Dizer o Direito

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Os contratos antigos de cessão de direitos valem também para as novas tecnologias de streaming (ex: Spotify). Veja o que do STJ decidiu no caso Roberto e Erasmo Carlos

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Roberto Carlos e Erasmo Carlos são dois dos maiores nomes da música brasileira. Eles tiveram o auge do sucesso na época da Jovem Guarda, mas até hoje possuem canções que encantam milhões de brasileiros.

Erasmo Carlos, infelizmente, faleceu em novembro de 2022.

Entre 1964 e 1987, Roberto e Erasmo assinaram diversos contratos com Editora e Importadora Musical Fermata do Brasil LTDA. (“Fermata”), transferindo os direitos patrimoniais de suas composições.

Nos contratos, estava escrito claramente que os compositores “cediam e transferiam à editora, de forma total e definitiva, todos os seus direitos patrimoniais de autor sobre as obras musicais”. Por força do contrato, a editora poderia explorar as músicas de qualquer forma, incluindo “reprodução por qualquer processo ou meio”.

Em 2020, ou seja, cerca de quarenta e cinco anos depois, Roberto e Erasmo descobriram que suas músicas estavam disponíveis em plataformas de streaming como Spotify e Apple Music, e a Fermata estava recebendo os valores referentes a essas reproduções digitais.

Insatisfeitos com a situação, eles ingressaram com ação contra a editora alegando, em síntese, que:

• os contratos assinados não eram de cessão definitiva, mas sim contratos de edição com prazo determinado. Explicando melhor: no contrato de edição há transferência limitada dos direitos, permitindo-se, inclusive, a rescisão do contrato em determinadas hipóteses (não há uma cessão definitiva dos direitos patrimoniais);

• mesmo que fossem contratos de cessão, a editora não poderia disponibilizar as músicas em streaming sem autorização específica, já que essa tecnologia não existia na época da assinatura.

 

Argumentaram que os contratos, embora formalmente denominados como de cessão, tinham como essência o licenciamento para exploração comercial de suas obras musicais, configurando, assim, contratos de edição, os quais são denunciáveis a qualquer tempo.

 

Os autores pediram, em resumo:

• a declaração de que os contratos celebrados eram de edição – permitindo a rescisão unilateral e a desvinculação dos direitos patrimoniais cedidos – e, consequentemente, a rescisão do contrato;

• o reconhecimento de que a editora não detém direitos para explorar as obras em plataformas de streaming, por não ter obtido autorização específica para essa forma de utilização;

• indenização por supostos prejuízos decorrentes da exploração irregular.

 

A Fermata contestou afirmando que os contratos possuíam cláusulas que configuravam cessão definitiva de direitos patrimoniais. A editora defendeu que todos os contratos tinham como objeto a cessão integral dos direitos patrimoniais sobre as obras e que sua vigência era vinculada ao período de proteção das obras.

 

Sentença de improcedência, mantida pelo TJSP

O juízo de primeira instância entendeu que todos os contratos tinham natureza de cessão de direitos, julgando improcedentes os pedidos.

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve a sentença.

 

Recurso especial

Inconformados, os autores interpuseram recurso especial.

Os recorrentes alegaram, dentre outros argumentos, que a editora não tinha direito de explorar as obras musicais em plataformas de streaming, pois essa modalidade de exploração não existia na época da celebração dos contratos (décadas de 1960 a 1980).

Sustentaram que, para explorar as obras em formato digital, seria necessária uma autorização específica dos titulares dos direitos autorais.

Eles invocaram o art. 49, V, da Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais), que estabelece que a cessão de direitos só se aplica às modalidades de utilização existentes na data do contrato. Como o streaming não existia na época, a editora não poderia explorar as obras nessa modalidade sem uma nova autorização. Veja a redação do dispositivo:

Art. 49. Os direitos de autor poderão ser total ou parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:

(...)

V - a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;

 

O STJ concordou com os argumentos dos recorrentes? O art. 49, V, da Lei nº 9.610/1998 foi aplicado no caso concreto?

NÃO.

 

Qual é a diferença entre contrato de cessão e de edição?

Os contratos usualmente celebrados por titulares de direitos autorais são os de cessão e os de edição.

