Dizer o Direito

sábado, 8 de março de 2025

De quem é a competência para julgar ação de motorista contra a Uber questionando o fato de ele ter sido excluído da plataforma: Justiça do Trabalho ou Justiça Comum estadual?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João trabalhava como motorista cadastrado na empresa Uber há cinco meses. Determinado dia, ele recebeu um e-mail da empresa avisando que seu cadastro estava suspenso.

João não conseguiu informações sobre o motivo da suspensão.

Algum tempo depois, ele foi finalmente descredenciado.

Vale ressaltar que o motorista não conseguiu sequer sacar o valor de R$ 185,00 que estava na sua conta da Uber.

Diante desse cenário, João ajuizou ação de obrigação de fazer cumulada com pedido de danos morais e materiais em face da Uber.

A ação foi proposta na Justiça Estadual (vara cível).

O juiz, contudo, de ofício, declarou a sua incompetência e remeteu os autos à Justiça do Trabalho.

João não concordou e recorreu alegando que a relação objeto da demanda ocorre entre o motorista e aquele que solicita a viagem, atuando a plataforma como mera intermediária entre aqueles que participam da contratação do serviço.

Defendeu que a plataforma permite o acesso do motorista ao trabalho, que é prestado na relação jurídica principal, aquela entre motorista e passageiro, não estando configurada a relação de trabalho com a plataforma.

Destacou que o legislador estabeleceu expressamente que os meios tecnológicos que possibilitam a realização do transporte privado de passageiros são meros meios de cadastro de usuários.

 

A questão chegou até o STJ. De quem é a competência para julgar essa ação: Justiça comum ou Justiça do Trabalho?

Justiça comum.

 

O sistema jurídico brasileiro, até a presente data, oferece duas hipóteses de enquadramento para prestadores de serviço, empregado e autônomo. Os requisitos vinculados a ambas as categorias isoladamente não parecem necessariamente refletir os complexos contornos da atividade exercida neste segmento.

Os requisitos legais cumulativos necessários à configuração da condição de empregado, previstos nos arts. 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, consistem em pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação. Por exclusão, não preenchidos tais requisitos, necessariamente cumulativos, e existindo legislação específica que disciplina a relação jurídica, ainda que não de modo extenso, evidencia-se a hipótese de relação de prestação de serviço autônomo.

De fato, os prestadores de serviço de transporte privado via plataformas digitais têm sua atividade prevista em lei especial, qual seja, Lei da Política Nacional de Mobilidade Urbana. Ademais, no exercício de sua função, não preenchem os requisitos cumulativos acima descritos, na medida em que não satisfeitos os requisitos da não eventualidade e subordinação.

Motoristas de aplicativos, como são popularmente conhecidos, exercem liberdade plena  no  que  se  refere  à  escolha  do  momento  em  que  se  colocam à disposição na plataforma. Não eventualmente, a atividade é exercida como forma de complementação de renda em períodos determinados exclusivamente pelo motorista.

Além disso, a prestação do serviço de transporte via plataformas não denota subordinação. Existem diversas teorias a fundamentar tal requisito, a exemplo da subordinação objetiva e estrutural, que buscam estender seu escopo de aplicação. Contudo, mesmo diante dessas teorias mais abrangentes, o que se verifica é que as plataformas, ao disponibilizarem o acesso ao serviço, estabelecem uma série de condições mínimas de comportamento ao prestador de serviço e ao consumidor, bem como condições de estado ao veículo particular que será utilizado, tudo com a finalidade de garantir segurança e efetividade ao negócio jurídico intermediado.

A interpretação de tais condições como subordinação conduz a uma intervenção no exercício das relações particulares e na dinâmica da atividade econômica que descaracterizaria não só a relação ora em debate, mas outros contratos de natureza empresária que manifestamente estabelecem condições, padronizações e limitações no exercício da relação negocial e não por isso configuram relação de emprego ou trabalho.

Entendimento semelhante prevalece no julgamento de reclamações constitucionais pelo STF:

O reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista parceiro e as plataformas de mobilidade desconsidera as conclusões do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 48, da ADPF 324 e da ADI 5835 MC, que permitem diversos tipos de contratos distintos da estrutura tradicional do contrato de emprego regido pela CLT.

Reclamação julgada procedente.

STF. 1ª Turma. Rcl 60347, Rel. Min. Alexandre De Moraes, julgado em 05/12/2023.

 

No mesmo sentido, o STJ se manifestou no julgamento do Conflito de Competência nº 164.544/MG e fixou a competência da Justiça Comum para julgamento das demandas análogas a dos autos:

Compete à justiça comum estadual julgar ação de obrigação de fazer, cumulada com reparação de danos materiais e morais, ajuizada por motorista de aplicativo, pretendendo a reativação de sua conta UBER para que possa voltar a usar o aplicativo e realizar seus serviços.

As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma.

STJ. 2ª Seção. CC 164544-MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 28/08/2019 (Info 655).

 

À luz da legislação vigente atualmente verifica-se que os motoristas, prestadores do serviço de transporte, não preenchem os requisitos necessários à configuração de relação de emprego ou trabalho e atuam de modo autônomo, sem vínculo de emprego com a empresa gestora da plataforma digital em questão.

Assim, o sistema de transporte privado individual intermediado a partir de provedores de rede de compartilhamento detém natureza de cunho civil.

 

Da competência para julgamento de pretensão fundada em descumprimento contratual pela empresa gestora de plataforma digital

A pretensão formulada pelo autor consiste na reativação de sua conta perante a plataforma para que siga prestando o serviço de transporte privado de pessoas, bem como a reparação pelos danos decorrentes da suspensão.

A causa de pedir da demanda em questão origina-se do alegado descumprimento do contrato de intermediação para a prestação de serviços de transporte firmado entre as partes.

Com efeito, os fundamentos de fato e de direito da causa não dizem respeito a uma eventual relação de emprego havida entre as partes, tampouco veiculam a pretensão de recebimento de verbas de natureza trabalhista. O pedido decorre do contrato firmado com empresa desenvolvedora e gestora de plataforma digital, de cunho eminentemente civil.

A   pretensão   em   julgamento   limita-se, portanto, à obrigação de fazer decorrente de instrumento contratual somada à reparação civil decorrente, em que estão estabelecidas condições gerais de natureza civil.

A autoridade que melhor tem condições de oferecer adequada jurisdição ao caso é aquela habituada à matéria, às relações, ao procedimento que se discute. Na hipótese, a Justiça Comum.

Consequentemente, na medida em que a causa de pedir e o pedido trazido na inicial não se referem à existência de relação de trabalho entre as partes, limitando-se o conflito a questões de relação jurídica de cunho eminentemente civil, não está configurada hipótese de competência da justiça especializada.

Diante disso, o STJ reconheceu o caráter civil da relação jurídica entre o autor e a plataforma Uber e, em consequência, determinou o retorno dos autos à Justiça comum para julgamento do mérito.

 

Em suma:

Compete à Justiça comum, e não à Justiça do Trabalho, julgar demanda ajuizada por motorista de aplicativo em face da empresa gestora de plataforma digital, tendo em vista a relação de natureza civil existente entre as partes. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.144.902-MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 3/12/2024 (Info 838).

 


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