Dizer o Direito

segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Comentários à Súmula 676 do STJ

(Im)possibilidade de conversão da prisão em flagrante em preventiva (ou temporária) de ofício pelo juiz

Antes da Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), a jurisprudência entendia que o juiz poderia, de ofício, decretar a prisão do investigado ou do réu.

Ocorre que a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime) revogou os trechos do CPP que previam a possibilidade de decretação da prisão preventiva ex officio. Veja:

Antes da Lei 13.964/2019

ATUALMENTE

Art. 282. (...)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz, de ofício ou a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.

Art. 282. (...)

§ 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.

 

ý (Defensor DPEPR 2024 Fundatec incorreta, pois o CPP não permite a decretação de prisão preventiva de ofício) Michele é presa em flagrante por roubo no dia 20/03/2024. Apesar da gravidade em abstrato do crime, o Ministério Público se manifesta pela liberdade provisória da investigada. A juíza plantonista decreta a prisão preventiva de Michele. Sobre o caso, analise as asserções abaixo: Apesar de previsão legal expressa permitir a decretação da prisão preventiva de ofício, o entendimento jurisprudencial pacífico é pela impossibilidade de decretação da prisão preventiva sem provocação.

 

Depois das alterações promovidas pelo Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/2019), permanece a possibilidade de o juiz converter de ofício, a prisão em flagrante em prisão preventiva?

NÃO. Com a Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), está proibida qualquer prisão decretada de ofício pelo magistrado.

Nesse sentido:

Após o advento da Lei nº 13.964/2019, não é mais possível a conversão da prisão em flagrante em preventiva sem provocação por parte ou da autoridade policial, do querelante, do assistente, ou do Ministério Público, mesmo nas situações em que não ocorre audiência de custódia.

A Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, § 2º, e do art. 311, ambos do CPP, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio requerimento das partes ou representação da autoridade policial.

Logo, não é mais possível, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação ‘ex officio’ do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade.

STJ. 3ª Seção. RHC 131.263, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 24/02/2021 (Info 686).

STF. 2ª Turma. HC 188.888/MG, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 6/10/2020 (Info 994).

 

Com efeito, nos termos do art. 311 do CPP, "Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial".

No caso, embora o representante ministerial tenha postulado a aplicação de outras cautelares mais brandas, o Juízo decretou a prisão preventiva, caracterizando uma atuação de ofício.

STJ. 5ª Turma.  AgRg nos EDcl no RHC 196.080/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 18/6/2024.

 

O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a matéria, no Habeas Corpus n. 188.888, entendeu que "a Lei nº 13.964/2019, ao suprimir a expressão 'de ofício' que constava do art. 282, §§ 2º e 4º, e do art. 311, todos do Código de Processo Penal, vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem o prévio 'requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público', não mais sendo lícita, portanto, com base no ordenamento jurídico vigente, a atuação 'ex officio' do Juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade".

STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 195.540/PA, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 10/6/2024.

 

þ (Defensor DPEPR 2024 Fundatec correta, pois, se o MP opinou somente pela concessão da liberdade provisória, não é possível decretar prisão preventiva de ofício pelo juiz) Michele é presa em flagrante por roubo no dia 20/03/2024. Apesar da gravidade em abstrato do crime, o Ministério Público se manifesta pela liberdade provisória da investigada. A juíza plantonista decreta a prisão preventiva de Michele. Sobre o caso, analise as asserções abaixo: A decisão da magistrada está equivocada.

 

O inciso II do art. 310 do CPP poderia ser invocado como sendo um dispositivo que autorizaria a decretação de ofício da prisão preventiva?

NÃO. A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311, todos do CPP. Com isso, o juiz pode sim converter a prisão em flagrante em preventiva, desde que, além de presentes as hipóteses do art. 312 e ausente a possibilidade de substituir por cautelares outras, haja o pedido expresso por parte ou do Ministério Público, ou da autoridade policial, ou do assistente ou do querelante. Nesse sentido:

A interpretação do art. 310, II, do CPP deve ser realizada à luz dos arts. 282, §§ 2º e 4º, e 311, do mesmo estatuto processual penal, a significar que se tornou inviável, mesmo no contexto da audiência de custódia, a conversão, de ofício, da prisão em flagrante de qualquer pessoa em prisão preventiva, sendo necessária, por isso mesmo, para tal efeito, anterior e formal provocação do Ministério Público, da autoridade policial ou, quando for o caso, do querelante ou do assistente do MP.

STJ. 3ª Seção. RHC 131.263/GO, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 24/2/2021.

STJ. 6ª Turma. AgRg no RHC 167.672/BA, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 29/4/2024.

 

Com o objetivo de cristalizar esse entendimento jurisprudencial, o STJ editou o enunciado:

Súmula 676-STJ: Em razão da Lei n. 13.964/2019, não é mais possível ao juiz, de ofício, decretar ou converter prisão em flagrante em prisão preventiva.

STJ. 3ª Seção. Aprovada em 11/12/2024, DJe de 17/12/2024 (Info 837).


 

DOD Plus - aprofundando:

 

Se o Ministério Público pediu a aplicação de medida cautelar diversa da prisão, o juiz está autorizado a decretar a prisão sob o argumento de que se trata de uma espécie de medida cautelar?

O STJ está dividido.

Existem decisões afirmando que SIM:

O STJ tem entendimento de que a manifestação do parquet pela aplicação de medidas alternativas diversas ao cárcere, permite ao juiz avaliar a pertinência das referidas cautelares e, nessa condição, impor a mais adequada e suficiente ao caso, inclusive a mais grave, qual seja, a prisão preventiva, sem se falar em prisão cautelar de ofício.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 900.602/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 20/5/2024.

 

A determinação do magistrado pela cautelar máxima, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio.

STJ. 6ª Turma. RHC 145.225-RO, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

 

A 1ª Turma do STF também já decidiu que SIM:

Apesar da discordância de entendimento entre o Promotor de Justiça e o Magistrado de origem acerca da espécie de medida cautelar a ser adotada, houve pronunciamento do órgão de acusação para que outras cautelares alternativas fossem fixadas, situação bem distinta de quando o julgador age sponte sua.

