quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
A desapropriação para comunidades quilombolas possui caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, não se aplicando a esse procedimento os prazos de caducidade das desapropriações comuns
Quilombolas
O art. 68 do
ADCT da CF/88 confere proteção especial aos territórios ocupados pelos
remanescentes quilombolas. Confira:
Art. 68. Aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Esse artigo possui duas partes:
1ª) estabelece um direito aos
quilombolas: propriedade das terras ocupadas (“aos remanescentes das
comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva”);
2) determina uma ordem ao Estado
para que pratique o ato necessário a fim de assegurar esse direito: expedição dos títulos de propriedade
(“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”).
O que são as terras dos
quilombolas?
São as áreas ocupadas pelos
remanescentes das comunidades dos quilombos e utilizadas por este grupo social
para a sua reprodução física, social, econômica e cultural.
O que são remanescentes das
comunidades dos quilombos?
Existe uma grande discussão
antropológica sobre isso, mas, de maneira bem simples, os grupos que hoje são
considerados remanescentes de comunidades de quilombos são agrupamentos humanos
de afrodescendentes que se formaram durante o sistema escravocrata ou logo após
a sua extinção.
O Decreto nº 4.887/2003 regulamenta
o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
O Decreto 4.887/2003 é um decreto autônomo. Isso porque ele
retira a sua validade diretamente da Constituição Federal, especificamente do
art. 68 do ADCT.
STF. Plenário. ADI 3239/DF, rel. orig. Min. Cezar Peluso, red.p/
o ac. Min. Rosa Weber, julgado em 8/2/2018 (Info 890).
O Decreto
4.887/2003 assim os define:
Art. 2º Consideram-se remanescentes
das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica
própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica
sofrida.
A previsão do art. 68 do ADCT foi
uma forma que o constituinte encontrou de homenagear “o papel protagonizado
pelos quilombolas na resistência ao injusto regime escravista” (Min. Rosa
Weber).
Feita essa introdução, imagine a
seguinte situação adaptada:
Em 2018, o INCRA identificou que
a Comunidade Quilombola Vale da Liberdade, localizada no Mato Grosso, ocupava
tradicionalmente uma área de 500 hectares há mais de 100 anos.
Foi instaurado processo
administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas.
Após realizar todos os estudos
técnicos necessários, incluindo relatório antropológico que comprovou a
ancestralidade da ocupação quilombola, o INCRA concluiu o processo
administrativo de reconhecimento do território em 2019.
Ocorre que parte das terras estava
registrada em nome de dois particulares: o fazendeiro João e sua esposa Regina.
Eles haviam adquirido onerosamente os imóveis e não havia indícios de nulidade
ou fraude.
Com base nisso, o INCRA emitiu um
decreto de desapropriação por interesse social para garantir o direito à
propriedade coletiva da comunidade quilombola, como previsto no art. 68 do
ADCT.
O problema foi que o INCRA só conseguiu ajuizar a ação de
desapropriação em 2022, ou seja, após o prazo de 2 anos previsto no art. 3º da
Lei nº 4.132/1962:
Lei nº 4.132/1962 (define os casos de
desapropriação por interesse social):
Art. 1º A desapropriação por interesse
social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou
condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição
Federal.
(...)
Art. 3º O expropriante tem o prazo de
2 (dois) anos, a partir da decretação da desapropriação por interesse social,
para efetivar a aludida desapropriação e iniciar as providências de
aproveitamento do bem expropriado.
João e Regina contestaram a
demanda alegando que o decreto havia caducado por ter ultrapassado esse prazo.
O Tribunal Regional Federal
acolheu o argumento dos proprietários e reconheceu a caducidade do decreto. O
TRF entendeu que o prazo de dois anos, estabelecido no art. 3º da Lei
4.132/1962, aplica-se ao decreto expropriatório para fins de desapropriação
voltada para titulação de terras às comunidades remanescentes de quilombos.
O INCRA e o Ministério Público
Federal, contudo, interpuseram recurso especial, argumentando que o prazo de
caducidade não se aplicaria às desapropriações para fins de titulação de terras
quilombolas, devido à sua natureza especial e constitucional.
