Imagine a seguinte situação
hipotética:
O Banco ingressou com execução de título extrajudicial
contra João cobrando uma dívida de R$ 200 mil referente a um empréstimo
bancário.
João foi citado e constituiu advogado para lhe
representar nos autos (Dr. Felipe).
Em determinado momento processual, o juiz determinou que
João indicasse bens passíveis de penhora no prazo de 15 dias.
A intimação foi realizada por meio eletrônico (sistema PJe),
conforme previsão do art. 270 do CPC, e recebida pelo advogado constituído:
Art. 270. As intimações
realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei.
Contudo, apesar de regularmente intimado, João permaneceu
inerte, não apresentando qualquer manifestação ou justificativa.
Diante dessa omissão, o banco requereu a aplicação da multa
por ato atentatório à dignidade da justiça, conforme prevê o parágrafo único do
art. 774 do CPC, que estabelece essa sanção para a parte executada que não
indicar bens sujeitos à penhora:
Art. 774. Considera-se
atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado
que:
(...)
V - intimado, não indica ao juiz
quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem
exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus.
Parágrafo único. Nos casos
previstos neste artigo, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte
por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em
proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de
outras sanções de natureza processual ou material.
O juiz acolheu o pedido e fixou a multa.
João recorreu alegando apresentando dois argumentos:
1) para a aplicação da multa por ato atentatório à
dignidade da justiça, seria necessária a intimação pessoal do executado, não
sendo suficiente a intimação eletrônica dirigida ao seu advogado;
2) seria necessário que, no despacho, tivesse constado
expressamente a advertência sobre a possibilidade de imposição da sanção. Em
outras palavras, para o recorrente o despacho deveria ter um trecho dizendo
mais ou menos o seguinte: “Advirta-se expressamente que o descumprimento
injustificado da presente ordem poderá ser caracterizado como ato atentatório à
dignidade da justiça, nos termos do art. 774, V, do CPC/2015, ensejando a
imposição de multa”.
Os argumentos de João foram acolhidos pelo STJ?
NÃO.
Ato atentatório à dignidade
da justiça
O art. 774 do CPC/2015 estabelece
um rol de condutas que são consideradas atentatórias à dignidade da justiça.
Essas previsões legais não
constituem uma simples faculdade do Magistrado. São um verdadeiro poder-dever
de impedir comportamentos que ameacem a efetividade da prestação jurisdicional
no processo de execução.
A qualificação dessas condutas
como atos atentatórios à dignidade da justiça permite a imposição de sanções
processuais relevantes. Essas sanções têm como objetivo não apenas punir o
comportamento indevido do executado, mas, sobretudo, garantir que a execução
seja eficaz e que o direito do exequente seja satisfeito.
O sistema processual, ao prever
esses mecanismos, reconhece que a execução não pode ser frustrada por atitudes
desleais ou pela falta de cooperação do executado. Por isso, é indispensável
que existam instrumentos capazes de assegurar que o Poder Judiciário faça
cumprir suas decisões.
Indicação de bens sujeitos
à penhora
O inciso V do art. 774 do
CPC/2015 estabelece, de forma clara, o dever de cooperação do executado com o
Poder Judiciário. Esse dever se concretiza na obrigação de informar ao Juízo
quais bens possui, onde se encontram e quais são seus respectivos valores,
desde que tais bens sejam passíveis de penhora.
Essa determinação judicial tem
natureza mandamental, conforme dispõe o art. 77, inciso IV, do CPC/2015. O
descumprimento dessa ordem, no prazo estabelecido pelo Magistrado, pode
acarretar sérias consequências para o executado — desde a imposição de multa
por ato atentatório à dignidade da justiça até a eventual caracterização do
crime de desobediência, nos termos do § 2º do art. 77 do CPC/2015.
Essas disposições demonstram uma
escolha legislativa clara em favor do fortalecimento dos instrumentos de
efetividade da execução. O legislador impôs ao executado deveres de cooperação
mais amplos e, como contrapartida, previu sanções mais rigorosas para o caso de
descumprimento.