No caso, depois de ouvir o Ministério Público e a defesa, o Juízo de custódia homologou a prisão em flagrante e entendeu que a medida mais adequada, na espécie, era a conversão do flagrante em prisão preventiva.

Nessas circunstâncias, a autoridade judiciária não excedeu os limites de sua atuação e nem tampouco agiu de ofício, de modo que a prisão preventiva do recorrente é compatível com a nova legislação de regência, além de proporcional e adequada ao caso concreto.

STF. 1ª Turma. RHC 234974 AgR, Rel. Min. Cristiano Zanin, julgado em 19/12/2023.

 

Por outro lado, também existem decisões do STJ e da 2ª Turma do STF sustentando que NÃO:

Nos termos do art. 311 do CPP, “Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”.

No caso, embora o representante ministerial tenha postulado a aplicação de outras cautelares mais brandas, o Juízo decretou a prisão preventiva, caracterizando uma atuação de ofício.

STJ. 5ª Turma. AgRg nos EDcl no RHC 196.080/MG, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 18/6/2024.

 

A determinação do magistrado pela cautelar máxima, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio.

STJ. 6ª Turma. RHC 145.225-RO, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 15/02/2022 (Info 725).

 

É ilegal a conversão em preventiva da prisão em flagrante quando o Ministério Público requer a concessão da liberdade provisória, salvo se houver representação da autoridade policial, o que não é o caso dos autos.

STF. 2ª Turma. HC 193592 AgR, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 21/02/2022.

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Fundação Getúlio Vargas - FGV - Prova: FGV - TJ SC - Juiz Substituto - 2024

O Ministério Público ofereceu denúncia contra Robério em razão da prática do crime de homicídio culposo e requereu a prisão preventiva do acusado, pelo fato de ostentar outras condenações por delitos culposos em sua folha de antecedentes criminais, bem como por não possuir ele residência fixa na comarca.

Analisando o pleito ministerial, é correto afirmar que o juiz:

Não poderá decretar a prisão preventiva do acusado, que não é cabível, mas poderá decretar medida cautelar diversa da prisão. (Correto)


domingo, 26 de janeiro de 2025

Antes do consumidor ser inscrito nos cadastros restritivos de crédito (exs: SPC/Serasa), ele precisa ser previamente notificado. Essa notificação pode ser por e-mail

Se o consumidor está inadimplente, o fornecedor poderá incluí-lo em cadastros de proteção ao crédito (exs.: SPC e SERASA)?

SIM.

 

Qual o cuidado prévio que deve ser tomado?

A abertura de qualquer cadastro, ficha, registro e dados pessoais ou de consumo referentes ao consumidor deverá ser comunicada por escrito a ele (§ 2º do art. 43 do CDC).

Logo, o órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito deverá notificar o devedor antes de proceder à inscrição:

Súmula 359-STJ: Cabe ao órgão mantenedor do cadastro de proteção ao crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição.

 

ý (Promotor MP/GO 2019) A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitado por ele. Logo, cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação do devedor após proceder à inscrição. (ERRADO)

 

Assim, é ilegal e sempre deve ser cancelada a inscrição do nome do devedor em cadastros de proteção ao crédito realizada sem a prévia notificação exigida pelo art. 43, § 2º do CDC.

Em outras palavras, antes de “negativar” o nome do consumidor, o SPC ou a SERASA deverão notificá-lo por escrito, informando acerca dessa possibilidade, a fim de que o consumidor, se quiser, possa pagar o débito ou questioná-lo judicialmente.

 

O que acontece se não houver essa notificação prévia?

A ausência de prévia comunicação ao consumidor da inscrição do seu nome em órgão de proteção ao crédito enseja indenização por danos morais, a ser paga pelos órgãos mantenedores de cadastros restritivos (exs.: SERASA, SPC).

 

Como é comprovada essa notificação prévia? Exige-se prova de que o consumidor tenha efetivamente recebido a notificação?

NÃO. Basta que seja provado que foi enviada uma correspondência ao endereço do consumidor notificando-o quanto à inscrição de seu nome no respectivo cadastro, sendo desnecessário aviso de recebimento (AR):

Súmula 404-STJ: É dispensável o Aviso de Recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros.

 

ý (Promotor MP/GO 2019) É indispensável o Aviso de Recebimento (AR) na carta de comunicação ao consumidor sobre a negativação de seu nome em bancos de dados e cadastros. (ERRADO)

 

É possível que essa prévia notificação seja feita por e-mail ou SMS?

SIM. Atualmente, as duas Turmas de Direito Privado do STJ (3ª e 4ª Turmas) possuem julgados afirmando que é possível a notificação por e-mail. Confira:

 

3ª Turma:

Considerando a regra vigente no ordenamento jurídico pátrio - de que a comunicação dos atos processuais, através da citação e da intimação, deve ser realizada pelos meios eletrônicos, que, inclusive, se aplica ao processo penal, nos termos da jurisprudência deste Tribunal, com mais razão deve ser admitido o meio eletrônico como regra também para fins da notificação do art. 43, § 2º, do CDC, desde que comprovados o envio e o recebimento no e-mail ou no número de telefone (se utilizada a mensagem de texto de celular ou o aplicativo whatsapp) informados pelo consumidor ao credor.

No contexto atual da sociedade brasileira, marcado por intenso e democrático avanço tecnológico, com utilização, por maciça camada da população, de dispositivos eletrônicos com acesso à internet, na quase totalidade do território nacional, constata-se que não subsiste a premissa fática na qual se baseou a Terceira Turma nos precedentes anteriores, que vedavam a utilização exclusiva dos meios eletrônicos.

Portanto, a notificação prévia do consumidor acerca do registro do seu nome no cadastro de inadimplentes, nos termos do art. 43, § 2º, do CDC, pode ser realizada por meio eletrônico, desde que devidamente comprovados o envio e a entrega da notificação, realizados por e-mail, mensagem de texto de celular (SMS) ou até mesmo pelo aplicativo whatsapp.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.092.539/RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 17/9/2024.

