sábado, 14 de dezembro de 2024
O neto, concebido por inseminação artificial, que mora junto com a mãe e o avô materno, pode ser adotado por esse avô?
Imagine a seguinte situação hipotética:
Carla é uma
mulher solteira que sempre sonhou em ser mãe.
Como não tinha um
relacionamento, decidiu engravidar por meio de inseminação artificial com
material genético de um doador anônimo.
Carla deu à luz a
um filho, que foi chamado de Lucas.
A criança foi
registrada apenas no nome da mãe.
Carla e Lucas
moram com o Sr. João, 60 anos, pai de Carla e, consequentemente, avô de Lucas.
Desde que Lucas
era um recém-nascido, João tratou a criança como se fosse filho. Vale ressaltar
que Lucas, atualmente com 5 anos, chama João de pai.
João, com o
consentimento de Carla, ingressou com ação pedindo a adoção de Lucas. O
objetivo não era, obviamente, retirar a maternidade de Carla, mas apenas
incluir o autor (João) como pai de Lucas para todos os fins.
O Ministério
Público se opôs ao pedido argumentando que:
• não havia
situação de risco que justificasse a adoção, já que Carla exercia plenamente a
maternidade;
• a família
monoparental havia sido uma escolha consciente de Carla;
• o simples fato
de o avô dar suporte material e afetivo não caracterizava exercício de
paternidade;
• a adoção
geraria confusão na estrutura familiar, pois Carla se tornaria simultaneamente
mãe e irmã de Lucas.
• havia
interesses predominantemente econômicos envolvidos, relacionados a benefícios
previdenciários.
A questão
chegou até o STJ. Foi autorizada a adoção pelo avô?
NÃO.
Proteção jurídica da relação avô e neto
As transformações sociais e demográficas, aliadas ao aumento
da expectativa de vida, têm alterado significativamente as dinâmicas
familiares, que se tornam mais verticalizadas e reúnem diferentes gerações. Na
relação entre avós e netos, observa-se uma peculiar mudança: com o número de
netos diminuindo, os avós conseguem dedicar maior atenção individualizada a
cada um. Segundo Luís de Sousa, “antes existiam menos avós para mais netos;
agora há mais avós para menos netos.” (SOUSA, L. Avós e netos: uma relação
afectiva, uma relação de afectos. Povos e Culturas, n. 10, p. 41, 1 jan. 2005).
O ordenamento jurídico brasileiro reconhece e valoriza o
vínculo afetivo entre avós e netos, assegurando proteção a essa relação em
diversas situações:
• A família natural ou extensa tem prevalência na promoção
de direitos e na proteção de crianças e adolescentes, conforme o art. 100,
parágrafo único, inciso X, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
• Os avós têm preferência para serem nomeados tutores, de
acordo com o art. 1.731, inciso I, do Código Civil de 2002 (CC/2002).
• O direito à prestação de alimentos estende-se a todos os
ascendentes, nos termos do art. 1.698 do CC/2002.
• Há reciprocidade na obrigação alimentar entre avós e
netos, conforme previsto no art. 1.696 do CC/2002.
• É possível a disposição testamentária a descendentes que,
no momento do ato, não seriam herdeiros necessários, conforme o art. 2.005,
parágrafo único, do CC/2002.
Esses dispositivos refletem a relevância do papel dos avós
na estrutura familiar e sua contribuição para o fortalecimento dos laços
afetivos e do bem-estar dos netos.
Vedação à adoção de descendentes por ascendentes
O art. 42, § 1º, do ECA veda que um descendente seja adotado
por seu ascendente:
Art. 42 (...)
§ 1º Não podem adotar os
ascendentes e os irmãos do adotando.
A proibição decorre da preservação da ordem parental
natural, evitando rupturas desnecessárias na linha direta ascendente.
Segundo Guilherme de Souza Nucci, a vedação protege os laços
naturais de parentesco, já suficientemente consolidados em razão do vínculo
consanguíneo e afetivo (NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 202).
Arthur Marques da Silva Filho reforça que “a adoção deve ser
compreendida como autêntico direito parental. Já existindo um vínculo natural
de parentesco, não faz sentido admitir outro.” (DA SILVA FILHO, Arthur Marques.
Adoção: regimento jurídico, requisitos, efeitos, inexistência, anulação. São
Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019).
Flexibilização da Regra no ECA
Apesar da vedação expressa do art. 42, § 1º, do ECA, o
dispositivo tem sido excepcionalmente flexibilizado em situações específicas,
fundamentadas por razões humanitárias e sociais ou para preservar relações de
fato consolidadas.
