terça-feira, 21 de janeiro de 2025
A gestante ou parturiente que manifeste o interesse de entregar seu filho para adoção tem direito ao sigilo judicial em torno do nascimento e da entrega da criança, inclusive em relação ao suposto genitor e à família ampla
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Carla decidiu entregar seu filho
recém-nascido para adoção de forma voluntária, optando pelo sigilo quanto ao
nascimento e à identidade do pai, além de não informar à família biológica ou
extensa sobre a entrega.
O juízo da Vara da Infância e da
Juventude homologou a renúncia ao poder familiar materno e determinou o
encaminhamento da criança para adoção por pretendentes regularmente cadastrados
no Sistema Nacional de Adoção (SNA), garantindo também o sigilo sobre a entrega
voluntária.
O Ministério Público interpôs
agravo de instrumento, argumentando que, apesar da manifestação da genitora em
manter o anonimato, o sigilo não deveria se estender à família extensa, pois a
criança tem o direito de conhecer e conviver com ela.
Sustentou ainda que a criança não
deveria ser encaminhada imediatamente para adoção, sendo necessário verificar
se há algum membro da família extensa apto a assumir a guarda. Além disso, o MP
alegou que o rápido encaminhamento para adoção poderia gerar um vínculo afetivo
com a família substituta, e que a família biológica deveria ser previamente
informada sobre a possibilidade de familiares aptos e idôneos pleitearem a
guarda.
O Tribunal de Justiça deu
provimento ao agravo de instrumento do Ministério Público, revogando a decisão
que determinava a adoção imediata e o sigilo em relação à família extensa.
O TJ fundamentou sua decisão nos
princípios da proteção integral e da absoluta prioridade da criança, afirmando
que antes de optar pela adoção, deveriam ser buscadas alternativas para
inserção da criança na família natural.
Considerou ainda que, embora a
mãe tivesse manifestado sua vontade de realizar a entrega de forma anônima, a
adoção deveria ser uma medida excepcional, adotada somente após esgotadas as
possibilidades de manutenção da criança na família extensa.
Recurso especial
Carla interpôs recurso especial
sustentando que:
1) a mãe que opta por entregar o
filho para adoção tem o direito garantido ao sigilo sobre o nascimento, seja
antes ou logo após o parto;
2) de acordo com o art. 5º da Resolução nº 485/2023 do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), esse sigilo deve ser estendido aos membros
da família biológica e ao pai indicado, a fim de respeitar a vontade da
gestante:
Resolução nº 485/2023-CNJ
Dispõe sobre o adequado
atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho
para adoção e a proteção integral da criança.
(...)
Art. 1º O atendimento, no âmbito
do Poder Judiciário, de gestante ou parturiente que manifeste o desejo de
entregar o filho para adoção e a proteção integral da criança obedecerá ao
disposto nesta Resolução.
(...)
Art. 5º A gestante ou parturiente
deve ser informada, pela equipe técnica ou por servidor designado do
Judiciário, sobre o direito ao sigilo do nascimento, inclusive, em relação aos
membros da família extensa e pai indicado, observando-se eventuais justificativas
apresentadas, respeitada sempre sua manifestação de vontade e esclarecendo-se
sobre o direito da criança ao conhecimento da origem biológica (ECA, art. 48).
§ 1º O direito ao sigilo é
garantido à gestante criança ou adolescente inclusive em relação aos seus
genitores, devendo, nesse caso, ser representada pelo Defensor Público ou
advogado a ela nomeado.
§ 2º Será garantido o sigilo dos
prontuários médicos e da finalidade do atendimento à gestante/parturiente nas
unidades de saúde, maternidades e perícias médicas de autarquias
previdenciárias, notadamente quando noticiada a intenção de entrega para adoção.
§ 3º Caso não haja solicitação de
sigilo sobre o nascimento e a entrega do filho, será consultada a pessoa
gestante ou parturiente sobre a existência de integrantes da família natural ou
extensa com quem ela tenha relação de afinidade para, se possível, e com
anuência dela, também serem ouvidos.
§ 4º Na hipótese do parágrafo
anterior, a busca de integrantes da família extensa respeitará o prazo máximo
de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período por decisão judicial
fundamentada.
3) conforme previsto na
Resolução, somente quando não houver solicitação de sigilo sobre o nascimento e
a entrega para adoção, a gestante ou parturiente será consultada sobre a
existência de membros da família natural ou ampla que possam ter interesse em
ficar com a criança, caso concorde com a manifestação e anuência da mãe.
O STJ concordou com os
argumentos de Carla?
SIM.
