segunda-feira, 10 de março de 2025
Não há injúria racial quando uma pessoa negra ofende uma pessoa branca por causa da cor de sua pele (não existe racismo reverso)
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João, um homem negro, e Pedro, homem
branco de descendência europeia, começaram a discutir por mensagens no
WhatsApp.
Em determinado momento, João
enviou uma mensagem para Pedro dizendo que ele era um “escravista cabeça branca
europeia”.
Sentindo-se ofendido, Pedro
procurou a delegacia e registrou um boletim de ocorrência.
O Ministério Público apresentou denúncia contra João,
imputando-lhe o crime de injúria racial, previsto, atualmente, no art. 2º-A da
Lei nº 7.716/89:
Art. 2º-A Injuriar alguém,
ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou
procedência nacional. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5
(cinco) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
Parágrafo único. A pena é
aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou
mais pessoas. (Incluído pela Lei nº 14.532, de 2023)
O juiz aceitou a denúncia.
A defesa de João impetrou habeas
corpus, argumentando que a conduta atribuída a ele não se enquadrava no crime
de injúria racial, pois a legislação sobre racismo tem como objetivo proteger
grupos historicamente discriminados, e pessoas brancas não são consideradas
minorias sociais nesse contexto.
Não existe “racismo reverso” no
ordenamento jurídico brasileiro, porque o racismo é um fenômeno estrutural
ligado à opressão de minorias, e não o contrário.
O que decidiu o STJ? Um homem
negro que ofende um homem branco, em razão da cor de sua pele, comete injúria
racial?
NÃO. Não há injúria racial quando
uma pessoa negra ofende uma pessoa branca por causa da cor de sua pele.
A Lei nº 7.716/1989, que trata dos crimes de racismo,
protege grupos minoritários historicamente discriminados. O art. 20-C da lei
estabelece:
Art. 20-C. Na interpretação desta
Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento
dado à pessoa ou
a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha,
medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos
em razão da cor, etnia, religião ou procedência.
Desse modo, fica evidente que os
crimes da Lei nº 7.716/1989 somente podem ser praticados contra pessoa ou
grupos minoritários.
Como pessoas brancas não são
minoria nesse contexto, não há como se falar em “racismo reverso”.
O que é racismo reverso?
“Racismo reverso” é um termo
frequentemente utilizado para sugerir que pessoas brancas podem sofrer racismo
por parte de pessoas negras ou de outros grupos racializados. No entanto, esse
conceito é amplamente criticado por estudiosos, juristas e ativistas dos
direitos humanos porque não se sustenta dentro da definição sociológica e
jurídica de racismo.
O conceito de racismo vai além de ofensas individuais. Ele é
um sistema de discriminação estruturado historicamente para manter privilégios
de determinados grupos. Conforme explicam Fernanda da Silva Lima e Gustavo
Borges:
“O racismo é
um fenômeno social construído com base no contexto histórico do século XVI,
notabilizando-se a partir de invasões, espoliações e dominação dos povos
europeus, especialmente sobre aqueles que vivam na América, África e Ásia.
Assim, a estigmatização humana não foi outra coisa senão uma forma de
hierarquizar e inferiorizar todos aqueles que foram considerados inferiores
pelos que se apresentaram como colonizadores” (LIMA, Fernanda da Silva; BORGES,
Gustavo. Publicidade e racismo reverso: o que uma campanha publicitária tem a
revelar sobre o racismo no Brasil. in Revista de Direito do Consumidor. vol.
123. ano 28. p. 37-76. São Paulo: Ed. RT, maio-jun. 2019).
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao criar o Protocolo
para Julgamento com Perspectiva Racial, reforçou que o racismo não se resume a
ações isoladas, mas é um fenômeno estrutural que afeta principalmente grupos
historicamente marginalizados, como a população negra:
“O racismo é
também definido como uma forma sistemática de discriminação baseada na raça,
que se expressa por práticas conscientes ou inconscientes, resultando em
desvantagens ou privilégios para indivíduos, conforme o grupo racial ao qual
pertencem. Trata-se de um tipo de retórica cultural e prática social que
funciona como um mecanismo psicológico e cultural, no qual membros do grupo
racial dominante negam sistematicamente o reconhecimento da humanidade comum a
todas as pessoas, com o objetivo de preservar seu status privilegiado em
diversas esferas da vida.” (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo
para Julgamento com Perspectiva Racial. Conselho Nacional de Justiça.
Disponível em:
https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2024/11/protocolo-para-julgamento-com-perspectiva-racial-1.pdf.)
Ainda que seja possível observar
que a evolução jurídica das sociedades, especialmente com base no conceito de
igualdade material derivado de movimentos Iluministas, tenha tentado arrefecer
as estruturas do racismo, o fato é que tal dinâmica segue estabelecida. Em
outras palavras, o racismo como fenômeno estruturado, acaba por se revelar,
muitas vezes, em atos e posturas silenciosas.
No Brasil, por exemplo, mesmo
após a Lei Áurea e a Proclamação da República, registra-se o conteúdo do
Decreto n. 528 de 28 de junho de 1890, em que se estabeleceu a livre entrada de
qualquer pessoa apta ao trabalho – não foragidos da Justiça de seus Países de
origem –, à exceção de indígenas da Ásia ou da África, legislando em clara
seletividade racial.
