Dizer o Direito

domingo, 2 de março de 2025

As matérias de ordem pública, embora passíveis de conhecimento pelo juiz de ofício, são insuscetíveis de nova deliberação judicial, ante a preclusão pro judicato

Imagine a seguinte situação hipotética:

A empresa Alfa ajuizou ação contra o Banco Econômico.

A sentença foi procedente e transitou em julgado.

Além do valor principal, o Banco Econômico foi condenado a pagar R$ 500 mil de honorários advocatícios de sucumbência em favor de João, advogado da empresa Alfa.

João iniciou cumprimento de sentença para cobrar os honorários. Ocorre que o Banco Econômico entrou em processo de recuperação extrajudicial.

Diante disso, João peticionou requerendo a substituição do polo passivo da execução sob o argumento de que o Banco Econômico havia sido adquirido pelo Banco Primavera, que teria passado a ser seu sucessor.

 

Exceção de pré-executividade

O Banco Primavera apresentou exceção de pré-executividade alegando que:

• a operação de compra foi apenas parcial, não incluindo essa dívida específica;

• o Banco Econômico ainda mantinha sua personalidade jurídica e o Banco Primavera seria pessoa jurídica distinta, não podendo responder pelo débito.

 

Em maio de 2012, o juiz rejeitou a exceção de pré-executividade e decidiu que o Banco Primavera era sim o sucessor e deveria responder pela dívida.

O Banco Primavera interpôs agravo de instrumento contra essa decisão, mas o Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, sendo mantida a decisão que reconheceu sua legitimidade passiva. Não houve recurso contra essa decisão do TJ.

 

Impugnação ao cumprimento de sentença

Dois meses depois, em julho de 2012, o Banco Primavera apresentou impugnação ao cumprimento de sentença na qual alegou novamente a sua ilegitimidade passiva, usando os mesmos argumentos já apresentados na exceção de pré-executividade.

O juízo afirmou que esse argumento da ilegitimidade já foi apreciado e que não poderia mais ser rediscutido, tendo havido preclusão.

O TJ manteve a decisão do magistrado.

Inconformado, o Banco Primavera recorreu ao STJ argumentando que:

• a decisão que, na fase de cumprimento de sentença, redireciona a execução contra alguém que não participou do processo original é uma decisão interlocutória. Por estar sujeita à preclusão, essa decisão não gera coisa julgada material;

• a preclusão é uma sanção imposta às partes. No entanto, enquanto a jurisdição não estiver esgotada, a instância ordinária pode voltar a analisar questões de ordem pública, como a legitimidade passiva. Nesse caso, não há preclusão para o juízo (preclusão pro judicato), independentemente do grau de jurisdição ordinária.

 

Os argumentos do Banco Primavera foram acolhidos pelo STJ?

NÃO.

Por muito tempo, o STJ permitiu a rediscussão de matérias de ordem pública, pois, como podem ser analisadas de ofício pelo juiz em qualquer fase ou instância, não estariam sujeitas à preclusão. Além disso, a preclusão é uma restrição imposta apenas às partes, não ao magistrado.

No entanto, esse entendimento tem sido relativizado na jurisprudência do STJ, que passou a considerar que, se já houve uma decisão judicial sobre determinada matéria, mesmo que de ordem pública, ocorre a preclusão consumativa. Isso impede que o juiz volte a examinar a questão, caracterizando a chamada preclusão pro judicato.

Nem mesmo as matérias de ordem pública arroladas no art. 485, § 3º, do CPC/2015 – o qual permite ao juiz delas conhecer de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, tais como os pressupostos processuais e as condições da ação –, estão imunes à preclusão consumativa.

O dispositivo legal em questão deve ser interpretado corretamente, pois a possibilidade de o juiz conhecer matérias de ordem pública a qualquer tempo e grau de jurisdição ordinária, conforme a jurisprudência do STJ, não significa que ele possa reexaminá-las. Isso ocorre porque não há previsão legal que afaste a preclusão dessas questões quando já foram decididas.

São conceitos distintos: o poder do juiz de conhecer de ofício matérias de ordem pública representa uma exceção ao princípio dispositivo, permitindo a análise de temas não suscitados pelas partes. Já a preclusão consumativa impede a repetição de um ato processual, ou seja, veda o reexame de matéria já decidida.

Dessa forma, conforme a jurisprudência do STJ, o conhecimento de ofício dessas matérias encontra limite na preclusão consumativa, tornando-as insuscetíveis de nova deliberação pelo juiz, caracterizando a preclusão pro judicato.

Além disso, “o instituto da preclusão pro judicato tem por objetivo preservar a ordem pública e a segurança jurídica, atingindo, assim, o exercício da função jurisdicional” (HC n. 416.454/TO, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 28/11/2017, DJe de 1º/12/2017).

Na mesma perspectiva, já assentou a Primeira Turma desta Corte que, “o instituto da preclusão pro judicato atinge diretamente o exercício da função jurisdicional, sendo imperioso o seu reconhecimento pelo magistrado, independentemente da provocação das partes, para a preservação da ordem pública e da segurança jurídica” (EDcl no REsp n. 1.513.017/MA, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 13/6/2017, DJe de 14/9/2017).

Ressalte-se, ainda, que a marcha processual possui um viés prospectivo, pois “a própria etimologia da palavra processo indica um caminhar para frente. Originado do latim (processus), o vocábulo significa avançar, andar para frente, progredir. No direito, o processo guarda o mesmo sentido. Para alcançar bom termo, o processo deve seguir para frente, não convivendo bem com idas e voltas, com progressos e retrocessos” (Código de processo civil interpretado / coordenação de Antônio Carlos Marcatto – ed. – São Paulo: Atlas, 2022, ePUB, p. 1.022).

Segundo externado pela Quarta Turma, “decorre a preclusão do fato de ser o processo uma sucessão de atos que devem ser ordenados por fases lógicas, a fim de que se obtenha a prestação jurisdicional, com precisão e rapidez” (AgInt no AgInt no AREsp n. 2.127.670/PR, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 12/6/2023, DJe de 15/6/2023).

Portanto, conclui-se que as matérias de ordem pública, embora passíveis de conhecimento pelo juiz de ofício, quando ainda não decididas, são insuscetíveis de nova deliberação judicial, ante a preclusão pro judicato, que é espécie de preclusão consumativa.

 

Em suma:

As matérias de ordem pública, embora passíveis de conhecimento pelo juiz de ofício, são insuscetíveis de nova deliberação judicial, ante a preclusão pro judicato, que é espécie de preclusão consumativa.

STJ. 2ª Seção. EREsp 1.488.048-MT, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 13/11/2024 (Info 23 - Edição Extraordinária).


Dizer o Direito!