Trata-se, portanto, de uma
mudança de paradigma no processo civil, voltada a conferir maior efetividade à
prestação jurisdicional executiva, reforçando a autoridade das decisões
judiciais e a satisfação do direito reconhecido ao exequente.
Intimação
O CPC estabelece como regra
geral, em seu art. 270, que “as intimações realizam-se, sempre que possível,
por meio eletrônico, na forma da lei”. Tal dispositivo reflete a modernização
do sistema processual e a busca pela celeridade e eficiência na prestação
jurisdicional.
É importante ressaltar que, nos
casos em que o legislador entendeu necessária a intimação pessoal, houve
expressa previsão legal nesse sentido.
No que se refere especificamente
à aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, não há nenhuma
previsão legal que imponha a necessidade de intimação pessoal do executado. O
silêncio do legislador, neste caso, não pode ser interpretado como uma lacuna a
ser preenchida pelo julgador, mas sim como uma opção legislativa deliberada
pela aplicação da regra geral de intimação por meio eletrônico.
Ademais, a própria natureza do
ato atentatório à dignidade da justiça, que configura violação aos deveres de
lealdade e cooperação processual, não justifica a exigência de tratamento
diferenciado quanto à forma de intimação. O executado que, devidamente representado
nos autos, pratica condutas que comprometem a efetividade da execução, não pode
se beneficiar de uma proteção processual não prevista em lei.
Entendimento diverso
representaria verdadeiro obstáculo à efetividade das sanções processuais
previstas para coibir condutas desleais, além de contrariar a sistemática
adotada pelo Código de Processo Civil, que privilegia a intimação eletrônica
como regra geral.
Desse modo, conclui-se que, para
a aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça não é
necessária a intimação pessoal do executado, sendo suficiente a intimação na
forma prevista no art. 270 do CPC/2015, ou seja, preferencialmente por meio
eletrônico, e, não sendo possível, pelos demais meios regulares de intimação
previstos na legislação processual.
Advertência
O legislador processual, no art. 772, II, do CPC/2015,
atribuiu ao Magistrado o poder-dever de advertir o executado sobre condutas que
configurem ato atentatório à dignidade da justiça, evidenciando uma preocupação
fundamental com a efetividade do processo executivo e a própria autoridade
jurisdicional:
Art. 772. O juiz pode, em
qualquer momento do processo:
(...)
II - advertir o executado de que
seu procedimento constitui ato atentatório à dignidade da justiça;
O referido dispositivo legal, ao
prever que compete ao juiz “advertir o executado de que seu procedimento
constitui ato atentatório à dignidade da justiça”, estabelece uma faculdade do
Magistrado, a ser exercida de acordo com as peculiaridades do caso concreto, e
não um requisito prévio e obrigatório para aplicação da multa por ato
atentatório à dignidade da justiça.
Tal interpretação decorre,
primeiramente, da própria natureza dos atos atentatórios à dignidade da
justiça, que configuram condutas manifestamente contrárias aos deveres de
lealdade e cooperação processual. O executado que, conscientemente, pratica
qualquer das condutas previstas nos incisos do art. 774 do CPC/2015, não pode
alegar desconhecimento de sua ilicitude processual para se eximir da sanção
correspondente.
Dessa forma, a advertência deve
ser compreendida como instrumento adicional posto à disposição do Magistrado
para prevenir a prática de atos atentatórios à dignidade da justiça, podendo ser utilizado quando o juiz verificar sua utilidade
concreta para o caso em análise. Trata-se de faculdade processual que não se
confunde com requisito prévio para aplicação da multa.
Assim, conclui-se que a multa por
ato atentatório à dignidade da justiça pode ser aplicada independentemente de
prévia advertência do executado, ficando a critério do Magistrado a utilização
da faculdade prevista no art. 772, II, do CPC/2015, de acordo com as
circunstâncias do caso concreto.
Em suma:
A aplicação da multa por ato atentatório à dignidade
da justiça, no processo de execução, prescinde de intimação pessoal do
executado e de advertência prévia sobre a possibilidade de aplicação.
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.947.791-GO, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em
12/2/2025 (Info 842).