Dizer o Direito

sábado, 18 de janeiro de 2025

Comentários à Súmula 674-STJ

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, servidor público estadual ocupante do cargo de Analista Administrativo, foi demitido após processo administrativo disciplinar por ter supostamente facilitado o acesso indevido a informações sigilosas de um processo licitatório a uma empresa participante da licitação.

Após sua demissão, João impetrou mandado de segurança alegando, entre outros pontos, que o ato de demissão assinado pelo Governador do Estado seria nulo por falta de fundamentação.

Segundo João, o Governador apenas fez referência a um parecer anterior da Assessoria Jurídica do Gabinete do Procurador-Geral do Estado, sem apresentar fundamentação própria e detalhada para a decisão de demissão.

O impetrante alegou que a prática de fundamentação por referência (per relationem) não é suficiente para atender aos requisitos de motivação exigidos pelo art. 93, IX, da Constituição Federal, que prevê que toda decisão administrativa deve ser devidamente fundamentada:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

(...)

IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

 

Obs: apesar de o art. 93, IX, da CF/88 mencionar apenas decisões do Poder Judiciário, ele é invocado como argumento no sentido de que todas as decisões administrativas devem ser motivadas.

 

A decisão do Governador foi nula? É proibida a fundamentação per relationem nos processos disciplinares?

NÃO.

 

O que é fundamentação per relationem?

Trata-se de uma forma de motivação por meio da qual se faz remissão ou referência às alegações de uma das partes, a precedente ou a decisão anterior nos autos do mesmo processo.

É chamada pela doutrina e jurisprudência de motivação ou fundamentação per relationem ou aliunde.

Também é denominada de motivação referenciada, por referência ou por remissão.

 

A decisão que se utiliza de fundamentação per relationem é válida?

SIM. O entendimento jurisprudencial pacificado é no sentido de que a utilização da fundamentação per relationem, seja para fim de reafirmar a fundamentação de decisões anteriores, seja para incorporar à nova decisão os termos de manifestação ministerial anterior, não implica vício de fundamentação.

Nesse sentido:

A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que é plenamente adequada a utilização de motivação aliunde ou per relationem em sede de processo administrativo disciplinar.

STJ. 1ª Seção. MS 22.135/DF, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, julgado em 25/9/2024.

 

Não é desprovida de motivação a decisão que, em sede de processo administrativo disciplinar, adota o parecer da Consultoria Jurídica do órgão.

Hipótese em que não há nenhuma ilegalidade praticada pela autoridade coatora que, adotando o parecer da Consultoria Jurídica da Pasta, não conheceu do recurso hierárquico interposto pelo impetrante, já que manifestamente incabível.

STJ. 1ª Seção. AgInt no MS 29.550/DF, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 19/12/2023.

 

Veja como o tema já foi cobrado em prova:

(2023 - CEBRASPE - JUIZ TJDFT) - A jurisprudência veda a chamada fundamentação per relationem, ainda que a decisão faça referência concreta às peças que pretende encampar, transcrevendo as partes delas que julgar interessantes para legitimar o raciocínio lógico que embasa a conclusão a que se quer chegar (Errado)

 

Aliás, há previsão expressa na Lei 9.784/99 (Lei de Processo Administrativo), em seu § 1º do art. 50, permitindo o uso da fundamentação per relationem:

Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;

III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;

IV - dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório;

V - decidam recursos administrativos;

VI - decorram de reexame de ofício;

VII - deixem de aplicar jurisprudência firmada sobre a questão ou discrepem de pareceres, laudos, propostas e relatórios oficiais;

VIII - importem anulação, revogação, suspensão ou convalidação de ato administrativo.

§ 1o A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante do ato.

(...)

 

Nesse sentido:

A motivação mediante “declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres” (motivação per relationem) encontra expresso amparo no art. 50, § 1º, da Lei n. 9.784/1999, cujo diploma disciplina o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Portanto, ao invocar, como razões de decidir, os fundamentos de fato e de direito constantes de anteriores pareceres lançados nos autos do processo disciplinar, não agiu a Autoridade administrativa com ilegalidade ou abuso de poder, porque a tanto expressamente autorizada pela Lei do Processo Administrativo Federal.

STJ. 1ª Seção. MS 22.149/DF, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 11/5/2022.

 

Em suma:

Súmula 674-STJ: A autoridade administrativa pode se utilizar de fundamentação per relationem nos processos disciplinares.

STJ. 1ª Seção. Aprovada em 13/11/2024, DJe de 25/11/2024 (Info 835).


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