domingo, 19 de janeiro de 2025
É possível que ordem judicial brasileira determine a remoção global de conteúdo ilícito em plataforma digital, sem que isso configure violação à soberania estrangeira
O caso concreto, com adaptações,
foi o seguinte:
BETA (nome fictício) é uma
empresa de produtos alimentícios.
Foi publicado um vídeo no YouTube
intitulado “Ratos encontrados em alimentos na empresa BETA”.
O material mostrava supostos
funcionários da empresa diante de uma infestação de ratos entre sacos de
produtos.
A BETA alegou que o conteúdo não
correspondia à realidade e enviou um e-mail ao Google Brasil Internet Ltda.,
solicitando a exclusão imediata do vídeo.
O Google respondeu negando o
pedido de remoção.
Diante disso, a BETA ingressou
com uma ação de obrigação de fazer, requerendo que o Google removesse o vídeo
do YouTube em todo o mundo e fornecesse informações sobre o autor da postagem.
Em primeira instância, o juízo
julgou os pedidos parcialmente procedentes e determinou:
• que o Google tornasse o vídeo
indisponível no Brasil; e
• fornecesse os dados necessários
para identificar o autor do conteúdo.
Em apelação, o Tribunal de Justiça
ampliou a sentença, ordenando a remoção global do vídeo.
Recurso especial
O Google interpôs recurso
especial argumentando que a ampliação da remoção para o âmbito global violava
os limites territoriais da jurisdição brasileira.
Alegou que a competência do
Judiciário brasileiro se restringe ao território nacional, sendo incompatível a
imposição de efeitos extraterritoriais para remoção de conteúdo.
Defendeu que decisões sobre a
acessibilidade de conteúdos em outros países devem ser analisadas pelos
sistemas judiciais locais, considerando os padrões próprios de liberdade de
expressão e legislação de cada país.
Também sustentou que a
determinação de remoção global configura censura internacional, extrapolando a
competência do Judiciário brasileiro e desconsiderando que o material, em
outras jurisdições, pode ser considerado aceitável conforme os limites impostos
pela jurisprudência local.
O STJ concordou com os
argumentos do Google?
NÃO.
Decisões judiciais ao redor do
mundo têm demonstrado uma tendência de determinar a remoção global de conteúdos
ilegais da internet, indo além dos limites territoriais tradicionais.
A Lei de Introdução às Normas do
Direito Brasileiro, quando menciona ofensa à soberania, refere-se à proteção da
soberania nacional brasileira em relação a decisões estrangeiras, e não o
contrário. Vale destacar que a jurisdição criminal brasileira já considerava
legítimo o fornecimento de dados armazenados em outros países.
Mesmo antes do Marco Civil da
Internet, as decisões judiciais brasileiras já produziam efeitos
extraterritoriais sobre conteúdos na internet, visando garantir a efetividade
da prestação jurisdicional.
A Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil
da Internet) consolidou uma evolução nos conceitos tradicionais de jurisdição,
território e fronteiras nas normas processuais brasileiras.
O art. 11 do MCI estabeleceu a
jurisdição brasileira com caráter transfronteiriço e sem limitação geográfica
sobre provedores de aplicações, bastando que os dados sejam coletados no
território nacional para que se aplique o direito brasileiro.
O legislador deixou claro que o objetivo
era evitar que provedores com atuação no Brasil, mas que mantêm dados fora do
território nacional, escapassem de cumprir determinações administrativas e
judiciais para disponibilização ou remoção de conteúdo.
Veja a redação do dispositivo:
Lei nº 12.965/2014
Art. 11. Em qualquer operação de
coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou
de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que
pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser
obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à
privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações
privadas e dos registros.
Ou seja, ocorrendo a coleta de
dados no território nacional, aplica-se o direito brasileiro - mesmo que o
armazenamento, a guarda ou o tratamento seja feito por provedor sediado no
exterior, mas que possua representação comercial no Brasil ou oferte serviços a
usuários brasileiros.
No caso analisado, uma empresa
brasileira do setor alimentício foi vítima de difamação por meio de vídeo falso
no YouTube, que mostrava supostos ratos em suas instalações. A ordem de remoção
apenas no Brasil mostrou-se insuficiente, pois o conteúdo continuava acessível
em outros países.
É infundado alegar que o
Judiciário brasileiro não pode limitar o acesso de internautas estrangeiros a
conteúdos considerados ilegais pelo direito brasileiro. O próprio provedor da
plataforma possui política institucional global para, “voluntariamente”,
cumprir certas decisões judiciais, mesmo quando não são diretamente dirigidas a
ele, em respeito à autoridade dos tribunais na determinação da ilegalidade de
conteúdos. Essa política aumenta a probabilidade de remoção de links
considerados falsos por tribunais, mesmo em jurisdições diferentes da decisão
original.
A ordem de remoção global do
conteúdo infrator atende a um interesse brasileiro e está fundamentada em
normas nacionais. Sua efetivação transfronteiriça é um efeito natural do
caráter global da internet, definida no art. 5º, I, do MCI como um “sistema
estruturado em escala mundial”.
No direito internacional, a
liberdade de expressão não é um direito absoluto. Pode ser legitimamente
limitada em casos de conflito com o direito à proteção da honra, desde que:
• Haja previsão legal de
ilicitude de atos difamatórios e revisão judicial independente;
• A finalidade seja proteger a
reputação ou honra de terceiros;
• A limitação seja proporcional à
decisão;
• Não haja discriminação baseada
em características pessoais, como a nacionalidade das partes.
• A remoção de conteúdo
difamatório com efeitos globais está de acordo com a diretriz internacional da
ONU que recomenda a concentração da responsabilização civil em um único foro
como boa prática para evitar penalizações múltiplas pela mesma publicação em
diferentes jurisdições. Uma plataforma, uma ação judicial.
Em suma:
Inexiste ofensa à soberania estrangeira a efetivação
de forma global de uma ordem judicial específica de indisponibilidade de
conteúdo na internet, considerado infrator segundo o direito brasileiro.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.147.711-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/11/2024 (Info
835).