 

4ª Turma:

É válida a comunicação remetida por e-mail para fins de notificação do consumidor acerca da inscrição de seu nome em cadastro de inadimplentes, desde que comprovado o envio e entrega da comunicação ao servidor de destino. 

STJ. 4ª Turma. REsp 2.063.145-RS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 14/3/2024 (Info 808).

 

É válida a comunicação escrita, conforme prevê o art. 43, § 2º, do CDC, enviada por carta ou e-mail, para fins de notificação do consumidor acerca da inscrição de seu nome em cadastro de inadimplentes, desde que os dados do consumidor sejam fornecidos pelo credor ao órgão mantenedor do cadastro de inadimplentes.

STJ. 4ª Turma. REsp 2.158.450-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/12/2024 (Info 837).

 

A Súmula 359 do STJ estabelece que “cabe ao órgão mantenedor do Cadastro de Proteção ao Crédito a notificação do devedor antes de proceder à inscrição”.

Para ser válida, a comunicação prévia ao consumidor:

• deve ser feita por escrito;

• deve ser dirigida ao consumidor;

• não precisa seguir formalidades excessivas.

 

Quando os órgãos de proteção ao crédito escolhem enviar a comunicação por carta, não precisam comprovar que o consumidor a recebeu (não é necessário aviso de recebimento - AR).

Portanto, atende ao art. 43, § 2º, do CDC tanto a comunicação por carta quanto por e-mail, desde que o credor tenha fornecido os dados corretos do consumidor ao órgão responsável pelo cadastro de inadimplentes.

 

Caso adaptado enfrentado pela 4ª Turma:

Regina teve seu nome inscrito no Serviço Central de Proteção ao Crédito (SCPC), em razão de um débito que tinha com uma loja.

Antes de ser negativada, a consumidora foi notificada, nos termos do § 2º do art. 43 do CDC, por e-mail.

O e-mail usado para a notificação tinha sido fornecido por ela no momento da compra. Vale ressaltar que Regina havia autorizado o envio de notificação prévia por e-mail ou telefone.

Inconformada com a inscrição negativa, Regina ajuizou ação de cancelamento de registro cumulada com pedido de indenização por danos morais.

Argumentou que a notificação prévia não atendeu os requisitos formais, pois deveria ter sido feita a remessa de carta ao endereço cadastrado, não sendo válida a notificação via e-mail ou SMS.

Após as instâncias ordinárias, o STJ não acolheu os pedidos da autora entendendo válida a notificação por e-mail.

STJ. 4ª Turma. REsp 2.158.450-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 10/12/2024 (Info 837).

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Centro de Seleção e de Promoção de Eventos UnB - CESPE CEBRASPE - Prova: CESPE/CEBRASPE - CAGEPA - Advogado - 2024

Acerca dos bancos de dados e cadastros de consumidores, assinale a opção correta de acordo com a jurisprudência do STJ.

Cabe ao credor realizar a notificação do devedor antes de proceder à inscrição do nome deste em cadastro de proteção ao crédito. (Incorreto)


sábado, 25 de janeiro de 2025

O autor não pode desistir da ação de alimentos, mesmo se o pedido de desistência foi apresentado antes da contestação, se isso for prejudicar os interesses de pessoa com deficiência (síndrome de down) que seria beneficiada com os alimentos

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, empresário bem-sucedido, ajuizou ação de oferecimento de alimentos em favor de sua filha Maria, de 17 anos, que possui Síndrome de Down.

Na ação, ele se propôs a pagar uma pensão alimentícia de 5 salários mínimos mensais, valor que foi fixado pelo juiz como alimentos provisórios.

Algum tempo depois, João descobriu que sua ex-esposa Regina, mãe de Maria, havia vendido um imóvel que pertencia ao ex-casal, sem repassar a ele a sua metade na venda. Irritado com esta situação, João decidiu desistir da ação de oferecimento de alimentos que ele mesmo havia proposto, apresentando o pedido de desistência. Vale ressaltar que esse pedido de desistência foi manejado antes de ter sido oferecida a contestação.

Antes que o juiz pudesse analisar o pedido de desistência, Maria, assistida por sua mãe Regina, apresentou contestação solicitando não só a manutenção dos alimentos provisórios, mas também sua majoração para 7 salários mínimos a fim de incluir outras despesas como plano de saúde e mensalidade escolar.

O juiz negou o pedido de desistência de João, mesmo tendo sido apresentado antes da contestação.

João recorreu, argumentando que, de acordo com o art. 485, §4º do CPC, ele teria direito de desistir da ação antes da contestação sem precisar da concordância da parte contrária:

Art. 485 (...)

§ 4º Oferecida a contestação, o autor não poderá, sem o consentimento do réu, desistir da ação.

 

O Tribunal de Justiça, contudo, manteve a decisão do juiz, entendendo que, neste caso específico, o direito processual de desistir da ação não poderia se sobrepor aos interesses de uma pessoa com deficiência, que tem proteção especial garantida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).

Além disso, o Tribunal considerou que João estava agindo de má-fé ao tentar usar a desistência da ação de alimentos como forma de pressionar Regina na questão do imóvel vendido, prejudicando assim os interesses de Maria.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial afirmando que o TJ violou o art. 485, § 4º do CPC. Pediu para que fosse homologado a desistência da ação.

 

O STJ deu provimento ao recurso de João?

NÃO.

Uma análise superficial e apressada poderia levar à conclusão de que, se o autor desistiu da ação antes da contestação, isso deveria conduzir à extinção do feito, porque o art. 485, § 4º, do CPC estabelece que, até então, o autor não precisa de consentimento do réu para desistir da ação.