Nas palavras do MPF:
“Tratando-se
de direito fundamental, aplicam-se a ele os princípios da imprescritibilidade e
da máxima eficácia. Não é, portanto, cabível a sua restrição pelo decurso do
tempo, tampouco a eleição de interpretação ou procedimento que diminua ou
inviabilize o exercício do direito por seu destinatário”.
O STJ acolheu os argumentos
do INCRA e do MPF?
SIM.
Desapropriação de áreas que
estejam em domínio particular, para transferi-las às comunidades
O art. 13 do Decreto prevê o seguinte:
Art. 13. Incidindo nos territórios ocupados por
remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não
invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por
outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando
a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.
(...)
§ 2º O INCRA regulamentará as
hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio
estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante
levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.
Determinado
partido político ajuizou ADI contra essa previsão. Ele alegou que o art. 68 do
ADCT já prevê que as terras ocupadas pelas comunidades quilombolas pertencem a
estes grupos. Logo, se uma pessoa que não é quilombola possui um título de
propriedade referente a esta área, esse título não é válido. Assim, não haveria
necessidade de desapropriar o imóvel considerando que o particular não seria o
real dono dessas terras.
O STF não
concordou com o autor.
De fato,
o próprio art. 68 do ADCT confere o título de propriedade. Assim, constatada a
situação de fato – ocupação tradicional das terras por remanescentes dos
quilombos –, a própria Constituição confere-lhes o título de propriedade.
Ocorre que em nenhum momento a Constituição afirma que são
nulos ou extintos os títulos eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas
por remanescentes das comunidades dos quilombos, diferentemente do que acontece
no caso das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, cujo art. 231, § 6º
preconiza:
Art. 231 (...)
§ 6º São nulos e extintos, não
produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das
riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado
relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar,
não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a
União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de
boa fé.
Assim, o art. 68 do ADCT, apesar de reconhecer
um direito aos quilombolas, não invalida os títulos de propriedade
eventualmente existentes, de modo que, para que haja a regularização do
registro em favor das comunidades quilombolas, exige-se a realização do
procedimento de desapropriação.
Logo, o STF declarou a
constitucionalidade desse art. 13 do Decreto nº 4.887/2003 (STF. Plenário. ADI
3239/DF, rel. orig. Min. Cezar Peluso, red.p/ o ac. Min. Rosa Weber, julgado em
8/2/2018. Info 890).
O
que fazer então?
Nos
casos em que houver título de propriedade particular legítimo sobre as terras a
serem tituladas aos quilombolas, a transferência da propriedade para essas
comunidades deve ser realizada por meio de regular processo de desapropriação,
conforme previsto no art. 13 do Decreto nº 4.887/2003, dispositivo esse que tem
aptidão para garantir a observância do imperativo constitucional.
Voltando
à controvérsia principal do caso concreto: houve caducidade?
NÃO.
A
análise sobre a aplicabilidade ou não de prazo de caducidade às desapropriações
em benefício das comunidades quilombolas deve levar em consideração o
tratamento constitucional diferenciado conferido ao processo de titulação de
terras de ocupação tradicional e às especificidades desse tipo de
desapropriação.
A
Constituição Federal, no art. 68 do ADCT, assegura o direito das comunidades
quilombolas à posse e à propriedade das terras que tradicionalmente ocupam, em
razão de seus laços históricos e culturais com o território.
O
fundamento constitucional das desapropriações quilombolas se difere do das
desapropriações comuns reguladas no Brasil, seja pelo Decreto-Lei nº 3.365/1941,
que trata das desapropriações por utilidade pública, seja pela Lei nº 4.132/1962,
que se aplica a situações de interesse social para fins gerais.
Outra
particularidade das desapropriações voltadas à titulação de terras para as
comunidades quilombolas é o reforço do art. 216, § 1º, da Constituição Federal,
que confere proteção ao patrimônio cultural brasileiro e reconhece o direito à
propriedade como essencial para a preservação da identidade cultural
quilombola.
