Dizer o Direito

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Se o servidor público cometer uma falta disciplinar durante um surto psicótico, quando estava totalmente incapaz de compreender que a ação era ilícita, ele não deve receber punição administrativa

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina, servidora pública, foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar e iniciou medicação.

Em março de 2023, Regina teve um surto psicótico grave e, durante esse quadro, praticou agressões físicas e verbais contra uma vítima.

Em razão dos fatos, foram instaurados:

• um processo criminal por conta das agressões; e

• um processo administrativo disciplinar por violação aos deveres funcionais.

 

Processo penal

No processo criminal, após perícia psiquiátrica, ficou comprovado que, no momento dos fatos, Regina estava em surto psicótico decorrente de seu transtorno bipolar, estando completamente incapaz de entender o caráter ilícito de suas ações ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Por essa razão, o juiz proferiu uma sentença absolutória imprópria, com imposição de medida de segurança, nos termos do art. 26 do Código Penal:

Inimputáveis

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

 

PAD

No processo administrativo disciplinar, a comissão processante entendeu que Regina deveria receber a ser punida com demissão, argumentando que:

1) ela teria interrompido voluntariamente o uso da medicação semanas antes;

2) as esferas administrativa e penal seriam independentes; e

3) a punição seria necessária para preservar a imagem da instituição.

 

Mandado de segurança

Regina impetrou mandado de segurança contra a demissão argumentando que não seria possível, no caso, aplicar uma penalidade administrativa, considerando que, no processo penal pelos mesmos fatos, o Poder Judiciário reconheceu que, na época da conduta, ela era inimputável devido a um surto psicótico.

Alegou que, nesse caso, a Administração Pública deveria considerar a possibilidade de conceder a aposentadoria por invalidez, e não impor uma sanção disciplinar.

 

O STJ concordou com os argumentos da impetrante/recorrente?

SIM.

 

Princípio da relativa independência entre as instâncias civil, administrativa e penal

De acordo com o art. 66 do CPP e art. 935 do Código Civil, a sentença penal somente repercute no plano civil quando presente deliberação positiva ou negativa acerca da existência material do fato e de sua respectiva autoria:

CPP

Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

 

Código Civil

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

 

Do mesmo modo, os arts. 125 e 126 da Lei nº 8.112/1990 afirmam que as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si, ressalvada, contingencialmente, a preponderância do juízo criminal:

Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

 

Tais dispositivos consagram, no direito brasileiro, o princípio da relativa independência entre as instâncias civil, administrativa e penal, possibilitando apurações distintas no âmbito de cada esfera de responsabilidade, excepcionada, em regra, a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta ou quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática.

 

Princípio da culpabilidade

No caso concreto, contudo, deve-se analisar também o princípio da culpabilidade.

A partir do princípio constitucional da culpabilidade – que demanda a verificação da culpa em sentido amplo para que qualquer sanção estatal seja aplicada –, é necessário observar a relação entre o direito penal e o processo administrativo sancionador. Isso ocorre especialmente quando o juízo criminal declara a inimputabilidade do agente com base no art. 26 do Código Penal e profere sentença absolutória imprópria com medida de segurança, por considerar que o acusado, devido a uma doença mental, era incapaz, no momento do fato, de entender o caráter ilícito do ato ou de agir conforme esse entendimento.

Nos casos de absolvição imprópria, o juízo criminal reconhece que houve um ato penalmente ilícito, mas também confirma a incapacidade do agente de compreender o caráter ilegal da conduta, conforme previsto no art. 386, parágrafo único, III, do CPP:

Art. 386. (...)

Parágrafo único. Na sentença absolutória, o juiz:

(...)

III - aplicará medida de segurança, se cabível.

 

Essa decisão exige provas robustas e o respeito ao devido processo legal para justificar a aplicação de uma medida de segurança com caráter curativo.

Não se trata de uma decisão preliminar ou baseada em falta de provas. A confirmação da inimputabilidade no processo penal demanda uma análise cuidadosa dos fatos, inclusive com a instauração de um incidente de insanidade mental (art. 149 do CPP) e avaliação minuciosa de laudos médicos. Quando a inimputabilidade é reconhecida, há certeza sobre a ausência de capacidade cognitiva do acusado, o que não pode ser ignorado ou revisado em esfera administrativa.

Nessas condições, manter a responsabilidade disciplinar apesar da absolvição criminal por uma causa biopsicológica que exclui a culpabilidade seria incoerente. Afinal, enquanto se evita a aplicação de pena criminal em situações de maior reprovação social, manter uma penalidade disciplinar, ainda que mais leve, ignoraria a incapacidade do agente de entender o caráter ilícito da conduta.

Portanto, é essencial manter a coerência entre as esferas de responsabilização, impedindo a aplicação de penalidades disciplinares quando, por sentença judicial transitada em julgado, foi confirmada uma doença mental que retirava do agente a capacidade de compreender o caráter ilícito de suas ações. Dessa forma, deve-se dar prioridade às conclusões judiciais, visto que o Poder Judiciário atua como instância máxima revisora da legitimidade dos atos da Administração Pública.

Constatada a prática de falta disciplinar quando a servidora estava em surto psicótico e absolutamente incapaz de entender o caráter ilícito do fato cometido, descabe a fixação de sanção administrativa, impondo-se à Administração Pública, ao contrário, o dever de avaliar a eventual concessão de licença para tratamento de saúde ou de aposentadoria por invalidez, sendo inviável o apenamento de pessoa mentalmente enferma à época da conduta imputada.

 

Em suma:

Quando o juízo criminal reconhece a inimputabilidade do agente fundada no art. 26 do Código Penal e profere sentença absolutória imprópria, com imposição de medida de segurança, descabe a fixação de sanção administrativa, impondo-se à Administração Pública, ao revés, o dever de avaliar a eventual concessão de licença para tratamento de saúde ou de aposentadoria por invalidez. 

STJ. 1ª Turma. RMS 72.642-PR, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 1/10/2024 (Info 828).


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