Contudo, conforme bem ensinam LUIZ GUILHERME MARINONI, SERGIO CRUZ ARENHART e DANIEL MITIDIERO: “O processo não pode ser visto apenas como relação jurídica, mas sim como algo que tem fins de grande relevância para a democracia”. Daí, como complementam:

“É preciso, antes de aplicar a lei, atribuir sentido e valor ao litígio. Ou seja, a jurisdição não mais se limita a tornar a lei – abstrata e genérica – particular quando da resolução do caso concreto, pois necessariamente deve atribuir sentido ao caso concreto para interpretar a lei e solucionar o litígio, exatamente por ser indiscutível que a sociedade e os casos concretos não podem ser regulados sem se considerarem as suas especificidades.” (Curso de Processo Civil. Vol. I. 2ª ed. São Paulo: RT, 2016, p. 437 e 440).

 

A homologação da desistência da ação foi rejeitada por conta das especificidades da demanda.

Não se vislumbra nenhum equívoco nessa determinação de prosseguimento do feito.

No caso, a despeito de a contestação ter sido ofertada posteriormente ao pedido de desistência, o fato é que foi ofertada e trouxe resistência pela parte ré quanto ao pleito de desistência.

Nessas circunstâncias, é de se ter por prudente a negativa de homologação da desistência da ação, uma vez que, com a contestação ofertada, a demanda deixou de interessar exclusivamente ao autor.

Não importa, por outro lado, que apesar da desistência manifestada subsistiria para a ré o direito de ajuizar nova ação, para nela pedir os alimentos de que necessita. Já estando posta a lide, que é dúplice, não faz sentido algum a sua extinção, para que novamente se abra a discussão noutro processo. Isso atentaria contra o princípio da duração razoável e do direito à solução integral do mérito (art. 4º, CPC).

O direito do autor de desistir da ação não pode se sobrepor ao direito da demandada pela busca de uma decisão de mérito e, com mais razão, quando a homologação da decisão seria prejudicial aos interesses de pessoa com deficiência (Síndrome de Down), cuja efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação e à sua dignidade deve ser assegurada com prioridade pelo Estado (art. 8º da Lei nº 13.146/2015).

No mais, não se pode perder de vista que a interpretação do Código de Processo Civil conduz também à observância da instrumentalidade das formas, com o propósito de conferir efetividade ao processo, atribuindo especial importância aos princípios da celeridade e da economia processual.

Igualmente, a reforma do acórdão recorrido contraria a boa-fé objetiva que foi alçada pelo art. 5º do CPC/2015 como norma fundamental do processo, que exige que os sujeitos processuais devem adotar dentro do processo uma postura em respeito à lealdade e à boa-fé processual, não podendo o autor/recorrente contrariar o seu comportamento anterior que observava e assegurava o melhor interesse de pessoa deficiente.

Por fim, o fato aventado pelo autor, sobre eventual direito seu de parte no produto da venda de imóvel, não tem força suficiente para influir na relação de alimentos, que se estabelece entre ele e sua filha não em relação a sua ex-mulher, que, se for mesmo o caso, poderá ser cobrada.

 

Em suma:

O direito do autor de desistir de ação de oferecimento de alimentos não pode se sobrepor ao direito da demandada pela busca de uma decisão de mérito, ainda que o pedido tenha sido apresentado antes da contestação, quando a homologação da decisão prejudicar os interesses de pessoa com deficiência (síndrome de down). 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.167.135-RJ, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 10/12/2024 (Info 837).

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Fundação Carlos Chagas - FCC - Prova: FCC - PGE GO - Procurador do Estado Substituto - 2024

Em relação aos atos dispositivos das partes:

O autor pode desistir da ação até a sentença, independentemente do consentimento do réu, se o STJ fixar tese contrária ao pedido em recurso repetitivo, mesmo que já apresentada contestação. (Correto)


sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

O termo inicial da pensão por morte é fixado na data do evento danoso, sendo irrelevante a possibilidade de atividade laboral da vítima

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, que cumpria pena em um presídio no Ceará, foi morto por outro detento durante uma rebelião.

Regina e Lucas, esposa e filho de João, ingressaram com ação contra o Estado do Ceará pedindo o pagamento de:

• indenização por danos morais;

• pensão mensal em decorrência da morte, nos termos do art. 948, II, do Código Civil:

Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:

(...)

II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.

 

O Estado do Ceará contestou, alegando que a pensão só deveria começar a ser paga a partir do momento em que João, hipoteticamente, fosse solto e pudesse voltar a trabalhar, e não da data da morte.

Assim, como ainda faltavam 15 anos de pena para cumprir, o Estado alegou que somente daqui a 15 anos deveria começar a pagar a pensão para os familiares do falecido.

 

O STJ concordou com esse argumento do Estado-membro?

NÃO.

O termo inicial da pensão e dos juros é a data do evento danoso, sendo irrelevante o efetivo exercício de atividade laboral pela vítima. Esse é o entendimento pacificado na jurisprudência do STJ:

Com relação aos termos iniciais da pensão e dos juros de mora dos danos morais, é pacífico o entendimento jurisprudencial do STJ segundo o qual, tratando-se de responsabilidade extracontratual, os termos iniciais são a data do evento danoso, independentemente de o autor exercer ou não atividade laboral à época.

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 1.968.131/MG, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 17/10/2022.

 

O entendimento do STJ é no sentido de que o direito à pensão vitalícia previsto no art. 950 do CC/02 exige apenas a comprovação da redução da capacidade de trabalho, sendo prescindível a demonstração de exercício de atividade remunerada à época do acidente. Se a vítima não auferia renda, o valor da pensão vitalícia deve ser fixado em um salário mínimo.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.884.887/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/8/2021.

 

5. A morte de menor em acidente (atropelamento, in casu), mesmo que à data do óbito ainda não exercesse atividade laboral remunerada ou não contribuísse com a composição da renda familiar, autoriza os pais, quando de baixa renda, a pedir ao responsável pelo sinistro a reparação por danos materiais, aqueles resultantes do auxílio que, futuramente, o filho poderia prestar-lhes.

STJ. 3ª Turma. REsp 1.884.887/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/8/2021.

