Dizer o Direito

sábado, 25 de janeiro de 2025

O autor não pode desistir da ação de alimentos, mesmo se o pedido de desistência foi apresentado antes da contestação, se isso for prejudicar os interesses de pessoa com deficiência (síndrome de down) que seria beneficiada com os alimentos

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, empresário bem-sucedido, ajuizou ação de oferecimento de alimentos em favor de sua filha Maria, de 17 anos, que possui Síndrome de Down.

Na ação, ele se propôs a pagar uma pensão alimentícia de 5 salários mínimos mensais, valor que foi fixado pelo juiz como alimentos provisórios.

Algum tempo depois, João descobriu que sua ex-esposa Regina, mãe de Maria, havia vendido um imóvel que pertencia ao ex-casal, sem repassar a ele a sua metade na venda. Irritado com esta situação, João decidiu desistir da ação de oferecimento de alimentos que ele mesmo havia proposto, apresentando o pedido de desistência. Vale ressaltar que esse pedido de desistência foi manejado antes de ter sido oferecida a contestação.

Antes que o juiz pudesse analisar o pedido de desistência, Maria, assistida por sua mãe Regina, apresentou contestação solicitando não só a manutenção dos alimentos provisórios, mas também sua majoração para 7 salários mínimos a fim de incluir outras despesas como plano de saúde e mensalidade escolar.

O juiz negou o pedido de desistência de João, mesmo tendo sido apresentado antes da contestação.

João recorreu, argumentando que, de acordo com o art. 485, §4º do CPC, ele teria direito de desistir da ação antes da contestação sem precisar da concordância da parte contrária:

Art. 485 (...)

§ 4º Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação.

 

O Tribunal de Justiça, contudo, manteve a decisão do juiz, entendendo que, neste caso específico, o direito processual de desistir da ação não poderia se sobrepor aos interesses de uma pessoa com deficiência, que tem proteção especial garantida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).

Além disso, o Tribunal considerou que João estava agindo de má-fé ao tentar usar a desistência da ação de alimentos como forma de pressionar Regina na questão do imóvel vendido, prejudicando assim os interesses de Maria.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial afirmando que o TJ violou o art. 485, § 4º do CPC. Pediu para que fosse homologado a desistência da ação.

 

O STJ deu provimento ao recurso de João?

NÃO.

Uma análise superficial e apressada poderia levar à conclusão de que, se o autor desistiu da ação antes da contestação, isso deveria conduzir à extinção do feito, porque o art. 485, § 4º, do CPC estabelece que, até então, o autor não precisa de consentimento do réu para desistir da ação.

Contudo, conforme bem ensinam LUIZ GUILHERME MARINONI, SERGIO CRUZ ARENHART e DANIEL MITIDIERO: “O processo não pode ser visto apenas como relação jurídica, mas sim como algo que tem fins de grande relevância para a democracia”. Daí, como complementam:

“É preciso, antes de aplicar a lei, atribuir sentido e valor ao litígio. Ou seja, a jurisdição não mais se limita a tornar a lei – abstrata e genérica – particular quando da resolução do caso concreto, pois necessariamente deve atribuir sentido ao caso concreto para interpretar a lei e solucionar o litígio, exatamente por ser indiscutível que a sociedade e os casos concretos não podem ser regulados sem se considerarem as suas especificidades.” (Curso de Processo Civil. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 437 e 440).

 

A homologação da desistência da ação foi rejeitada por conta das especificidades da demanda.

Não se vislumbra nenhum equívoco nessa determinação de prosseguimento do feito.

No caso, a despeito de a contestação ter sido ofertada posteriormente ao pedido de desistência, o fato é que foi ofertada e trouxe resistência pela parte ré quanto ao pleito de desistência.

Nessas circunstâncias, é de se ter por prudente a negativa de homologação da desistência da ação, uma vez que, com a contestação ofertada, a demanda deixou de interessar exclusivamente ao autor.

Não importa, por outro lado, que apesar da desistência manifestada subsistiria para a ré o direito de ajuizar nova ação, para nela pedir os alimentos de que necessita. Já estando posta a lide, que é dúplice, não faz sentido algum a sua extinção, para que novamente se abra a discussão noutro processo. Isso atentaria contra o princípio da duração razoável e do direito à solução integral do mérito (art. 4º, CPC).

O direito do autor de desistir da ação não pode se sobrepor ao direito da demandada pela busca de uma decisão de mérito e, com mais razão, quando a homologação da decisão seria prejudicial aos interesses de pessoa com deficiência (Síndrome de Down), cuja efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação e à sua dignidade deve ser assegurada com prioridade pelo Estado (art. 8º da Lei nº 13.146/2015).

No mais, não se pode perder de vista que a interpretação do Código de Processo Civil conduz também à observância da instrumentalidade das formas, com o propósito de conferir efetividade ao processo, atribuindo especial importância aos princípios da celeridade e da economia processual.

Igualmente, a reforma do acórdão recorrido contraria a boa-fé objetiva que foi alçada pelo art. 5º do CPC/2015 como norma fundamental do processo, que exige que os sujeitos processuais devem adotar dentro do processo uma postura em respeito à lealdade e à boa-fé processual, não podendo o autor/recorrente contrariar o seu comportamento anterior que observava e assegurava o melhor interesse de pessoa deficiente.

Por fim, o fato aventado pelo autor, sobre eventual direito seu de parte no produto da venda de imóvel, não tem força suficiente para influir na relação de alimentos, que se estabelece entre ele e sua filha não em relação a sua ex-mulher, que, se for mesmo o caso, poderá ser cobrada.

 

Em suma:

O direito do autor de desistir de ação de oferecimento de alimentos não pode se sobrepor ao direito da demandada pela busca de uma decisão de mérito, ainda que o pedido tenha sido apresentado antes da contestação, quando a homologação da decisão prejudicar os interesses de pessoa com deficiência (síndrome de down). 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.167.135-RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/12/2024 (Info 837).

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Fundação Carlos Chagas - FCC - Prova: FCC - PGE GO - Procurador do Estado Substituto - 2024

Em relação aos atos dispositivos das partes:

O autor pode desistir da ação até a sentença, independentemente do consentimento do réu, se o STJ fixar tese contrária ao pedido em recurso repetitivo, mesmo que já apresentada contestação. (Correto)


Print Friendly and PDF