Dizer o Direito

terça-feira, 11 de março de 2025

É possível o reconhecimento da manutenção da proteção do bem de família que, apesar de ter sido doado em fraude à execução aos seus filhos, ainda é utilizado pela família como moradia

Espécies de bem de família

No Brasil, atualmente, existem duas espécies de bem de família:

a) bem de família convencional ou voluntário (arts. 1711 a 1722 do Código Civil);

b) bem de família legal (Lei nº 8.009/90).

 

Bem de família legal

O bem de família legal consiste no imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar.

Considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente.

Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do Código Civil (bem de família convencional).

 

Proteção conferida ao bem de família legal

O bem de família legal é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nos incisos do art. 3º da Lei nº 8.009/90:

Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I - Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015

II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III - pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida; (Redação dada pela Lei nº 13.144 de 2015)

IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.

VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

 

Imagine agora a seguinte situação hipotética:

João e Regina, casados, moravam em uma casa própria juntamente com seu filho Gabriel (5 anos).

O casal tinha uma dívida de R$ 500 mil com o banco.

Ressalte-se que esse débito não se enquadrava em nenhuma das hipóteses excepcionais listadas nos incisos do art. 3º acima transcrito. Em outras palavras, a residência do casal não poderia ser penhorada para pagar essa dívida.

O banco propôs uma execução e no dia 24/04, João e Maria foram citados.

Com medo de perderem o imóvel para o banco e sem terem orientação jurídica adequada, João e Regina, no dia 27/04, fizeram a doação da casa em que moravam para o filho Gabriel.

Vale ressaltar que o imóvel continuou a ser utilizado como residência da entidade familiar.

O banco ficou sabendo do fato e alegou ao juiz que houve fraude à execução nos termos do art. 792, IV, do CPC/2015:

Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

(...)

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

 

O casal, agora assistido por advogado, argumentou que o imóvel era bem de família e, mesmo com a doação, continuou a ser utilizado como moradia familiar. Logo, deveria ser reconhecida a sua impenhorabilidade.

Eles argumentaram, em síntese, que a declaração de fraude à execução não afasta a impenhorabilidade do bem, já que este ainda era (e continua sendo) utilizado como lar pela família.

 

O STJ concordou com os argumentos dos devedores?

SIM. Havia divergência no STJ sobre esse assunto, mas atualmente prevalece que:

É possível o reconhecimento da manutenção da proteção do bem de família que, apesar de ter sido doado em fraude à execução aos seus filhos, ainda é utilizado pela família como moradia. 

STJ. 2ª Seção. EAREsp 2.141.032-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 6/2/2025 (Info 840).

 

É necessário distinguir os efeitos da fraude à execução da aplicação da regra de impenhorabilidade do bem de família.

O reconhecimento de que uma alienação ocorreu em fraude à execução resulta apenas na declaração de sua ineficácia em relação ao exequente, conforme dispõe expressamente o art. 792, § 1º, do CPC:

Art. 792 (...)

§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.

 

Assim, a consequência direta da fraude à execução é a ineficácia da alienação em relação ao exequente:

“O ato cometido em fraude à execução é válido, porém ineficaz perante o credor, ou seja, o ato não lhe é oponível” (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Código de Processo Civil comentado. 7. ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 1365).

 

A ineficácia da alienação não necessariamente afasta a proteção do bem de família.

É preciso analisar:

- a situação do imóvel antes da alienação questionada;

- para então verificar se houve alteração na sua destinação depois da alienação.

 

• Antes de ser alienado, o imóvel era bem de família? Sim.

• A dívida que estava sendo executada se enquadrava em alguma das exceções previstas no art. 3º da Lei nº 8.009/1990? Não.

• Depois de alienado, o imóvel continuou sendo a residência daquela mesma entidade familiar? Sim.

 

Ocorrendo esse cenário, a proteção da impenhorabilidade do bem de família permanece aplicável, pois não houve alteração na situação fática do imóvel, independentemente da alienação.

Nessa hipótese, não há interesse na declaração de ineficácia da alienação em relação ao exequente, uma vez que, mesmo que a alienação fosse considerada ineficaz, o imóvel continuaria sendo impenhorável.

Esse entendimento evita possíveis atos de má-fé em prejuízo do exequente. Caso o imóvel não tivesse a qualidade de bem de família antes da alienação fraudulenta ou se, após a alienação, ele deixasse de servir como residência da entidade familiar, haveria interesse na declaração de ineficácia da alienação, possibilitando a penhora do bem.

Admitir que uma alienação realizada durante uma execução – mas que não cause prejuízo ao exequente – possa afastar a proteção da impenhorabilidade do bem de família e desabrigar a entidade familiar que nele reside desde antes da alienação ultrapassaria os próprios efeitos legais da fraude à execução (art. 792, § 1º, do CPC). Além disso, essa interpretação violaria o direito à moradia e à dignidade, valores protegidos pela Lei nº 8.009/1990.

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Fundação Getúlio Vargas - FGV - Prova: FGV - TJ SC - Juiz Substituto - 2024

João era sócio da empresa Alfa Ltda. que foi dissolvida irregularmente, razão pela qual a Fazenda Pública requereu sua inclusão no polo passivo na qualidade de responsável tributário em razão de atos praticados com excesso de poderes.

Ao ser citado em execução, doa seu único bem familiar, um apartamento de cinco quartos em um bairro de classe média alta, para seus três filhos, José, Antônio e Maria em quotas-partes iguais.

Segundo recente entendimento dos Tribunais Superiores, a respeito da operação, é correto afirmar que:

A transferência é imune aos efeitos da execução, não havendo que se falar em fraude à execução. (Correto)


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