sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
Você sabia que as medidas protetivas na Lei Maria da Penha não têm prazo fixo e podem permanecer enquanto houver risco para a vítima?
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina e João namoraram por 2
anos.
Após o término, Regina começou um
novo relacionamento com Pedro e engravidou.
João, inconformado com a ruptura
da relação, passou a persegui-la e a ameaçá-la.
Em um episódio específico,
durante a madrugada, João ateou fogo no carro de Pedro, quando Regina estava no
7º mês de uma gravidez de risco.
Temendo por sua segurança e de
sua família, Regina procurou a Delegacia da Mulher.
Regina declarou que não desejava
representar criminalmente contra o seu ex-namorado, mas pediu a concessão de medidas
protetivas para proteger a si mesma e seus familiares.
Ao analisar o caso, o juízo
criminal extinguiu o processo sem resolução do mérito, fundamentando a decisão
na ausência de representação criminal por parte da vítima.
O Ministério Público recorreu da
decisão argumentando que as medidas protetivas possuem natureza autônoma e
satisfativa, sendo independentes da representação criminal.
O Tribunal de Justiça deu
provimento ao recurso do Ministério Público, fixando medidas protetivas de
urgência em favor da vítima, pelo prazo de 90 dias.
O Ministério Público não ficou
completamente satisfeito e interpôs recurso especial alegando que o Tribunal de
Justiça deveria ter concedido as medidas protetivas por prazo indeterminado
considerando que a revogação de medidas protetivas somente pode ocorrer após
uma análise concreta da persistência ou não da ameaça, bem como após a oitiva da
vítima para verificar seu estado atual de vulnerabilidade.
O STJ concordou com esses
argumentos do MP?
SIM.
O Tribunal de Justiça afirmou que
as medidas protetivas de urgência seriam uma espécie de medida cautelar do art.
282 do CPP. Ocorre que esse não é o entendimento que prevalece atualmente no
STJ.
Qual é a natureza jurídica
das medidas protetivas de urgência?
Havia divergência dentro do STJ
sobre o tema:
5ª Turma: afirmava que a natureza
era de medida cautelar penal.
6ª Turma: sustentava que tinha
natureza de tutela inibitória.
Prevaleceu a segunda corrente:
tutela inibitória.
Natureza jurídica: índole
cível, satisfativa e inibitória
A Lei nº 14.550/2023 trouxe um
avanço importante ao incluir os §§ 5º e 6º no art. 19 da Lei 11.340/2006 (Lei
Maria da Penha). Essas mudanças reforçam a relevância das medidas protetivas de
urgência como ferramentas essenciais para proteger mulheres em situação de
violência doméstica e familiar.
Os §§ 5º e 6º do art. 19 da Lei 11.340/2006 estabelecem:
§ 5º As medidas protetivas de
urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência,
do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou
do registro de boletim de ocorrência. (Incluído pela Lei nº 14.550, de 2023)
§ 6º As medidas protetivas de
urgência vigorarão enquanto persistir risco à integridade física, psicológica,
sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes. (Incluído pela
Lei nº 14.550, de 2023)
Essa alteração legislativa rompe
com a visão tradicional, que via essas medidas como exclusivamente cautelares,
voltadas apenas a prevenir danos iminentes e garantir a eficácia de processos
judiciais. Antes, elas eram entendidas como vinculadas a uma ação penal em
curso ou futura, o que restringia seu alcance.
Agora, a legislação amplia o
alcance das medidas protetivas ao desvinculá-las de requisitos como tipificação
penal, ajuizamento de ação, inquérito ou boletim de ocorrência. Essa inovação
ressalta seu caráter inibitório e satisfativo, reconhecendo-as como meios
autônomos de proteção imediata.
Natureza das medidas
protetivas
Desse modo, pode-se dizer que as
medidas protetivas possuem:
• Caráter inibitório: têm
por finalidade evitar a reincidência da violência por meio de restrições
impostas ao agressor.
• Caráter satisfativo:
proporcionam à vítima uma resposta jurídica eficaz e imediata, garantindo sua
segurança sem depender de processos judiciais.
Em suma, com as mudanças
introduzidas pela Lei nº 14.550/2023, as medidas protetivas de urgência passam
a ser reconhecidas não apenas como cautelares, mas também como instrumentos
autônomos e indispensáveis no enfrentamento da violência doméstica. Essa
abordagem reafirma o compromisso com os direitos humanos das mulheres e
fortalece a proteção jurídica.
Diferentemente das medidas
cautelares no processo penal, as medidas protetivas de urgência não têm prazo
previamente definido, devendo permanecer em vigor enquanto houver risco à
vítima
A estipulação de um prazo fixo
para essas medidas, sem análise cuidadosa, pode enfraquecer a proteção à
mulher. Presume-se, de forma inadequada, que o risco desaparece ao final do
período estabelecido, o que contraria a essência da proteção.
A 6ª Turma do STJ, no julgamento
do REsp 2.036.072/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, decidiu que as medidas protetivas
não podem ter revogação automática baseada apenas no decurso do tempo. Segundo
os arts. 19, §§ 5º e 6º, da Lei 11.340/2006, as medidas devem vigorar enquanto
persistir o estado de risco:
A natureza jurídica das medidas protetivas de urgência previstas
na Lei Maria da Penha é de tutela inibitória e não cautelar, inexistindo prazo
geral para que ocorra a reavaliação de tais medidas, sendo necessário que, para
sua eventual revogação ou modificação, o Juízo se certifique, mediante
contraditório, de que houve alteração do contexto fático e jurídico.
