Imagine a seguinte situação
hipotética:
João decidiu construir um complexo turístico às margens
de um rio, em uma área que é considerada de preservação permanente (APP).
O empresário obteve uma licença ambiental do Município,
que autorizou a construção do empreendimento.
No entanto, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), ao realizar uma fiscalização de rotina,
constatou que a construção estava causando danos ao meio ambiente, como a
supressão de vegetação nativa e a alteração do curso natural do rio.
Diante disso, o IBAMA autuou João, aplicando uma multa
por danos ambientais e determinando a paralisação das obras.
João, inconformado, ingressou com ação alegando que a
multa do IBAMA era ilegítima, pois a construção havia sido autorizada pela
administração municipal, e que o IBAMA não teria competência para fiscalizar o
local, já que a licença havia sido emitida pelo Município.
O STJ concordou com os argumentos de João?
NÃO.
O Ibama
possui o dever-poder de fiscalizar e exercer poder de polícia diante de
qualquer atividade que ponha em risco o meio ambiente, apesar de a competência
para o licenciamento ser de outro órgão público. É que, à luz da legislação,
inclusive da Lei Complementar 140/2011, a competência para licenciar não se
confunde com a competência para fiscalizar (STJ. 2ª Turma. REsp 1.646.016/RN,
Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 23/5/2023, DJe de 28/6/2023).
Nesse
mesmo sentido:
Havendo omissão do órgão estadual na fiscalização ambiental,
mesmo que outorgante da licença, o IBAMA pode exercer o seu poder de polícia
administrativa, porque não se pode confundir competência para licenciar com
competência para fiscalizar.
STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.037.941/RN, Rel. Min. Regina
Helena Costa, julgado em 17/4/2023.
Esse entendimento permite a aplicação de
autuações por diferentes órgãos de controle ambiental, que atuam em distintos
âmbitos federativos. Nesses casos, o auto de infração lavrado pelo órgão
originalmente responsável pelo licenciamento ambiental tem prevalência, mas não
impede a atuação supletiva de outro ente federal, desde que fique demonstrada a
omissão administrativa na fiscalização.
No caso concreto, observa-se que não houve
qualquer sanção administrativa imposta pelo órgão municipal. Assim, permanece
válida a atuação do IBAMA (autarquia federal) no exercício do poder de polícia
ambiental.
Em
suma:
O Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) possui o dever-poder de fiscalizar e
exercer poder de polícia diante de qualquer atividade que ponha em risco o meio
ambiente, ainda que a competência para o licenciamento seja de outro órgão
público.
STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.624.736-MS, Rel. Min.
Sérgio Kukina, julgado em 2/12/2024 (Info 22 - Edição Extraordinária).
Como a licença ambiental municipal foi
concedida há muitos anos, não seria possível que João invocasse a teoria do
fato consumado ou a existência de ato jurídico perfeito?
NÃO.
As atividades que violam as normas ambientais
não podem ser consideradas atos jurídicos perfeitos, pois ilegalidades
ambientais nunca se consolidam. Considerar o contrário seria transformar uma
violação ao ordenamento jurídico em direito adquirido de poluir e degradar o
meio ambiente. Nesse sentido: STJ. 2ª Turma. REsp 1.284.451/MG, Rel. Min.
Herman Benjamin, julgado em 20/9/2016, DJe de 20/8/2020.
Além
disso, aplica-se, no caso, a orientação consolidada no Enunciado 613/STJ: “Não
se admite a aplicação da teoria do fato consumado em tema de Direito
Ambiental.”
DOD Plus –
informação complementar
O § 3º do art. 17 da LC 140/2011 prevê que:
Art. 17. Compete ao órgão responsável
pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou
atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo
administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas
pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada.
(...)
§ 3º O disposto no caput deste artigo
não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de
fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou
potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação
ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão
que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o
caput.
O critério da prevalência de auto
de infração do órgão licenciador (art. 17, § 3º) não garante, de forma
satisfatória e adequada, o dever de proteção do meio ambiente. Isso porque o
órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização pode ser omisso
ou falhar em sua atuação. Neste caso, deve-se permitir a atuação supletiva dos
órgãos ambientais dos outros entes federados. Assim, por exemplo, se o órgão
ambiental municipal, que inicialmente seria competente, nos termos do art. 17,
§ 3º, for omisso, os órgãos ambientais estadual ou federal poderão atuar
supletivamente para prevenir ou reparar situação de ilícito ou dano ambiental.
Desse modo, o STF disse que esse
§ 3º do art. 17 deve ser interpretado assim: a prevalência do auto de infração
lavrado pelo órgão originalmente competente para o licenciamento ou autorização
ambiental não exclui a atuação supletiva de outro ente federado, se ficar
comprovada omissão ou insuficiência na tutela fiscalizatória.
No exercício da cooperação administrativa cabe atuação
suplementar — ainda que não conflitiva — da União com a dos órgãos estadual e
municipal.
STF. Plenário. ADI 4757/DF, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em
12/12/2022 (Info 1079).