 

Em suma:

É irrelevante o momento de possibilidade de exercício de atividade laboral de detento que faleceu no presídio, para fixação do termo inicial da pensão por morte em favor de seu dependente, marco que é traçado pela data do evento danoso (óbito). 

STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 2.529.276-CE, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 21/10/2024 (Info 836).


quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

A desapropriação para comunidades quilombolas possui caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, não se aplicando a esse procedimento os prazos de caducidade das desapropriações comuns

Quilombolas

O art. 68 do ADCT da CF/88 confere proteção especial aos territórios ocupados pelos remanescentes quilombolas. Confira:

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

 

Esse artigo possui duas partes:

1ª) estabelece um direito aos quilombolas: propriedade das terras ocupadas (“aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva”);

2) determina uma ordem ao Estado para que pratique o ato necessário a fim de assegurar esse direito:  expedição dos títulos de propriedade (“devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”).

 

O que são as terras dos quilombolas?

São as áreas ocupadas pelos remanescentes das comunidades dos quilombos e utilizadas por este grupo social para a sua reprodução física, social, econômica e cultural.

 

O que são remanescentes das comunidades dos quilombos?

Existe uma grande discussão antropológica sobre isso, mas, de maneira bem simples, os grupos que hoje são considerados remanescentes de comunidades de quilombos são agrupamentos humanos de afrodescendentes que se formaram durante o sistema escravocrata ou logo após a sua extinção.

O Decreto nº 4.887/2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

O Decreto 4.887/2003 é um decreto autônomo. Isso porque ele retira a sua validade diretamente da Constituição Federal, especificamente do art. 68 do ADCT.

STF. Plenário. ADI 3239/DF, rel. orig. Min. Cezar Peluso, red.p/ o ac. Min. Rosa Weber, julgado em 8/2/2018 (Info 890).

 

O Decreto 4.887/2003 assim os define:

Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

 

A previsão do art. 68 do ADCT foi uma forma que o constituinte encontrou de homenagear “o papel protagonizado pelos quilombolas na resistência ao injusto regime escravista” (Min. Rosa Weber).

 

Feita essa introdução, imagine a seguinte situação adaptada:

Em 2018, o INCRA identificou que a Comunidade Quilombola Vale da Liberdade, localizada no Mato Grosso, ocupava tradicionalmente uma área de 500 hectares há mais de 100 anos.

Foi instaurado processo administrativo para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas.

Após realizar todos os estudos técnicos necessários, incluindo relatório antropológico que comprovou a ancestralidade da ocupação quilombola, o INCRA concluiu o processo administrativo de reconhecimento do território em 2019.

Ocorre que parte das terras estava registrada em nome de dois particulares: o fazendeiro João e sua esposa Regina. Eles haviam adquirido onerosamente os imóveis e não havia indícios de nulidade ou fraude.

Com base nisso, o INCRA emitiu um decreto de desapropriação por interesse social para garantir o direito à propriedade coletiva da comunidade quilombola, como previsto no art. 68 do ADCT.

O problema foi que o INCRA só conseguiu ajuizar a ação de desapropriação em 2022, ou seja, após o prazo de 2 anos previsto no art. 3º da Lei nº 4.132/1962:

Lei nº 4.132/1962 (define os casos de desapropriação por interesse social):

Art. 1º A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal.

(...)

Art. 3º O expropriante tem o prazo de 2 (dois) anos, a partir da decretação da desapropriação por interesse social, para efetivar a aludida desapropriação e iniciar as providências de aproveitamento do bem expropriado.

 

João e Regina contestaram a demanda alegando que o decreto havia caducado por ter ultrapassado esse prazo.

O Tribunal Regional Federal acolheu o argumento dos proprietários e reconheceu a caducidade do decreto. O TRF entendeu que o prazo de dois anos, estabelecido no art. 3º da Lei 4.132/1962, aplica-se ao decreto expropriatório para fins de desapropriação voltada para titulação de terras às comunidades remanescentes de quilombos.

O INCRA e o Ministério Público Federal, contudo, interpuseram recurso especial, argumentando que o prazo de caducidade não se aplicaria às desapropriações para fins de titulação de terras quilombolas, devido à sua natureza especial e constitucional.

Nas palavras do MPF:

“Tratando-se de direito fundamental, aplicam-se a ele os princípios da imprescritibilidade e da máxima eficácia. Não é, portanto, cabível a sua restrição pelo decurso do tempo, tampouco a eleição de interpretação ou procedimento que diminua ou inviabilize o exercício do direito por seu destinatário”.

 

O STJ acolheu os argumentos do INCRA e do MPF?

SIM.

 

Desapropriação de áreas que estejam em domínio particular, para transferi-las às comunidades

O art. 13 do Decreto prevê o seguinte:

Art. 13.  Incidindo nos territórios ocupados por remanescentes das comunidades dos quilombos título de domínio particular não invalidado por nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, será realizada vistoria e avaliação do imóvel, objetivando a adoção dos atos necessários à sua desapropriação, quando couber.

(...)

§ 2º O INCRA regulamentará as hipóteses suscetíveis de desapropriação, com obrigatória disposição de prévio estudo sobre a autenticidade e legitimidade do título de propriedade, mediante levantamento da cadeia dominial do imóvel até a sua origem.

 

Determinado partido político ajuizou ADI contra essa previsão. Ele alegou que o art. 68 do ADCT já prevê que as terras ocupadas pelas comunidades quilombolas pertencem a estes grupos. Logo, se uma pessoa que não é quilombola possui um título de propriedade referente a esta área, esse título não é válido. Assim, não haveria necessidade de desapropriar o imóvel considerando que o particular não seria o real dono dessas terras.

O STF não concordou com o autor.

De fato, o próprio art. 68 do ADCT confere o título de propriedade. Assim, constatada a situação de fato – ocupação tradicional das terras por remanescentes dos quilombos –, a própria Constituição confere-lhes o título de propriedade.

Ocorre que em nenhum momento a Constituição afirma que são nulos ou extintos os títulos eventualmente incidentes sobre as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, diferentemente do que acontece no caso das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, cujo art. 231, § 6º preconiza:

Art. 231 (...)

