigência da apólice não é motivação para negativa do sinistro. (...)”

 

Desse modo, o Fisco Estadual terá o direito de exigir o pagamento do prêmio do seguro garantia, desde que o sinistro tenha ocorrido durante a vigência da apólice.

 

Possibilidade de cobrança da indenização, mesmo que a exigibilidade do crédito tributário esteja suspensa devido a um recurso administrativo pendente

A existência de um recurso administrativo suspende a exigibilidade do crédito tributário, conforme o art. 151, VI, do CTN. No entanto, isso não significa que a ação de cobrança do seguro deva ser extinta, mas apenas suspensa até a decisão final na esfera administrativa.

Mesmo sendo uma ação de cobrança, deve-se aplicar a jurisprudência pacífica do STJ, que determina que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário impede apenas o andamento do processo, sem extingui-lo:

O parcelamento ou qualquer suspensão de exigibilidade de crédito tributário no curso da ação fiscal obsta tão somente o curso do feito executivo, jamais extinguindo-o.

STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 1.996.377/AL, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 9/11/2022.

 

A suspensão da exigibilidade do crédito tributário, perfectibilizada após a propositura da ação, ostenta o condão somente de obstar o curso do feito executivo e não de extingui-lo.

STJ. 1ª Seção. REsp 957.509/RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 9/8/2010.

 

Em suma:

A possibilidade de exigir a indenização de seguro garantia, que visa assegurar o pagamento de crédito tributário, não está atrelada estritamente ao prazo de vigência do contrato principal (regime especial de ICMS), mas sim à vigência da própria apólice de seguro garantia, ainda que o auto de infração seja lavrado em data posterior. 

STJ. 2ª Turma. AREsp 2.678.907-SP, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 4/2/2025 (Info 841).


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