Pela leitura do caput do art. 19-A do ECA, verifica-se que o
legislador conferiu exclusivamente à mulher, gestante ou parturiente, que tenha
interesse em entregar seu filho para adoção o seu encaminhamento ao Poder
Judiciário para iniciar o procedimento legal previsto nos seus parágrafos, mas
nada disse a respeito da manifestação de vontade do genitor da criança. Veja:
Art. 19-A. A gestante ou mãe que
manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o
nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
(...)
O § 3º do art. 19-A mencionou que a busca à família extensa respeitará
o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período, mas não
revelou e nem sequer deu a entender quando se deveria procurar por tal família:
Art. 19-A (...)
§ 3º A busca à família extensa,
conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei,
respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período.
O § 5º do art. 19-A dispõe que após o nascimento da criança,
a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai
indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1º do art. 166
desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega:
Art. 19-A (...)
§ 5º Após o nascimento da
criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou
pai indicado, deve ser manifestada na audiência a que se refere o § 1º do art.
166 desta Lei, garantido o sigilo sobre a entrega. (Incluído pela Lei nº
13.509, de 2017)
Art. 166. Se os pais forem falecidos, tiverem sido
destituídos ou suspensos do poder familiar, ou houverem aderido expressamente
ao pedido de colocação em família substituta, este poderá ser formulado
diretamente em cartório, em petição assinada pelos próprios requerentes,
dispensada a assistência de advogado.
§ 1º Na hipótese de concordância
dos pais, o juiz:
I - na presença do Ministério
Público, ouvirá as partes, devidamente assistidas por advogado ou por defensor
público, para verificar sua concordância com a adoção, no prazo máximo de 10
(dez) dias, contado da data do protocolo da petição ou da entrega da criança em
juízo, tomando por termo as declarações; e
II - declarará a extinção do
poder familiar.
(...)
A interpretação do mencionado
dispositivo legal reforça o que foi afirmado na análise do caput do art. 19-A
do ECA, pois textualmente o legislador confirmou que a manifestação de vontade
de entrega da criança para adoção em juízo deve ser ratificada prioritariamente
ou exclusivamente pela mãe, pois utilizou o conectivo “ou”, assinalando que o
genitor somente será ouvido se for pai registral ou ser tiver sido indicado
pela genitora.
Prosseguindo, vem a interpretação do § 9º do dito
dispositivo legal, que traz a principal característica ou essência do
instituto, considerando a sua finalidade de resguardar a liberdade e o direito
indeclinável da mulher de entregar o filho para adoção de forma segura e digna,
pois estabelece que é garantido à mãe o direito ao sigilo sobre o nascimento,
respeitado o disposto no art. 48 desta Lei:
Art. 19-A (...)
§ 9º É garantido à mãe o direito
ao sigilo sobre o nascimento, respeitado o disposto no art. 48 desta Lei.
Desse modo, a mais razoável e coerente interpretação a ser
feita das normas que estabeleceram o instituto ou do microssistema da “entrega
voluntária da adoção” no ordenamento jurídico, é de que, uma vez exercido o
direito da gestante ou parturiente do sigilo sobre o nascimento da criança, não poderá ser aplicado o disposto no §
3º do art. 19-A do ECA:
Art. 19-A (...)
§ 3º A busca à família extensa,
conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei,
respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período.
Ainda, nos termos da legislação
de regência, o direito da gestante ao sigilo sobre o nascimento, embora amplo,
não exclui o direito fundamental da criança ao conhecimento da sua origem
genética, sendo ele apenas postergado nos termos do art. 48 e parágrafo único
do ECA (após completar 18 anos ou antes por decisão judicial), que é o que
ocorre até mesmo para as crianças que são encaminhadas à adoção fora das
hipóteses do art. 19-A do ECA.
A preferência pelo esgotamento de
recursos para manutenção da criança ou adolescente no seio da família natural
não é preceito absoluto, devendo ser observado também o art. 227 da
Constituição Federal e os arts. 3º e 4º do ECA, os quais determinam que o melhor
interesse deve estar associado a resguardar o bem-estar físico e psicológico
deles.
No mesmo sentindo, a Resolução n.
485/2023 do CNJ cuida especificamente do procedimento de entrega voluntária de
crianças para adoção, estabelecendo diretrizes para o adequado atendimento de
gestantes ou parturientes que desejem entregar seus filhos para adoção,
garantindo o sigilo e a proteção da identificação da mãe, se assim for sua
vontade, tendo por finalidade principal a proteção integral da criança e da
mãe. O seu art. 5º expressamente diz que o sigilo do nascimento e, da própria
entrega para adoção, se estende para o genitor e para a família extensa.
Em suma:
A gestante ou parturiente que manifeste o interesse
de entregar seu filho para adoção tem direito ao sigilo judicial em torno do
nascimento e da entrega da criança, inclusive em relação ao suposto genitor e à
família ampla.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.086.404-MG, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 24/9/2024 (Info
835).