Imagine a seguinte situação
hipotética:
João trabalhava como motorista cadastrado na empresa Uber
há cinco meses. Determinado dia, ele recebeu um e-mail da empresa avisando que seu
cadastro estava suspenso.
João não conseguiu informações sobre o motivo da
suspensão.
Algum tempo depois, ele foi finalmente descredenciado.
Vale ressaltar que o motorista não conseguiu sequer sacar
o valor de R$ 185,00 que estava na sua conta da Uber.
Diante desse cenário, João ajuizou ação de obrigação de
fazer cumulada com pedido de danos morais e materiais em face da Uber.
A ação foi proposta na Justiça Estadual (vara cível).
O juiz, contudo, de ofício, declarou a sua incompetência
e remeteu os autos à Justiça do Trabalho.
João não concordou e recorreu alegando que a relação
objeto da demanda ocorre entre o motorista e aquele que solicita a viagem,
atuando a plataforma como mera intermediária entre aqueles que participam da
contratação do serviço.
Defendeu que a plataforma permite o acesso do motorista
ao trabalho, que é prestado na relação jurídica principal, aquela entre
motorista e passageiro, não estando configurada a relação de trabalho com a
plataforma.
Destacou que o legislador estabeleceu expressamente que
os meios tecnológicos que possibilitam a realização do transporte privado de
passageiros são meros meios de cadastro de usuários.
A questão chegou até o STJ. De quem é a competência
para julgar essa ação: Justiça comum ou Justiça do Trabalho?
Justiça comum.
O sistema jurídico brasileiro, até a presente data,
oferece duas hipóteses de enquadramento para prestadores de serviço, empregado
e autônomo. Os requisitos vinculados a ambas as categorias isoladamente não
parecem necessariamente refletir os complexos contornos da atividade exercida
neste segmento.
Os requisitos legais cumulativos necessários à
configuração da condição de empregado, previstos nos arts. 2º e 3º da
Consolidação das Leis do Trabalho, consistem em pessoalidade, não
eventualidade, onerosidade e subordinação. Por exclusão, não preenchidos tais
requisitos, necessariamente cumulativos, e existindo legislação específica que
disciplina a relação jurídica, ainda que não de modo extenso, evidencia-se a
hipótese de relação de prestação de serviço autônomo.
De fato, os prestadores de serviço de transporte privado
via plataformas digitais têm sua atividade prevista em lei especial, qual seja,
Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Ademais, no exercício de sua
função, não preenchem os requisitos cumulativos acima descritos, na medida em
que não satisfeitos os requisitos da não eventualidade e subordinação.
Motoristas de aplicativos, como são popularmente
conhecidos, exercem liberdade plena
no que se refere à
escolha do momento
em que se
colocam à disposição na plataforma. Não eventualmente, a atividade é
exercida como forma de complementação de renda em períodos determinados
exclusivamente pelo motorista.
Além disso, a prestação do serviço de transporte via
plataformas não denota subordinação. Existem diversas teorias a fundamentar tal
requisito, a exemplo da subordinação objetiva e estrutural, que buscam estender
seu escopo de aplicação. Contudo, mesmo diante dessas teorias mais abrangentes,
o que se verifica é que as plataformas, ao disponibilizarem o acesso ao
serviço, estabelecem uma série de condições mínimas de comportamento ao
prestador de serviço e ao consumidor, bem como condições de estado ao veículo
particular que será utilizado, tudo com a finalidade de garantir segurança e
efetividade ao negócio jurídico intermediado.
A interpretação de tais condições como subordinação
conduz a uma intervenção no exercício das relações particulares e na dinâmica
da atividade econômica que descaracterizaria não só a relação ora em debate,
mas outros contratos de natureza empresária que manifestamente estabelecem
condições, padronizações e limitações no exercício da relação negocial e não
por isso configuram relação de emprego ou trabalho.
Entendimento semelhante prevalece no julgamento de
reclamações constitucionais pelo STF:
O reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista parceiro
e as plataformas de mobilidade desconsidera as conclusões do Supremo Tribunal
Federal no julgamento da ADC 48, da ADPF 324 e da ADI 5835 MC, que permitem
diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de
emprego regido pela CLT.
Reclamação julgada procedente.
STF. 1ª Turma. Rcl 60347, Rel. Min. Alexandre De Moraes, julgado
em 05/12/2023.
No mesmo sentido, o STJ se manifestou no julgamento do
Conflito de Competência nº 164.544/MG e fixou a competência da Justiça Comum
para julgamento das demandas análogas a dos autos:
Compete à justiça comum estadual julgar ação de obrigação de
fazer, cumulada com reparação de danos materiais e morais, ajuizada por
motorista de aplicativo, pretendendo a reativação de sua conta UBER para que
possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços.
As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram
criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia
compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores
de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de
tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como
empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária
da plataforma.
STJ. 2ª Seção. CC 164544-MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em
28/08/2019 (Info 655).
À luz da legislação vigente atualmente verifica-se que os
motoristas, prestadores do serviço de transporte, não preenchem os requisitos
necessários à configuração de relação de emprego ou trabalho e atuam de modo
autônomo, sem vínculo de emprego com a empresa gestora da plataforma digital em
questão.
Assim, o sistema de transporte privado individual
intermediado a partir de provedores de rede de compartilhamento detém natureza
de cunho civil.
Da competência para julgamento de pretensão fundada
em descumprimento contratual pela empresa gestora de plataforma digital
A pretensão formulada pelo autor consiste na reativação
de sua conta perante a plataforma para que siga prestando o serviço de
transporte privado de pessoas, bem como a reparação pelos danos decorrentes da
suspensão.
A causa de pedir da demanda em questão origina-se do
alegado descumprimento do contrato de intermediação para a prestação de
serviços de transporte firmado entre as partes.
Com efeito, os fundamentos de fato e de direito da causa
não dizem respeito a uma eventual relação de emprego havida entre as partes,
tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista.
O pedido decorre do contrato firmado com empresa desenvolvedora e gestora de
plataforma digital, de cunho eminentemente civil.
A pretensão em
julgamento limita-se, portanto,
à obrigação de fazer decorrente de instrumento contratual somada à reparação
civil decorrente, em que estão estabelecidas condições gerais de natureza
civil.
A autoridade que melhor tem condições de oferecer
adequada jurisdição ao caso é aquela habituada à matéria, às relações, ao
procedimento que se discute. Na hipótese, a Justiça Comum.
Consequentemente, na medida em que a causa de pedir e o
pedido trazido na inicial não se referem à existência de relação de trabalho
entre as partes, limitando-se o conflito a questões de relação jurídica de
cunho eminentemente civil, não está configurada hipótese de competência da
justiça especializada.
Diante disso, o STJ reconheceu o caráter civil da relação
jurídica entre o autor e a plataforma Uber e, em consequência, determinou o
retorno dos autos à Justiça comum para julgamento do mérito.
Em suma:
Compete à Justiça comum, e não à Justiça do Trabalho,
julgar demanda ajuizada por motorista de aplicativo em face da empresa gestora
de plataforma digital, tendo em vista a relação de natureza civil existente
entre as partes.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.144.902-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
3/12/2024 (Info 838).