quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
A não homologação, pela comissão de heteroidentificação, de autodeclaração do candidato às vagas destinadas a afrodescendentes implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas e não alcança a sua classificação na lista de ampla concorrência
Imagine a seguinte situação adaptada:
João se inscreveu no concurso
para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR).
No momento da inscrição, ele se
autodeclarou pardo para concorrer às vagas reservadas a candidatos negros.
Após realizar todas as etapas do
concurso, João obteve excelente desempenho, sendo aprovado tanto na lista de
vagas reservadas quanto na ampla concorrência.
No entanto, ao passar pela
comissão de heteroidentificação (que avalia se o candidato realmente possui
características fenotípicas de pessoa negra), sua autodeclaração não foi
homologada - ou seja, a comissão não o reconheceu como pardo.
Com base nessa não homologação, a
EPCAR decidiu eliminar João do concurso completamente, mesmo ele tendo sido
aprovado também nas vagas de ampla concorrência.
A justificativa da EPACAR foi a existência de uma cláusula
do edital que determinava a eliminação total de candidatos que tivessem a
autodeclaração racial não confirmada:
Item 2.4.6 do Edital: Serão
eliminados do concurso público os candidatos cujas autodeclarações não forem
confirmadas em procedimento de heteroidentificação, ainda que tenham obtido
nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independentemente de
alegação de boa-fé, após procedimento administrativo em que lhe sejam
assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções
cabíveis.
João impetrou, então, um mandado
de segurança argumentando que, mesmo que não fosse considerado pardo pela
comissão, deveria permanecer concorrendo às vagas de ampla concorrência, nas
quais também havia sido aprovado.
Após as instâncias
ordinárias, o caso chegou até o STJ. O Tribunal concordou com o pedido de João
para continuar como aprovado, com base na lista de ampla concorrência?
SIM. A Lei nº 12.990/2014 reserva
aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos realizados no âmbito
da administração pública federal.
O parágrafo único do art. 2º da Lei nº 12.990/2014 prevê o
seguinte:
Art. 2º Poderão concorrer às
vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou
pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça
utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo único. Na hipótese de constatação de
declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver
sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego
público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o
contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Esse
parágrafo único significa que o candidato é eliminado apenas da lista reservada
para os negros, mas não necessariamente de todo o concurso.
A não
homologação da autodeclaração do candidato que disputa vagas reservadas para
negros não importa em eliminação automática de todo o certame.
O
candidato que se autodeclara negro ou pardo, se assim não for considerado pela
comissão, apenas deixa de constar na lista dessa natureza e continua no
certame, de acordo com sua classificação na lista geral.
Segundo
princípios hermenêuticos, os parágrafos e incisos devem ser interpretados
conforme o caput do artigo de lei ao qual se vinculam.
O caput
do art. 2º da Lei nº 12.990/2014 dispõe especificamente a respeito da
possibilidade de haver reservas de vagas destinadas a candidatos negros, assim
considerados aqueles que se declararem pretos e pardos, motivo pelo qual a
sanção contida no parágrafo único desse mesmo dispositivo – eliminação do
candidato que prestar declaração falsa – se restringe à disputa por aquelas
vagas reservadas, não alcançando a disputa pelas vagas destinadas à ampla
concorrência.
Essa
interpretação é corroborada pelo art. 3º desse diploma legal, onde é dito
expressamente que os candidatos autodeclarados negros disputarão
concomitantemente às vagas reservadas as de ampla concorrência, sem qualquer
referência à possibilidade de o resultado da disputa pelas vagas de ampla
concorrência ser influenciado pela eliminação na disputa pelas vagas reservadas
– prevista no artigo anterior.
Assim, a
partir da interpretação sistemática dos referidos dispositivos legais, que
claramente admitem a possibilidade de os candidatos concorrerem simultaneamente
às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, a sanção
estabelecida no art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 12.990/2014 deve ser
interpretada restritivamente apenas em relação às vagas reservadas.
Logo, o
item 2.4.6 do Edital do certame em tela deve ser interpretado em harmonia com a
regra do art. 2º, caput, parágrafo único, da Lei nº 12.990/2014, no sentido de
que a não homologação da autodeclaração do candidato implica apenas sua
eliminação do certame em relação às vagas reservadas.
Para que
se considere que houve declaração falsa, é necessário que seja constatada a
falsidade ideológica, que, por sua vez, traz em si a necessidade de existência
de má-fé.
A mera não homologação da autodeclaração do
candidato, pela comissão de heteroidentificação, não pode ser automaticamente
associada à falsidade daquela autodeclaração.
A
natureza fluida e subjetiva de uma classificação racial é inexoravelmente
marcada por pré-concepções daqueles envolvidos nesse processo ao buscarem
avaliar dado indivíduo ou grupo.
Esse
fato assume especial relevância diante das especificidades da sociedade
brasileira, que historicamente tem adotado um sistema de classificação mais
ambíguo, no qual predomina um preconceito de marca, em que o critério de
identificação do grupo discriminador e do grupo discriminado se vincula à
aparência física ou ao fenótipo (NOGUEIRA, Oracy de. Tanto preto quanto branco:
estudos de relações raciais. Prefácio de Thales de Azevedo. São Paulo: T.A.
QUEIROZ, 1985, p. 78-9).
Porém,
essa característica brasileira também faz com que o processo de classificação
dos indivíduos seja influenciado por fatores subjetivos, amparados em critérios
ambíguos quanto à aparência (a cor da pele, a textura do cabelo, traços faciais
etc.) e à atitude (trajes, comportamento e círculo social), e em função do
inter- relacionamento entre os indivíduos (tais como, v.g., as relações de
amizade, simpatia ou de deferência). Sobre esse tema, destacam-se os seguintes
autores: Oracy de Nogueira (Op. cit., p. 79-80, 82 e 88-9); Thomas E. Skidmore
("Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro
(1870-1930)", Trad. Donaldson M. Garschagen. Prefácio Lilia Moritz
Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 81-2); Lilia Moritz.
Schwarcz ("Racismo no Brasil". 2ª ed. São Paulo: Publifolha, 2010, p.
68); Peter Fry ("A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o
Brasil e a África austral". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005,
p. 176 e 217) e Antônio Risério ("A utopia brasileira e os movimentos
negros". São Paulo: Ed. 34, 2007, p. 18).
Tem-se,
desse modo, que a eliminação do certame prevista no art. 2º, parágrafo único,
da Lei nº 12.990/2014 não pode ser aplicada de forma irrestrita em toda e
qualquer situação de não homologação da autodeclaração realizada pelos
candidatos, sob pena de ofensa ao princípio da razoabilidade.
Tomando-se
o princípio da razoabilidade com congruência, a não homologação de uma
autodeclaração não autoria imputar ela a pecha de falsa, sob pena, inclusive,
de se estar a presumir a má-fé do candidato, o que a jurisprudência do STJ não
aceita.
Sob essa
perspectiva não se pode considerar que o simples fato de não ter havido a
confirmação pela Banca Examinadora signifique que houve má-fé na declaração
prestada pelo candidato. O que houve, no caso, foi, única e exclusivamente, a
existência de divergência entre a autodeclaração realizada pelo candidato e a
conclusão tomada pela comissão de heteroidentificação.
Em suma:
A não homologação, pela comissão de
heteroidentificação, de autodeclaração do candidato às vagas destinadas a
afrodescendentes implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas
reservadas e não alcança a sua classificação na lista de ampla concorrência.
STJ. 1ª
Turma. REsp 2.105.250-RJ, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 26/11/2024 (Info
836).