Segundo a doutrina:
“[…]
no caso dos negros quilombolas, o desafio reside, justamente, na efetivação dos
seus direitos fundamentais, com ênfase para as garantias sociais historicamente
negligenciadas, de modo a tornar nossa democracia menos formal/ retórica e mais
substantiva. Para cumprir esta tarefa, mostra-se imperioso que o Estado seja
encarado enquanto instrumento para erradicação do racismo e a reversão de suas
sequelas (estigmas, exclusões e desigualdades raciais); ao reconhecimento da
cidadania dessas populações; ao resgate e a preservação do seu patrimônio
cultural; e ainda para a titulação, em caráter definitivo da propriedade
ancestralmente ocupada pelos povos quilombolas.” (BITTENCOURT, Gilmar. Direito
dos remanescentes de quilombolas: dimensão de um direito constitucional.
Salvador: ESDEP, 2013.)
O
entendimento do STF, extraído do julgamento da ADI 3.239, é o de que o processo
de desapropriação para titulação de terras às comunidades quilombolas possui um
caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, transcendente aos
interesses puramente econômicos ou de desenvolvimento.
No
contexto das comunidades quilombolas, o principal objetivo é a preservação do
direito fundamental à identidade cultural e territorial, de forma que a
aplicação de prazos que comprometam a eficácia desse direito fundamental,
quando já identificado e reconhecido pelo próprio Estado, não se justifica.
Assim,
prazos de caducidade, tal como o prazo estabelecido no art. 3º da Lei
4.132/1962, aplicável às desapropriações convencionais, não devem incidir nesse
tipo especial de desapropriação em prol dos direitos quilombolas, dado o seu
objetivo constitucional específico e a sua regência por lei especial em sentido
material (Decreto 4.887/2003).
Os
institutos jurídicos não previstos no corpo normativo do Decreto 4.889/2003
somente podem ser aplicados se compatíveis com a essência e a finalidade do
contexto protetivo e afirmativo da política pública em prol das comunidades
quilombolas.
O
silêncio do Decreto 4.887/2003 sobre um prazo de caducidade não deve ser
entendido como uma lacuna normativa a ser preenchida por outras normas. Ao
contrário, entendo que reflete uma escolha deliberada ao normatizar e tratar
essa modalidade de desapropriação.
Esse
silêncio está alinhado com a natureza especial do processo de identificação,
delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas, que envolve a
ocupação tradicional e a proteção de um direito constitucional fundamental.
A
ocupação tradicional das terras quilombolas envolve territórios utilizados para
garantir a sobrevivência e a cultura de um modo de vida específico das
comunidades.
As
desapropriações quilombolas têm uma função reparatória e visam corrigir
injustiças históricas, além de promover direitos humanos e garantir direitos
fundamentais. O processo de titulação das terras quilombolas, portanto, não
pode ser regido cegamente pelos mesmos prazos e regras aplicáveis às
desapropriações convencionais. Nesse sentido: VITORELLI, Edilson. Territórios
Quilombolas: Natureza Jurídica e Aspectos Polêmicos. Revista Magister de
Direito Ambiental e Urbanístico Nº 72 – Jun-Jul/2017.
A
análise do art. 13 do Decreto nº 4.887/2003 revela que, ao ingressar na fase de
desapropriação das terras para titulação das comunidades quilombolas, o Poder
Público já concluiu os procedimentos administrativos de identificação,
reconhecimento e delimitação dessas terras, pois constituem procedimentos
prévios que configuram o reconhecimento estatal da ocupação tradicional e do
direito quilombola sobre o território específico.
À luz desse raciocínio, o STJ entende que é o instituto
da decadência/caducidade é incompatível com as desapropriações para titulação
de terras quilombolas.
Em suma:
A desapropriação para comunidades quilombolas possui
caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, não se aplicando a
esse procedimento os prazos de caducidade das desapropriações comuns.
STJ. 1ª
Turma. REsp 2.000.449-MT, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em
26/11/2024 (Info 837).
Treine o assunto estudado:
Banca: Fundação Getúlio Vargas - FGV - Prova: FGV - Câmara de
Fortaleza - Consultor Legislativo – Área: Direitos Humanos - 2024
O último censo do IBGE aponta que há 1,3 milhão de quilombolas
em 1,7 mil municípios de todo o país.
Nesse contexto, analise os itens a seguir.
I. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado os títulos respectivos a eles. (Correto)