Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, morador Caxias do Sul/RS,
pretendia comprar um imóvel que estava sendo anunciado.
Pedro se apresentou como
procurador do proprietário do imóvel, que seria um idoso.
Para provar que seria
representante do proprietário, Pedro apresentou uma procuração pública lavrada em
um Tabelionato de Notas de Florianópolis/SC.
João, confiando na autenticidade
do documento, transferiu parte do valor da compra.
Logo depois, ele descobriu que a
procuração era fraudulenta. O verdadeiro proprietário nunca havia outorgado
essa procuração.
João ajuizou ação de indenização
por danos morais e materiais contra o tabelião responsável.
João quer ingressar com uma ação
de indenização por danos morais e materiais contra Pedro e contra o tabelião
responsável pelo cartório de Florianópolis, alegando que houve negligência na
prestação do serviço notarial.
Surgiu, no entanto, uma dúvida
quanto à competência. Essa ação deverá ser proposta:
1) na comarca de Caxias do
Sul/RS, onde o autor reside, com base no art. 101, I, do CDC, que permite ao
consumidor ajuizar a ação em seu domicílio; ou
2) ou na comarca de
Florianópolis/SC, sede do tabelionato?
O que decidiu o STJ?
A competência é do foro de Florianópolis/SC, sede da
serventia notarial, com fundamento no art. 53, III, “f” do CPC/2015:
Art. 53. É competente o foro:
(...)
III - do lugar:
(...)
f) da sede da serventia notarial ou de
registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do
ofício;
O art. 53, III, “f”, do CPC/2015 trouxe
uma solução mais clara e objetiva para esses casos, reconhecendo a
particularidade dos atos notariais e de registro, que possuem fé pública e são
praticados por delegação do Poder Público (art. 236 da CF/88).
Dessa forma, independentemente se
devem ser aplicadas as normas consumeristas nas relações que envolvem atividade
notarial, o Juízo competente para julgar ação de reparação de dano por ato
praticado em razão do ofício é o do lugar da sede da serventia notarial ou do
registro. Isso porque o art. 53, III, “f”, do CPC/2015 é norma específica e
mais recente que o Código de Defesa do Consumidor.
O CDC, em seu art. 101, I,
estabelece o domicílio do consumidor como um dos critérios para determinar o
foro competente nas ações de responsabilidade civil de fornecedores de produtos
e serviços. No entanto, o CPC, ao tratar especificamente de danos causados por
atos notariais e de registro, exige que o foro competente seja o da sede da
serventia.
Pela mesma razão, não se deve aplicar o inciso V do art. 53
do CPC, segundo o qual:
Art. 53. É competente o foro:
(...)
V - de domicílio do autor ou do local
do fato, para a ação de reparação de dano sofrido em razão de delito ou
acidente de veículos, inclusive aeronaves.
Pelo princípio da especialidade,
havendo norma específica que regula uma situação particular, ela se sobrepõe à
norma geral.
Além disso, por ser mais recente
que o Código de Defesa do Consumidor, o CPC expressa a intenção do legislador
de tratar os atos praticados por tabelionatos com regras processuais próprias,
especialmente considerando a natureza essencialmente estatal dessas atividades
de índole administrativa.
Portanto, ao considerar a
especialidade e a cronologia legislativa, a regra especial e posterior prevista
no Código de Processo Civil deve ser aplicada, prevalecendo sobre o critério
geral de outros normativos.
A utilização de norma geral
comprometeria a coerência do sistema processual e a eficácia do art. 53, III, “f”,
tornando-o inócuo e desprovido de efeito prático.
No mais, tratando-se de ação de
responsabilidade civil em que a causa de pedir é a falha no serviço prestado
pelo Tabelião no exercício de suas funções, a presença de outras partes no polo
passivo não é suficiente para alterar a competência territorial.
Em suma:
O foro competente para julgar ação de indenização por
danos morais e materiais decorrente de suposta falha de serviço notarial por
Tabelião é o da sede da serventia notarial ou do registro.
STJ. 4ª
Turma. REsp 2.011.651-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em
26/11/2024 (Info 23 - Edição Extraordinária).
DOD Teste:
revisão em perguntas
Qual é o critério
estabelecido pelo CPC/2015 para definir a competência territorial em ações de
reparação de dano por ato notarial?
A competência territorial é
definida pelo art. 53, III, “f”, do CPC/2015, que estabelece que a ação deve
ser proposta no foro da sede da serventia notarial ou de registro, uma vez que
os atos notariais possuem fé pública e são praticados por delegação do Poder
Público.
O Código de Defesa do
Consumidor (CDC) poderia ser aplicado para definir o foro competente nessa
situação?
Não, porque o CPC/2015, sendo
norma especial e mais recente, prevalece sobre a norma geral do CDC.
O art. 53, III, “f”, do CPC
estabelece regra específica para atos notariais, afastando a aplicação do art.
101, I, do CDC.
Além disso, a regra do CPC ainda
é mais recente que o CDC.
O fato de haver mais um réu
além do tabelião altera a competência territorial?
Não. A presença de outros réus na
ação não altera, em princípio, a regra de competência definida pelo art. 53,
III, “f”, do CPC/2015, pois a causa de pedir principal está relacionada à falha
na prestação do serviço notarial.
A competência territorial
poderia ser determinada pelo local onde ocorreu o dano?
Não, pois o inciso V do art. 53
do CPC, que estabelece o domicílio do autor ou o local do fato para ações de
reparação de dano, não se aplica a atos notariais. O critério específico do
art. 53, inciso III, “f”, do CPC, deve prevalecer.
Qual a justificativa para a
exigência de foro específico para ações contra tabeliães?
A justificativa está na natureza
essencialmente estatal dos atos notariais, que possuem fé pública e são
realizados por delegação do Poder Público. Assim, a fixação da competência no
foro da serventia garante maior segurança jurídica e previsibilidade.
A responsabilidade civil
dos tabeliães segue as mesmas regras aplicáveis a outros prestadores de
serviço?
Não inteiramente. Apesar de
existir uma relação de consumo em alguns casos, a responsabilidade civil dos
tabeliães tem regras processuais próprias devido à natureza pública de suas
atividades, como demonstrado pela fixação de competência específica no CPC.