Dizer o Direito

domingo, 15 de dezembro de 2024

Quem tem o ônus de provar os requisitos da impenhorabilidade da pequena propriedade rural?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João comprou uma máquina agrícola do fornecedor “Agromércio” e, como garantia do pagamento, assinou nota promissória no valor de R$ 20 mil.

O devedor não efetuou o pagamento na data do vencimento, razão pela qual o fornecedor ingressou com execução de título extrajudicial, tendo sido penhorado um imóvel rural que está em nome de João.

O executado alegou que o imóvel em questão é impenhorável, considerando que se trata de pequena propriedade rural onde pratica agricultura juntamente com a mulher e os filhos.

 

Impenhorabilidade do pequeno imóvel rural trabalhado pela família

O art. 5º, XXVI, da CF/88 e o art. 833, VIII, do CPC estabelecem:

CF/88. Art. 5º (...)

XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

 

CPC/Art. 833. São impenhoráveis:

VIII - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

 

“A norma visa proteger famílias de pequenos agricultores, sabidamente menos favorecidas, que vivem basicamente do que produzem em suas propriedades rurais. Por outro lado, verifica-se também existir o "interesse social em manter a família presa à propriedade rural. Quanto mais famílias, maior o desenvolvimento agropecuário do país" (BONAVIDES, Paulo. Comentários à constituição federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 151).

 

Requisitos

Para que o imóvel rural seja impenhorável, é necessário que cumpra dois requisitos cumulativos:

1) seja enquadrado como pequena propriedade rural, nos termos definidos pela lei; e

2) seja trabalhado pela família.

 

O que é pequena propriedade rural (requisito 1)?

Até o momento, não há uma lei definindo o que seja pequena propriedade rural para fins de impenhorabilidade.

Diante da lacuna legislativa, a jurisprudência tem tomado emprestado o conceito estabelecido na Lei nº 8.629/93, a qual regulamenta as normas constitucionais relativas à reforma agrária.

Em seu art. 4º, II, alínea “a”, atualizado pela Lei nº 13.465/2017, consta que se enquadra como pequena propriedade rural o imóvel rural “de área até quatro módulos fiscais, respeitada a fração mínima de parcelamento”.

O STF fixou a seguinte tese no Tema 961:

É impenhorável a pequena propriedade rural familiar constituída de mais de 01 (um) terreno, desde que contínuos e com área total inferior a 04 (quatro) módulos fiscais do município de localização.

STF. Plenário. ARE 1038507, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 18/12/2020 (Repercussão Geral – Tema 961) (Info 1003).

 

O módulo fiscal, por sua vez, “presenta a área mínima necessária a uma propriedade rural, de modo a tornar viável a exploração econômica de um imóvel” (RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas [livro eletrônico]. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021) e varia de município para município, sendo determinado em hectares e em conformidade aos critérios previamente estipulados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA.

 

Voltando ao exemplo:

O juiz deferiu o pedido de João e desconstituiu a penhora sobre o imóvel.

O exequente recorreu argumentando que o devedor apenas alegou, mas não provou, que o imóvel preenche os dois requisitos acima listados e que garantiriam a sua impenhorabilidade.

 

A tese defendida pelo exequente foi aceita pelo STJ? O que o executado tem que provar para ter direito à impenhorabilidade de que trata o art. 5º, XXVI, da CF/88 e o art. 833, VIII, do CPC? Quem tem o encargo de provar os requisitos da impenhorabilidade da pequena propriedade rural?

SIM. O devedor.

Em regra, cabe à parte que faz uma alegação provar o fato correspondente. Essa distribuição do ônus da prova é feita pela lei. Assim, o autor deve demonstrar o fato que constitui o direito que pleiteia, enquanto o réu precisa provar os fatos que extinguem, impedem ou modificam esse direito (art. 373 do CPC).

No caso da impenhorabilidade, que é uma exceção ao direito de crédito do exequente, cabe ao executado (devedor) comprovar os requisitos para aplicá-la. Isso ocorre porque o devedor, em tese, responde com todos os seus bens para cumprir a obrigação (art. 789 do CPC). Portanto, é o executado quem deve demonstrar que a propriedade rural é trabalhada pela família.

Além disso, do ponto de vista da facilidade para produzir essa prova, é mais simples para o devedor, que é o proprietário do imóvel e conhece as atividades desenvolvidas nele. Contudo, em situações específicas, o juiz pode redistribuir o ônus da prova (art. 373, § 1º, do CPC).

Reconhecer uma presunção de que toda pequena propriedade rural é trabalhada pela família e transferir o ônus da prova ao credor seria indevido. Isso porque se estaria equiparando essa impenhorabilidade com a do bem de família, embora ambas estejam relacionadas à dignidade da pessoa humana. Enquanto o bem de família protege o direito à moradia, a pequena propriedade rural garante o sustento familiar.

Essa distinção foi destacada pelo STJ. 3ª Turma. REsp 1.591.298/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 21/11/2017: “A impenhorabilidade do bem de família (rural) não se confunde com a da pequena propriedade rural, ainda que ambas decorram do princípio da dignidade da pessoa humana. O bem de família garante o direito à moradia; a pequena propriedade rural assegura o sustento da família trabalhadora por meio do labor agrícola.”

O art. 833, VIII, do CPC/2015 é expresso ao condicionar o reconhecimento da impenhorabilidade da pequena propriedade rural à sua exploração familiar. Isentar o devedor de comprovar a efetiva satisfação desse requisito legal e transferir a prova negativa ao credor importaria em desconsiderar o propósito que orientou a criação dessa norma, o qual consiste em assegurar os meios para a manutenção da subsistência do executado e de sua família.

 

Uniformização da Jurisprudência

A Segunda Seção do STJ consolidou o entendimento de que cabe ao executado provar não apenas que a propriedade é pequena, mas também que ela é explorada para a subsistência familiar. Veja-se a ementa:

Para o reconhecimento da impenhorabilidade prevista no art. 833, VIII, do CPC/2015, é necessário que o imóvel seja uma pequena propriedade rural e que seja explorado pela família.

A ausência de comprovação, pela parte executada, de que o imóvel penhorado é explorado pela família afasta a incidência da proteção da impenhorabilidade.

STJ. 2ª Seção. REsp 1.913.234-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 8/2/2023 (Info 12 – Edição Extraordinária).

 

Outros precedentes reforçam essa posição:

• STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 2.458.694/SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 17/6/2024, DJe 27/6/2024.

• STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 2.405.678/GO, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 20/11/2023, DJe 22/11/2023.

 

Orientações adicionais

O STJ também firmou que:

• A impenhorabilidade não exige que o débito esteja relacionado à atividade produtiva do imóvel ou que o imóvel seja a moradia do executado.

• A proteção permanece mesmo que o imóvel tenha sido dado em garantia hipotecária.

 

Exemplos:

STJ. 3ª Turma. REsp 1.591.298/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 21/11/2017.

STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 1.361.954/PR, julgado em 30/5/2019, DJe 30/5/2019.

 

Em suma:

É ônus do executado provar que a pequena propriedade rural é explorada pela família para fins de reconhecimento de sua impenhorabilidade. 

STJ. Corte Especial. REsp 2.080.023-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 6/11/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1234) (Info 833).


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