Imagine a seguinte situação
hipotética:
Renata é uma enfermeira
obstétrica, formada há muitos anos, com especialização em Enfermagem Obstétrica
e inscrição no Conselho Regional de Enfermagem. Ela trabalha realizando partos
humanizados domiciliares, atendendo gestantes em situações de baixo risco.
Certo dia, Renata foi contratada
por Andrea, uma gestante saudável que desejava realizar um parto normal e
humanizado em sua própria casa.
Após uma avaliação prévia, Renata
confirmou que Andrea preenchia os critérios para um parto domiciliar de baixo
risco, sem qualquer indicativo de complicações (distocia).
Distocia é um
termo médico que se refere a complicações ou dificuldades durante o processo de
parto. O termo tem origem grega, onde “dis” significa dificuldade e “tocos”
significa nascimento.
Na data prevista para o
nascimento, Renata e sua equipe de apoio prepararam o ambiente e acompanharam o
trabalho de parto, que ocorreu normalmente, sem intercorrências.
O bebê nasceu saudável, e tanto
ele quanto Andrea foram monitorados cuidadosamente por Renata.
Posteriormente, o Conselho
Regional de Medicina do Estado (CRM) recebeu uma denúncia anônima de que Renata
havia realizado este e outros partos domiciliares sem a presença de um médico.
Diante disso, o CRM ajuizou ação contra
Renata pedindo que ela fosse proibida de realizar partos sem a presença ou
assistência direta de médico.
O CRM alegou que a Lei nº 7.498/86, que regulamenta o
exercício da enfermagem, prevê que os enfermeiros obstétricos podem acompanhar
partos normais sem distocia, mas desde que façam parte de uma equipe de saúde.
Assim, sustentou que a realização de partos domiciliares de forma isolada por
esses profissionais seria ilegal.
Os argumentos do CRM foram
acolhidos pelo STJ. A enfermeira foi proibida de realizar partos?
NÃO.
O art. 11, II, da Lei nº 7.498/1986 disciplina as hipóteses
em que os enfermeiros podem atuar simultaneamente aos demais profissionais de
saúde, estando ali listada a possibilidade de executar parto sem distocia,
sendo que a norma principal (do inciso em exame) autoriza aos enfermeiros a
execução direta do parto sem distocia (sem perturbação), não condicionando a
realização do ato à assistência direta de um médico:
Art. 11. O Enfermeiro exerce todas as
atividades de enfermagem, cabendo-lhe:
(...)
II - como integrante da equipe de
saúde:
(...)
i) execução do parto sem distocia;
(...)
Parágrafo único. As profissionais
referidas no inciso II do art. 6º desta lei incumbe, ainda:
(...)
b) identificação das distocias
obstétricas e tomada de providências até a chegada do médico;
(...)
O dispositivo em momento algum
menciona a figura do médico, pois na norma do inciso II do art. 11 fala em
“integrante de equipe de saúde”, e no parágrafo único do mesmo dispositivo
emprega a expressão “assistência à parturiente”, e não ao médico; ou melhor, a
norma interpretada não traz, em nenhum momento, a necessidade da presença de um
médico em si, nem mesmo na referida equipe de saúde.
A Lei nº 12.842/2013, conhecida
como Lei do Ato Médico, não estabelece que a identificação da distocia seja uma
atribuição exclusiva do médico. De acordo com o art. 4º, incisos VII, X e XIII,
são privativos do médico os atos de emissão de laudos, prognósticos e a
identificação de doenças, mas não a identificação da distocia.
Assim, ao perceber a ocorrência
de distocia, que caracteriza uma perturbação no andamento adequado do parto,
cabe à enfermeira obstétrica encaminhar a paciente ao médico, conforme previsto
no art. 11, parágrafo único, alínea “b”, da Lei nº 7.498/1986. Nesse momento, o
médico terá a competência exclusiva para, se necessário, identificar a doença
que acomete a paciente.
Dessa forma, caso o profissional
de enfermagem obstétrica precisasse da presença de um médico para realizar o
parto normal sem distocia, não haveria lógica na previsão legal que determina
que a enfermeira, ao identificar (por conta própria) uma distocia obstétrica,
deve adotar as medidas necessárias até a chegada do médico.
Ademais, a Portaria nº 353/2017,
do Ministério da Saúde, que aprovou as Diretrizes Nacionais de Assistência ao
Parto Normal, expressamente previu que “a assistência ao parto e nascimento de
baixo risco que se mantenha dentro dos limites da normalidade pode ser
realizada tanto por médico obstetra quanto por enfermeira obstétrica e
obstetriz”.
Em suma:
Enfermeiras obstétricas podem realizar parto
domiciliar sem distocias independentemente da presença ou assistência direta de
profissional médico.
STJ. 1ª
Turma. REsp 2.099.736-RJ, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 20/8/2024 (Info
22 - Edição Extraordinária).