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

 

 Assim, o art. 68 do ADCT, apesar de reconhecer um direito aos quilombolas, não invalida os títulos de propriedade eventualmente existentes, de modo que, para que haja a regularização do registro em favor das comunidades quilombolas, exige-se a realização do procedimento de desapropriação.

Logo, o STF declarou a constitucionalidade desse art. 13 do Decreto nº 4.887/2003 (STF. Plenário. ADI 3239/DF, rel. orig. Min. Cezar Peluso, red.p/ o ac. Min. Rosa Weber, julgado em 8/2/2018. Info 890).

 

O que fazer então?

Nos casos em que houver título de propriedade particular legítimo sobre as terras a serem tituladas aos quilombolas, a transferência da propriedade para essas comunidades deve ser realizada por meio de regular processo de desapropriação, conforme previsto no art. 13 do Decreto nº 4.887/2003, dispositivo esse que tem aptidão para garantir a observância do imperativo constitucional.

 

Voltando à controvérsia principal do caso concreto: houve caducidade?

NÃO.

A análise sobre a aplicabilidade ou não de prazo de caducidade às desapropriações em benefício das comunidades quilombolas deve levar em consideração o tratamento constitucional diferenciado conferido ao processo de titulação de terras de ocupação tradicional e às especificidades desse tipo de desapropriação.

A Constituição Federal, no art. 68 do ADCT, assegura o direito das comunidades quilombolas à posse e à propriedade das terras que tradicionalmente ocupam, em razão de seus laços históricos e culturais com o território.

O fundamento constitucional das desapropriações quilombolas se difere do das desapropriações comuns reguladas no Brasil, seja pelo Decreto-Lei nº 3.365/1941, que trata das desapropriações por utilidade pública, seja pela Lei nº 4.132/1962, que se aplica a situações de interesse social para fins gerais.

Outra particularidade das desapropriações voltadas à titulação de terras para as comunidades quilombolas é o reforço do art. 216, § 1º, da Constituição Federal, que confere proteção ao patrimônio cultural brasileiro e reconhece o direito à propriedade como essencial para a preservação da identidade cultural quilombola.

Segundo a doutrina:

“[…] no caso dos negros quilombolas, o desafio reside, justamente, na efetivação dos seus direitos fundamentais, com ênfase para as garantias sociais historicamente negligenciadas, de modo a tornar nossa democracia menos formal/ retórica e mais substantiva. Para cumprir esta tarefa, mostra-se imperioso que o Estado seja encarado enquanto instrumento para erradicação do racismo e a reversão de suas sequelas (estigmas, exclusões e desigualdades raciais); ao reconhecimento da cidadania dessas populações; ao resgate e a preservação do seu patrimônio cultural; e ainda para a titulação, em caráter definitivo da propriedade ancestralmente ocupada pelos povos quilombolas.” (BITTENCOURT, Gilmar. Direito dos remanescentes de quilombolas: dimensão de um direito constitucional. Salvador: ESDEP, 2013.)

 

O entendimento do STF, extraído do julgamento da ADI 3.239, é o de que o processo de desapropriação para titulação de terras às comunidades quilombolas possui um caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, transcendente aos interesses puramente econômicos ou de desenvolvimento.

No contexto das comunidades quilombolas, o principal objetivo é a preservação do direito fundamental à identidade cultural e territorial, de forma que a aplicação de prazos que comprometam a eficácia desse direito fundamental, quando já identificado e reconhecido pelo próprio Estado, não se justifica.

Assim, prazos de caducidade, tal como o prazo estabelecido no art. 3º da Lei 4.132/1962, aplicável às desapropriações convencionais, não devem incidir nesse tipo especial de desapropriação em prol dos direitos quilombolas, dado o seu objetivo constitucional específico e a sua regência por lei especial em sentido material (Decreto 4.887/2003).

Os institutos jurídicos não previstos no corpo normativo do Decreto 4.889/2003 somente podem ser aplicados se compatíveis com a essência e a finalidade do contexto protetivo e afirmativo da política pública em prol das comunidades quilombolas.

O silêncio do Decreto 4.887/2003 sobre um prazo de caducidade não deve ser entendido como uma lacuna normativa a ser preenchida por outras normas. Ao contrário, entendo que reflete uma escolha deliberada ao normatizar e tratar essa modalidade de desapropriação.

Esse silêncio está alinhado com a natureza especial do processo de identificação, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas, que envolve a ocupação tradicional e a proteção de um direito constitucional fundamental.

A ocupação tradicional das terras quilombolas envolve territórios utilizados para garantir a sobrevivência e a cultura de um modo de vida específico das comunidades.

As desapropriações quilombolas têm uma função reparatória e visam corrigir injustiças históricas, além de promover direitos humanos e garantir direitos fundamentais. O processo de titulação das terras quilombolas, portanto, não pode ser regido cegamente pelos mesmos prazos e regras aplicáveis às desapropriações convencionais. Nesse sentido: VITORELLI, Edilson. Territórios Quilombolas: Natureza Jurídica e Aspectos Polêmicos. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico Nº 72 – Jun-Jul/2017.

A análise do art. 13 do Decreto nº 4.887/2003 revela que, ao ingressar na fase de desapropriação das terras para titulação das comunidades quilombolas, o Poder Público já concluiu os procedimentos administrativos de identificação, reconhecimento e delimitação dessas terras, pois constituem procedimentos prévios que configuram o reconhecimento estatal da ocupação tradicional e do direito quilombola sobre o território específico.

À luz desse raciocínio, o STJ entende que é o instituto da decadência/caducidade é incompatível com as desapropriações para titulação de terras quilombolas.

 

Em suma:

A desapropriação para comunidades quilombolas possui caráter reparatório e de promoção de direitos fundamentais, não se aplicando a esse procedimento os prazos de caducidade das desapropriações comuns. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.000.449-MT, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 26/11/2024 (Info 837).