Principais conclusões do julgado:
• Medidas protetivas de urgência possuem natureza de tutela
inibitória.
• Para o deferimento das medidas protetivas não se exige a
existência de inquérito ou processo criminal.
• Medidas protetivas de urgência devem vigorar enquanto perdurar
a situação de perigo.
• A fim de evitar a inadequada perenização das medidas, o juiz
pode revisar periodicamente a necessidade de manutenção das medidas protetivas
impostas.
• Para a manutenção ou revogação, exige-se contraditório.
STJ. 6ª Turma. REsp 2.036.072-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado
em 22/8/2023 (Info 789).
Essa orientação evita a exposição
da vítima a novas agressões sem a análise do contexto fático que motivou a
concessão das medidas. A revogação ou modificação dessas medidas requer
avaliação criteriosa e depende da comprovação de que o cenário de risco foi
superado.
Ao contrário das medidas
cautelares previstas no art. 282 do CPP, a Lei nº 11.340/2006 não determina
prazo para a validade das medidas protetivas nem exige revisões periódicas. A
regra aplicável é a cláusula rebus sic stantibus, ou seja, as medidas
permanecem válidas enquanto o contexto de perigo não mudar. No silêncio das
partes (vítima e agressor), presume-se a continuidade do risco, conforme o art.
4º da Lei, que prioriza a proteção das mulheres em situação de violência doméstica.
Prévia oitiva da vítima
A 3ª Seção do STJ, no julgamento
do AgRg no REsp 1.775.341/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, determinou que a
revogação das medidas protetivas exige a prévia oitiva da vítima. Esse
procedimento é essencial para avaliar se a situação de risco foi efetivamente
superada, protegendo a integridade física, psicológica, moral, sexual e
patrimonial da vítima.
O STJ possui vários julgados afirmando que, se for extinta a
punibilidade do autor do fato, não subsistem mais os fatores para a
manutenção/concessão de medidas protetivas, sob pena de eternização da
restrição de direitos individuais.
Embora a lei penal/processual não preveja um prazo de duração da
medida protetiva, não é possível a eternização da restrição a direitos
individuais, devendo a questão ser examinada à luz dos princípios da
proporcionalidade e da adequação.
Se não há prazo legal para a propositura de ação (normalmente
criminal, pela competência ordinária para o processo da violência doméstica),
tampouco se pode admitir eterna restrição de direitos por medida temporária e
de urgência.
Vale ressaltar, contudo, que a revogação de medidas protetivas
de urgência exige a prévia oitiva da vítima para que seja avalie se ainda
existe situação de risco à sua integridade física, moral, psicológica, sexual e
patrimonial.
O direito de alguém de não sofrer violência não é menos valioso
do que o direito de alguém de ter liberdade de contato ou aproximação. Na
ponderação dos valores não pode ser aniquilado o direito à segurança e à
proteção da vítima.
Assim, antes do encerramento da cautelar protetiva, a defesa
deve ser ouvida, notadamente para que a situação fática seja devidamente
apresentada ao Juízo competente, que diante da relevância da palavra da vítima,
verifique a necessidade de prorrogação/concessão das medidas, independente da
extinção de punibilidade do autor.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.775.341-SP, Rel. Min. Sebastião Reis
Júnior, julgado em 12/4/2023 (Info 770).
Tese fixada:
A revogação ou modificação das medidas protetivas de
urgência demanda comprovação concreta da mudança nas circunstâncias que
ensejaram sua concessão, não sendo possível a extinção automática baseada em
presunção temporal.
STJ. 5ª
Turma. REsp 2.066.642-MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 13/8/2024 (Info
832).
Após o julgamento acima
explicado, a 3ª Seção do STJ fixou as seguintes teses sob a sistemática dos
recursos repetitivos (Tema 1.249):
1) As medidas protetivas de urgência têm natureza jurídica de
tutela inibitória e sua natureza jurídica não se subordina à existência atual
ou vindoura de boletim de ocorrência, inquérito policial, processo cível ou
criminal.
2) A duração das medidas protetivas de urgência vincula-se à
persistência da duração de risco da mulher, razão pela qual deve ser fixada por
prazo temporalmente indeterminado.
3) Eventual reconhecimento de causa de extinção de punibilidade,
arquivamento do inquérito ou absolvição do acusado não origina necessariamente
a extinção da medida protetiva de urgência. Máxime pela possibilidade de
persistência da situação de risco ensejadora da concessão da medida.
4) Não se submete a prazo obrigatório de revisão periódica, mas
devem ser avaliadas pelo magistrado de ofício ou a pedido do interessado quando
constatado concretamente o esvaziamento da situação de risco. A situação deve
ser sempre precedida de contraditório, com as oitivas da vítima e do suposto
agressor.
STJ. 3ª Seção. REsp 2.070.717-MG, REsp 2.070.857-MG, REsp
2.070.863-MG, Rel. para o acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, julgado em
13/11/2024.