Dizer o Direito

segunda-feira, 21 de abril de 2025

A aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, no processo de execução, prescinde de intimação pessoal do executado e de advertência prévia sobre a possibilidade de aplicação

Imagine a seguinte situação hipotética:

O Banco ingressou com execução de título extrajudicial contra João cobrando uma dívida de R$ 200 mil referente a um empréstimo bancário.

João foi citado e constituiu advogado para lhe representar nos autos (Dr. Felipe).

Em determinado momento processual, o juiz determinou que João indicasse bens passíveis de penhora no prazo de 15 dias.

A intimação foi realizada por meio eletrônico (sistema PJe), conforme previsão do art. 270 do CPC, e recebida pelo advogado constituído:

Art. 270. As intimações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei.

 

Contudo, apesar de regularmente intimado, João permaneceu inerte, não apresentando qualquer manifestação ou justificativa.

Diante dessa omissão, o banco requereu a aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, conforme prevê o parágrafo único do art. 774 do CPC, que estabelece essa sanção para a parte executada que não indicar bens sujeitos à penhora:

Art. 774. Considera-se atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado que:

(...)

V - intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e os respectivos valores, nem exibe prova de sua propriedade e, se for o caso, certidão negativa de ônus.

Parágrafo único. Nos casos previstos neste artigo, o juiz fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível nos próprios autos do processo, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material.

 

O juiz acolheu o pedido e fixou a multa.

João recorreu alegando apresentando dois argumentos:

1) para a aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, seria necessária a intimação pessoal do executado, não sendo suficiente a intimação eletrônica dirigida ao seu advogado;

2) seria necessário que, no despacho, tivesse constado expressamente a advertência sobre a possibilidade de imposição da sanção. Em outras palavras, para o recorrente o despacho deveria ter um trecho dizendo mais ou menos o seguinte: “Advirta-se expressamente que o descumprimento injustificado da presente ordem poderá ser caracterizado como ato atentatório à dignidade da justiça, nos termos do art. 774, V, do CPC/2015, ensejando a imposição de multa”.

 

Os argumentos de João foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

 

Ato atentatório à dignidade da justiça

O art. 774 do CPC/2015 estabelece um rol de condutas que são consideradas atentatórias à dignidade da justiça.

Essas previsões legais não constituem uma simples faculdade do Magistrado. São um verdadeiro poder-dever de impedir comportamentos que ameacem a efetividade da prestação jurisdicional no processo de execução.

A qualificação dessas condutas como atos atentatórios à dignidade da justiça permite a imposição de sanções processuais relevantes. Essas sanções têm como objetivo não apenas punir o comportamento indevido do executado, mas, sobretudo, garantir que a execução seja eficaz e que o direito do exequente seja satisfeito.

O sistema processual, ao prever esses mecanismos, reconhece que a execução não pode ser frustrada por atitudes desleais ou pela falta de cooperação do executado. Por isso, é indispensável que existam instrumentos capazes de assegurar que o Poder Judiciário faça cumprir suas decisões.

 

Indicação de bens sujeitos à penhora

O inciso V do art. 774 do CPC/2015 estabelece, de forma clara, o dever de cooperação do executado com o Poder Judiciário. Esse dever se concretiza na obrigação de informar ao Juízo quais bens possui, onde se encontram e quais são seus respectivos valores, desde que tais bens sejam passíveis de penhora.

Essa determinação judicial tem natureza mandamental, conforme dispõe o art. 77, inciso IV, do CPC/2015. O descumprimento dessa ordem, no prazo estabelecido pelo Magistrado, pode acarretar sérias consequências para o executado — desde a imposição de multa por ato atentatório à dignidade da justiça até a eventual caracterização do crime de desobediência, nos termos do § 2º do art. 77 do CPC/2015.

Essas disposições demonstram uma escolha legislativa clara em favor do fortalecimento dos instrumentos de efetividade da execução. O legislador impôs ao executado deveres de cooperação mais amplos e, como contrapartida, previu sanções mais rigorosas para o caso de descumprimento.