 

Treine o assunto estudado:

Banca: Fundação Getúlio Vargas - FGV - Prova: FGV - Câmara de Fortaleza - Consultor Legislativo – Área: Direitos Humanos - 2024

O último censo do IBGE aponta que há 1,3 milhão de quilombolas em 1,7 mil municípios de todo o país.

Nesse contexto, analise os itens a seguir.

I. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado os títulos respectivos a eles. (Correto)


quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

A não homologação, pela comissão de heteroidentificação, de autodeclaração do candidato às vagas destinadas a afrodescendentes implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas e não alcança a sua classificação na lista de ampla concorrência

Imagine a seguinte situação adaptada:

João se inscreveu no concurso para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar (EPCAR).

No momento da inscrição, ele se autodeclarou pardo para concorrer às vagas reservadas a candidatos negros.

Após realizar todas as etapas do concurso, João obteve excelente desempenho, sendo aprovado tanto na lista de vagas reservadas quanto na ampla concorrência.

No entanto, ao passar pela comissão de heteroidentificação (que avalia se o candidato realmente possui características fenotípicas de pessoa negra), sua autodeclaração não foi homologada - ou seja, a comissão não o reconheceu como pardo.

Com base nessa não homologação, a EPCAR decidiu eliminar João do concurso completamente, mesmo ele tendo sido aprovado também nas vagas de ampla concorrência.

A justificativa da EPACAR foi a existência de uma cláusula do edital que determinava a eliminação total de candidatos que tivessem a autodeclaração racial não confirmada:

Item 2.4.6 do Edital: Serão eliminados do concurso público os candidatos cujas autodeclarações não forem confirmadas em procedimento de heteroidentificação, ainda que tenham obtido nota suficiente para aprovação na ampla concorrência e independentemente de alegação de boa-fé, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

 

João impetrou, então, um mandado de segurança argumentando que, mesmo que não fosse considerado pardo pela comissão, deveria permanecer concorrendo às vagas de ampla concorrência, nas quais também havia sido aprovado.

 

Após as instâncias ordinárias, o caso chegou até o STJ. O Tribunal concordou com o pedido de João para continuar como aprovado, com base na lista de ampla concorrência?

SIM. A Lei nº 12.990/2014 reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos realizados no âmbito da administração pública federal.

O parágrafo único do art. 2º da Lei nº 12.990/2014 prevê o seguinte:

Art. 2º Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Parágrafo único. Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

 

Esse parágrafo único significa que o candidato é eliminado apenas da lista reservada para os negros, mas não necessariamente de todo o concurso.

A não homologação da autodeclaração do candidato que disputa vagas reservadas para negros não importa em eliminação automática de todo o certame.

O candidato que se autodeclara negro ou pardo, se assim não for considerado pela comissão, apenas deixa de constar na lista dessa natureza e continua no certame, de acordo com sua classificação na lista geral.

Segundo princípios hermenêuticos, os parágrafos e incisos devem ser interpretados conforme o caput do artigo de lei ao qual se vinculam.

O caput do art. 2º da Lei nº 12.990/2014 dispõe especificamente a respeito da possibilidade de haver reservas de vagas destinadas a candidatos negros, assim considerados aqueles que se declararem pretos e pardos, motivo pelo qual a sanção contida no parágrafo único desse mesmo dispositivo – eliminação do candidato que prestar declaração falsa – se restringe à disputa por aquelas vagas reservadas, não alcançando a disputa pelas vagas destinadas à ampla concorrência.

Essa interpretação é corroborada pelo art. 3º desse diploma legal, onde é dito expressamente que os candidatos autodeclarados negros disputarão concomitantemente às vagas reservadas as de ampla concorrência, sem qualquer referência à possibilidade de o resultado da disputa pelas vagas de ampla concorrência ser influenciado pela eliminação na disputa pelas vagas reservadas – prevista no artigo anterior.

Assim, a partir da interpretação sistemática dos referidos dispositivos legais, que claramente admitem a possibilidade de os candidatos concorrerem simultaneamente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, a sanção estabelecida no art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 12.990/2014 deve ser interpretada restritivamente apenas em relação às vagas reservadas.

Logo, o item 2.4.6 do Edital do certame em tela deve ser interpretado em harmonia com a regra do art. 2º, caput, parágrafo único, da Lei nº 12.990/2014, no sentido de que a não homologação da autodeclaração do candidato implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas.

Para que se considere que houve declaração falsa, é necessário que seja constatada a falsidade ideológica, que, por sua vez, traz em si a necessidade de existência de má-fé.

 A mera não homologação da autodeclaração do candidato, pela comissão de heteroidentificação, não pode ser automaticamente associada à falsidade daquela autodeclaração.

A natureza fluida e subjetiva de uma classificação racial é inexoravelmente marcada por pré-concepções daqueles envolvidos nesse processo ao buscarem avaliar dado indivíduo ou grupo.

Esse fato assume especial relevância diante das especificidades da sociedade brasileira, que historicamente tem adotado um sistema de classificação mais ambíguo, no qual predomina um preconceito de marca, em que o critério de identificação do grupo discriminador e do grupo discriminado se vincula à aparência física ou ao fenótipo (NOGUEIRA, Oracy de. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. Prefácio de Thales de Azevedo. São Paulo: T.A. QUEIROZ, 1985, p. 78-9).

Porém, essa característica brasileira também faz com que o processo de classificação dos indivíduos seja influenciado por fatores subjetivos, amparados em critérios ambíguos quanto à aparência (a cor da pele, a textura do cabelo, traços faciais etc.) e à atitude (trajes, comportamento e círculo social), e em função do inter- relacionamento entre os indivíduos (tais como, v.g., as relações de amizade, simpatia ou de deferência). Sobre esse tema, destacam-se os seguintes autores: Oracy de Nogueira (Op. cit., p. 79-80, 82 e 88-9); Thomas E. Skidmore ("Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930)", Trad. Donaldson M. Garschagen. Prefácio Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 81-2); Lilia Moritz. Schwarcz ("Racismo no Brasil". 2ª ed. São Paulo: Publifolha, 2010, p. 68); Peter Fry ("A persistência da raça: ensaios antropológicos sobre o Brasil e a África austral". Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 176 e 217) e Antônio Risério ("A utopia brasileira e os movimentos negros". São Paulo: Ed. 34, 2007, p. 18).