Após a Segunda Guerra Mundial,
como consectários ainda do nazifascimo que mirou perversamente também os
negros, foi editada a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as
formas de Discriminação Racial, adotada pela ONU em 21 de dezembro de 1965. A
convenção foi incorporada à legislação brasileira por meio do Decreto n. 65.810
de 8 de dezembro de 1969, assumindo, portanto, caráter cogente.
A assinatura dos documentos em
questão “apresentou como precedentes históricos os ingressos de dezessete novos
países africanos nas Nações Unidas em 1960, a realização da Primeira
Conferência da Cúpula dos Países Não Aliados, em Belgrado, em 1961, bem como o
ressurgimento de atividades nazifascistas na Europa e as preocupações
ocidentais como o antissemitismo” (PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o
Direito Constitucional Internacional. 22ª ed. - São Paulo: SaraivaJur, 2024. p.
211).
Esses precedentes históricos e
interpretativos levam a crer que a
injúria racial sempre objetivou tutelar – precisamente quando se refere à
elementar raça ou cor – os grupos de pessoas que, em razão destas características
físicas, foram alijadas de todos os benefícios sociais.
Mais recentemente, o Brasil
firmou, visando à reafirmação e aperfeiçoamento da Convenção mencionada, a
Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas
Correlatas de Intolerância que foi incorporada ao direito interno com status de
norma constitucional (art. 5º, § 3º, da Constitucional Federal) conforme o
Decreto n. 10.932/2022.
Na ocasião, a comunidade
interamericana levou em conta, expressamente, que as vítimas do racismo, da
discriminação racial e de outras formas correlatas de intolerância nas Américas
são, entre outras, afrodescendentes, povos indígenas, bem como outros grupos e
minorias raciais e étnicas ou grupos que por sua ascendência ou origem nacional
ou étnica são afetados por essas manifestações.
Assim, o caráter cogente de tais
normas de direitos humanos impõe que os Estados signatários implementem combate
efetivo ao racismo e à discriminação racial, abordando aspectos legais,
institucionais, educacionais, sociais e de conscientização.
Pelo Protocolo de Julgamento com
Perspectiva Racial editado pelo Conselho Nacional de Justiça propõe-se a adoção
de interpretações do direito que estejam atentas às realidades concretas,
especialmente aquelas vivenciadas pela população afrodescendente.
Por esse documento, chama-se atenção ao desejo de incutir no
âmbito do Judiciário Brasileiro o conceito de Consciência Racial, segundo o
qual:
“[...]
transcende a mera identificação étnico-racial, envolvendo o reconhecimento da
necessidade de enfrentar coletivamente os efeitos sistêmicos da discriminação
histórica entre negros e brancos. Isso inclui a percepção da predominância
branca em posições de poder e a responsabilidade de combater o sistema racial
estrutural na sociedade brasileira. Vai além de denúncias, exigindo posturas e
práticas antirracistas concretas.”
Adilson Moreira argumenta que “a
consciência racial pode ser classificada como uma expressão da consciência
cívica”, fundamentada no exercício da cidadania.
Portanto, como forma de
concretizar essas diretrizes, é fundamental que, no presente caso, afaste-se
qualquer miopia jurídica sobre o objeto de proteção do crime de injúria racial.
É dizer: o tipo penal do art. 2º-A da Lei 7.716/1989 não se configura no caso
de ofensa baseada na cor da pele que se dirija contra pessoa branca por esta
condição.
A expressão “grupos minoritários”
induvidosamente não se refere ao contingente populacional de determinada
coletividade, mas àqueles que, ainda que sejam numericamente majoritários, não
estão igualmente representados nos espaços de poder, público ou privado, que
são frequentemente discriminados inclusive pelo próprio Estado e que, na
prática, têm menos acesso ao exercício pleno da cidadania.
Não é possível acreditar que a
população brasileira branca possa ser considerada como minoritária. Por
conseguinte, não há como a situação narrada nos autos corresponder ao crime de
injúria racial.
Portanto, é inviável a
interpretação de existência do crime de injúria racial cometido contra pessoa,
cuja pele seja de cor branca, quando tal característica for o cerne da ofensa.
Isso não significa que
pessoas brancas não possam ser vítimas de ofensas
Vale esclarecer que a conclusão acima
exposta não resulta na impossibilidade de uma pessoa branca ser ofendida por
uma pessoa negra.
A honra de todas as pessoas é
protegida pela lei, inclusive pelo tipo penal da injúria simples (caput do art.
140 do Código Penal).
No entanto, no caso concreto, não
é possível enquadrar a situação como injúria racial, já que esse crime tem como
objetivo proteger grupos historicamente discriminados.
Ante o exposto, o STJ decidiu que
deve ser afastada qualquer interpretação que considere existente o crime de
injúria racial quando se tratar de ofensa dirigida a uma pessoa de pele de cor
branca, exclusivamente por esta condição.
Em suma:
A injúria racial não se configura em ofensas
dirigidas a pessoas brancas exclusivamente por esta condição, tendo em vista
que o racismo é um fenômeno estrutural que visa proteger grupos minoritários
historicamente discriminados.
STJ. 6ª
Turma. HC 929.002-AL, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 4/2/2025 (Info 839).