Existem alguns julgados do STJ nos quais houve essa
flexibilização. Vejamos:
• REsp 1.448.969/SC (STJ. 3ª Turma. DJe 03/11/2014):
trata-se do caso em que os avós assumiram a criação de seu bisneto devido a
abuso sexual sofrido pela mãe biológica, que engravidou aos 8 anos de idade.
Reconheceu-se a parentalidade socioafetiva dos avós, compatibilizando os arts.
6º e 42, § 1º, do ECA.
• REsp 1.635.649/SP (STJ. 3ª Turma. DJe 02/03/2018):
a mãe biológica, vítima de violência sexual, enfrentava trauma psicológico que
lhe impedia de exercer a maternidade. Destacou-se que, na ausência de fatores
como confusão familiar, conflitos de interesses ou fraudes, seria possível
flexibilizar a regra legal.
• REsp
1.796.733/AM (STJ. 3ª Turma. DJe 06/09/2019): neste caso,
negou-se a adoção por bisavô, mesmo reconhecendo sua função parental, por
entender que a relação natural entre os envolvidos era suficiente para atender
às necessidades afetivas do adotando.
• REsp
1.587.477/SC (STJ. 4ª Turma. DJe 27/08/2020): admitiu-se a
adoção conjunta por avó paterna e seu companheiro (avô por afinidade),
considerando circunstâncias fáticas excepcionais, como a ausência de cuidados
da mãe biológica devido a vícios e prisão, e a identificação do pai como irmão
pelo adotando.
Requisitos fixados pela jurisprudência
A 4ª Turma do STJ, com base nos precedentes, estabeleceu os
seguintes critérios para a excepcional admissão da adoção avoenga:
1) O adotando deve ser menor de idade;
2) Os avós devem exercer, com exclusividade, as funções
parentais desde o nascimento;
3) Deve ser comprovada a parentalidade socioafetiva por
estudo psicossocial;
4) O adotando deve reconhecer os avós como pais e seu pai ou
mãe biológicos como irmãos;
5) Não deve haver conflitos familiares relacionados à adoção;
6) Não deve existir risco de confusão mental ou emocional ao
adotando;
7) A adoção não pode estar fundamentada em interesses
ilegítimos, como vantagens econômicas;
8) A adoção deve trazer reais benefícios ao adotando.
Desse modo, a vedação à adoção entre ascendentes e
descendentes, prevista no art. 42, § 1º, do ECA, não é absoluta. Entretanto,
para sua flexibilização, é indispensável que se comprove a presença de todos os
requisitos estabelecidos pela jurisprudência. O simples reconhecimento do avô
como pai não é suficiente.
Voltando ao caso concreto:
No caso concreto, o STJ entendeu que os requisitos
necessários para a relativização do art. 42, § 1º do ECA não estavam presentes.
1) Ausência de situação de risco: a criança foi gerada por
técnica de reprodução assistida, em conformidade com o planejamento familiar da
mãe, que exerce plenamente a maternidade. A escolha de formar uma família
monoparental, com rede de apoio familiar, respeita a proteção constitucional ao
livre planejamento familiar. Não há qualquer situação de risco que justifique a
adoção pelo avô.
2) Exercício de papel avoengo: o avô materno, ainda que
coabite com a criança e contribua afetiva e materialmente, atua dentro do
contexto natural da relação avoenga. Não há elementos que configurem o
exercício de paternidade, característica essencial para a adoção avoenga.
3) Reconhecimento do papel da mãe: a adoção avoenga exige
que o adotando reconheça seus genitores como irmãos, o que não ocorre neste
caso. O filho reconhece expressamente a mãe em seu papel materno, afastando o
preenchimento deste requisito.
4) Possível confusão patrimonial e familiar: a adoção
geraria conflito patrimonial, colocando a criança em posição de concorrência
sucessória com a mãe e os tios, violando o requisito que veda conflitos
familiares.
5) Motivação econômica predominante: a análise dos elementos
do caso sugere que a vantagem econômica seria o único benefício concreto da
adoção. O avô é aposentado, com renda substancial, incluindo pensão de cônjuge
falecida. Não se identifica aumento de afeto ou cuidado decorrente do vínculo
formal, o que reforça o caráter econômico da motivação.
6) Confusão mental e emocional do adotando: apesar do estudo
psicossocial apontar a adequação do ambiente familiar, o depoimento do menor
indicou confusão quanto à percepção dos papéis familiares, especialmente sobre
a possibilidade de transformação do avô em pai. Esse elemento corrobora a
necessidade de respeitar a vedação legal.
Em suma:
O simples fato de o neto, concebido por inseminação
artificial, coabitar residência com mãe e o avô materno e reconhecê-lo como
pai, não é suficiente para afastar a proibição prevista no art. 42, § 1º, do
ECA, que veda a adoção por avós.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.067.372-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 5/11/2024 (Info
833).