Tem-se, desse modo, que a eliminação do certame prevista no art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 12.990/2014 não pode ser aplicada de forma irrestrita em toda e qualquer situação de não homologação da autodeclaração realizada pelos candidatos, sob pena de ofensa ao princípio da razoabilidade.

Tomando-se o princípio da razoabilidade com congruência, a não homologação de uma autodeclaração não autoria imputar ela a pecha de falsa, sob pena, inclusive, de se estar a presumir a má-fé do candidato, o que a jurisprudência do STJ não aceita.

Sob essa perspectiva não se pode considerar que o simples fato de não ter havido a confirmação pela Banca Examinadora signifique que houve má-fé na declaração prestada pelo candidato. O que houve, no caso, foi, única e exclusivamente, a existência de divergência entre a autodeclaração realizada pelo candidato e a conclusão tomada pela comissão de heteroidentificação.

 

Em suma:

A não homologação, pela comissão de heteroidentificação, de autodeclaração do candidato às vagas destinadas a afrodescendentes implica apenas sua eliminação do certame em relação às vagas reservadas e não alcança a sua classificação na lista de ampla concorrência. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.105.250-RJ, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 26/11/2024 (Info 836).


Se a arma for usada para proteger o tráfico de drogas, ela apenas aumenta a pena do tráfico (não será crime autônomo); se a arma era usada também para outras finalidades, o réu responde por dois crimes: tráfico e posse/porte ilegal de arma de fogo

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi preso em flagrante com drogas e arma de fogo.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pela prática dos crimes de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006) e porte ilegal de arma de fogo (art. 14 da Lei nº 10.826/2003), em concurso material (art. 69 do Código Penal).

A ação penal foi julgada procedente.

João recorreu alegando, dentre outros argumentos, que deveria ter sido reconhecida a consunção entre os delitos imputados, pois o porte de arma deveria ser reconhecido como mera majorante do crime de tráfico (art. 40, IV, da Lei nº 11.343/2006), e não como crime autônomo. Argumentou que a pistola apreendida era meio necessário para garantir a segurança da droga e impedir a sua apreensão.

 

O crime de porte ou posse ilegal de arma de fogo deve absorvido pelo tráfico de drogas?

Depende das circunstâncias do caso concreto.

 

1) Se há nexo finalístico entre o uso da arma e o tráfico de drogas

Quando o uso da arma está diretamente ligado ao sucesso dos crimes previstos nos arts. 33 a 37 da Lei de Drogas, ocorre a absorção do crime de porte ou posse de arma de fogo.

Assim, sempre que houver um nexo finalístico entre a conduta relacionada ao tráfico e a posse ou porte de arma de fogo, não se aplicará o concurso material.

Esse entendimento parte da premissa de que a posse ou porte de arma de fogo, nesses casos, é apenas um meio instrumental para viabilizar ou facilitar a prática do crime de tráfico de drogas. A arma de fogo, nesse contexto, não é considerada um delito autônomo, mas uma ferramenta essencial para a execução do crime principal, ou seja, o tráfico. Dessa forma, a conduta referente à arma de fogo é absorvida pela prática do outro delito, evitando, assim, a duplicidade de punição. Essa interpretação busca garantir uma aplicação mais coerente das penas, de modo a evitar a sobrecarga penal injustificada quando os crimes estão intrinsecamente conectados.

Além disso, a decisão reflete uma visão pragmática sobre o uso de armas no tráfico de drogas, reconhecendo que o porte ou posse é comumente associado à proteção das atividades ilícitas, à intimidação de terceiros ou à própria execução de delitos relacionados. Assim, ao estabelecer o nexo finalístico, o Tribunal entende que a intenção do agente é voltada primordialmente para o tráfico, e a arma serve apenas como um instrumento que favorece esse crime, o que justifica a aplicação de um único tipo penal, conforme a sistemática da absorção.

Assim, se ficar provado que a arma estava sendo usada para proteger a atividade do tráfico, o crime de posse ou porte de arma de fogo será absorvido pelo delito de tráfico de drogas. Não haverá concurso de crimes. A arma será considerada uma majorante do tráfico, nos termos do art. 40, IV, da Lei de Drogas:

Art. 40.  As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se:

(...)

IV - o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça, emprego de arma de fogo, ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva;

 

Ex: Pedro foi preso transportando droga em seu carro. Além do entorpecente, foi encontrado um revólver. Ficou comprovado que Pedro recebeu a arma juntamente com a droga, sendo ela usada para se proteger caso alguma organização criminosa adversária tentasse interceptar o entorpecente.

 

2) Se não há esse nexo finalístico entre o uso da arma e o tráfico de drogas

Se a arma não tinha relação direta com a atividade do tráfico, neste caso, o porte da arma será considerado um crime autônomo.

O réu será condenado por dois delitos (tráfico + posse/porte de arma) em concurso material (as penas são somadas).

Ex: Francisco é preso em flagrante ao transportar 340 kg de maconha, além de possuir em sua residência uma submetralhadora com dois carregadores e uma pistola com 12 munições. Durante a investigação, ficou demonstrado que as armas eram usadas em outras ações, como roubos e homicídios.

 

Tese fixada:

A majorante do art. 40, inciso IV, da Lei n. 11.343/2006 aplica-se quando há nexo finalístico entre o uso da arma e o tráfico de drogas, sendo a arma usada para garantir o sucesso da atividade criminosa, hipótese em que o crime de porte ou posse ilegal de arma é absorvido pelo tráfico. Do contrário, o delito previsto no Estatuto do Desarmamento é considerado crime autônomo, em concurso material com o tráfico de drogas. 

STJ. 3ª Seção. REsp 1.994.424-RS e REsp 2.000.953-RS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgados em 27/11/2024 (Recurso Repetitivo - Tema 1259) (Info 835).


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