Trata-se, portanto, de uma mudança de paradigma no processo civil, voltada a conferir maior efetividade à prestação jurisdicional executiva, reforçando a autoridade das decisões judiciais e a satisfação do direito reconhecido ao exequente.

 

Intimação

O CPC estabelece como regra geral, em seu art. 270, que “as intimações realizam-se, sempre que possível, por meio eletrônico, na forma da lei”. Tal dispositivo reflete a modernização do sistema processual e a busca pela celeridade e eficiência na prestação jurisdicional.

É importante ressaltar que, nos casos em que o legislador entendeu necessária a intimação pessoal, houve expressa previsão legal nesse sentido.

No que se refere especificamente à aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, não há nenhuma previsão legal que imponha a necessidade de intimação pessoal do executado. O silêncio do legislador, neste caso, não pode ser interpretado como uma lacuna a ser preenchida pelo julgador, mas sim como uma opção legislativa deliberada pela aplicação da regra geral de intimação por meio eletrônico.

Ademais, a própria natureza do ato atentatório à dignidade da justiça, que configura violação aos deveres de lealdade e cooperação processual, não justifica a exigência de tratamento diferenciado quanto à forma de intimação. O executado que, devidamente representado nos autos, pratica condutas que comprometem a efetividade da execução, não pode se beneficiar de uma proteção processual não prevista em lei.

Entendimento diverso representaria verdadeiro obstáculo à efetividade das sanções processuais previstas para coibir condutas desleais, além de contrariar a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil, que privilegia a intimação eletrônica como regra geral.

Desse modo, conclui-se que, para a aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça não é necessária a intimação pessoal do executado, sendo suficiente a intimação na forma prevista no art. 270 do CPC/2015, ou seja, preferencialmente por meio eletrônico, e, não sendo possível, pelos demais meios regulares de intimação previstos na legislação processual.

 

Advertência

O legislador processual, no art. 772, II, do CPC/2015, atribuiu ao Magistrado o poder-dever de advertir o executado sobre condutas que configurem ato atentatório à dignidade da justiça, evidenciando uma preocupação fundamental com a efetividade do processo executivo e a própria autoridade jurisdicional:

Art. 772. O juiz pode, em qualquer momento do processo:

(...)

II - advertir o executado de que seu procedimento constitui ato atentatório à dignidade da justiça;

 

O referido dispositivo legal, ao prever que compete ao juiz “advertir o executado de que seu procedimento constitui ato atentatório à dignidade da justiça”, estabelece uma faculdade do Magistrado, a ser exercida de acordo com as peculiaridades do caso concreto, e não um requisito prévio e obrigatório para aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça.

Tal interpretação decorre, primeiramente, da própria natureza dos atos atentatórios à dignidade da justiça, que configuram condutas manifestamente contrárias aos deveres de lealdade e cooperação processual. O executado que, conscientemente, pratica qualquer das condutas previstas nos incisos do art. 774 do CPC/2015, não pode alegar desconhecimento de sua ilicitude processual para se eximir da sanção correspondente.

Dessa forma, a advertência deve ser compreendida como instrumento adicional posto à disposição do Magistrado para prevenir a prática de atos atentatórios à dignidade da  justiça, podendo ser utilizado  quando o juiz verificar sua utilidade concreta para o caso em análise. Trata-se de faculdade processual que não se confunde com requisito prévio para aplicação da multa.

Assim, conclui-se que a multa por ato atentatório à dignidade da justiça pode ser aplicada independentemente de prévia advertência do executado, ficando a critério do Magistrado a utilização da faculdade prevista no art. 772, II, do CPC/2015, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

 

Em suma:

A aplicação da multa por ato atentatório à dignidade da justiça, no processo de execução, prescinde de intimação pessoal do executado e de advertência prévia sobre a possibilidade de aplicação. 

STJ. 4ª Turma. REsp 1.947.791-GO, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 12/2/2025 (Info 842).


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