Contratos de cessão: caracterizam-se por implicar a transferência dos direitos patrimoniais do autor (definitiva ou temporária, total ou parcial). Os direitos patrimoniais do autor são transferidos com poucas reservas.

Contratos de edição: são aqueles pelos quais o contratante (editor) assume a obrigação de publicar ou fazer publicar obra artística, tendo como principal característica a sua duração limitada (seja quanto ao tempo de vigência seja quanto ao número de edições que serão objeto de publicação). O autor autoriza o editor a publicar a obra com tiragem de exemplares e tempo definidos no contrato.

 

No caso concreto, os autores celebraram contrato de cessão com a editora

As instâncias ordinárias e o STJ entenderam que ficou provado que, nos contratos celebrados, houve a transferência dos direitos autorais de forma definitiva, considerando que haja a cessão compreendeu todo o período de proteção legal das obras.

Em outras palavras, o STJ entendeu que os autores celebraram contratos de cessão com a editora.

 

De acordo com a atual lei de direitos autorais, para a utilização das obras musicais via internet (tecnologia streaming) é necessária autorização específica do titular dos direitos de autor

A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que a tecnologia streaming enquadra-se nas disposições normativas do art. 29, VII, VIII, “i”, IX e X, da Lei nº 9.610/98, configurando, portanto, modalidade de exploração econômica das obras musicais a demandar autorização prévia e expressa pelos titulares dos direitos autorais. Desse modo, tal forma de utilização das obras musicais dos recorrentes, em princípio, necessitaria de sua autorização específica.

Nesse sentido:

A transmissão de músicas por meio da rede mundial de computadores mediante o emprego da tecnologia streaming (webcasting e simulcasting) demanda autorização prévia e expressa pelo titular dos direitos de autor e caracteriza fato gerador de cobrança pelo ECAD relativa à exploração econômica desses direitos.

STJ. 2ª Seção. REsp 1559264/RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 08/02/2017 (Info 597).

 

De acordo com o art. 49, V, da atual Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/1998), a cessão a terceiros “só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato”. Eis o teor do dispositivo legal:

Art.  49.  Os  direitos  de  autor  poderão  ser  total  ou  parcialmente transferidos a terceiros, por ele ou por seus sucessores, a título universal ou singular, pessoalmente ou por meio de representantes com poderes especiais, por meio de licenciamento, concessão, cessão ou por outros meios admitidos em Direito, obedecidas as seguintes limitações:

[...]

V - a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato;

[...]

 

Na época da assinatura dos contratos, a legislação não exigia autorização específica

Essa proteção específica conferida aos autores (art. 49, V) não estava presente no ordenamento jurídico anteriormente à edição da Lei nº 9.610/1998.

Antes da Lei nº 9.610/1998 se o compositor de uma música assinasse um contrato de cessão de direitos autorais, essa cessão abrangia também as modalidades de utilização que viessem a surgir após a data do contrato.

 

No caso concreto, os contratos firmados por Roberto e Erasmo foram celebrados antes da Lei nº 9.610/1998. Mesmo assim, é possível aplicar o art. 49, V, da Lei nº 9.610/1998 para impedir que, atualmente, essas músicas sejam exploradas nas plataformas de streaming?

NÃO. Essa exigência imposta pelo art. 49, V, da Lei nº 9.610/1998 não pode ser aplicada para esses contratos porque senão isso seria uma aplicação retroativa da Lei nº 9.610/1998, o que é vedado em razão do princípio da irretroatividade da lei.

O art. 49, V, da Lei nº 9.610/1998 somente pode ser aplicado para contratos celebrados depois de sua vigência.

 

A proteção conferida pelo art. 49, V, da Lei n. 9.610/1998, no sentido de que “a cessão só se operará para modalidades de utilização já existentes à data do contrato”, não se aplica a contratos celebrados antes de sua vigência.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.029.976-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/11/2024 (Info 23 - Edição Extraordinária).

 

Em suma:

Como no momento da celebração dos contratos, não existia, no ordenamento jurídico, um dispositivo semelhante ao art. 49, V, da Lei nº 9.610/1998, entende-se que os autores, ao cederem seus direitos autorais, autorizaram que a editora explorasse essas obras em outras tecnologias que viriam a surgir depois, como é o caso do streaming.


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