Imagine a seguinte situação hipotética:
Regina, servidora pública, foi
diagnosticada com transtorno afetivo bipolar e iniciou medicação.
Em março de 2023, Regina teve um
surto psicótico grave e, durante esse quadro, praticou agressões físicas e
verbais contra uma vítima.
Em razão dos fatos, foram
instaurados:
• um processo criminal por conta
das agressões; e
• um processo administrativo
disciplinar por violação aos deveres funcionais.
Processo penal
No processo criminal, após perícia psiquiátrica, ficou
comprovado que, no momento dos fatos, Regina estava em surto psicótico
decorrente de seu transtorno bipolar, estando completamente incapaz de entender
o caráter ilícito de suas ações ou de se determinar de acordo com esse
entendimento. Por essa razão, o juiz proferiu uma sentença absolutória
imprópria, com imposição de medida de segurança, nos termos do art. 26 do
Código Penal:
Inimputáveis
Art. 26. É isento de pena o
agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou
retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento.
PAD
No processo administrativo
disciplinar, a comissão processante entendeu que Regina deveria receber a ser
punida com demissão, argumentando que:
1) ela teria interrompido
voluntariamente o uso da medicação semanas antes;
2) as esferas administrativa e
penal seriam independentes; e
3) a punição seria necessária
para preservar a imagem da instituição.
Mandado de segurança
Regina impetrou mandado de segurança
contra a demissão argumentando que não seria possível, no caso, aplicar uma
penalidade administrativa, considerando que, no processo penal pelos mesmos
fatos, o Poder Judiciário reconheceu que, na época da conduta, ela era
inimputável devido a um surto psicótico.
Alegou que, nesse caso, a
Administração Pública deveria considerar a possibilidade de conceder a aposentadoria
por invalidez, e não impor uma sanção disciplinar.
O STJ concordou com os
argumentos da impetrante/recorrente?
SIM.
Princípio da relativa
independência entre as instâncias civil, administrativa e penal
De acordo com o art. 66 do CPP e art. 935 do Código Civil, a
sentença penal somente repercute no plano civil quando presente deliberação
positiva ou negativa acerca da existência material do fato e de sua respectiva
autoria:
CPP
Art. 66. Não obstante a sentença absolutória no juízo
criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido,
categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.
Código Civil
Art. 935. A responsabilidade
civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a
existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se
acharem decididas no juízo criminal.
Do mesmo modo, os arts. 125 e 126 da Lei nº 8.112/1990 afirmam
que as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo
independentes entre si, ressalvada, contingencialmente, a preponderância do
juízo criminal:
Art. 125. As sanções civis,
penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.
Art. 126. A responsabilidade
administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que
negue a existência do fato ou sua autoria.
Tais dispositivos consagram, no
direito brasileiro, o princípio da relativa independência entre as instâncias
civil, administrativa e penal, possibilitando apurações distintas no âmbito de
cada esfera de responsabilidade, excepcionada, em regra, a prevalência da
jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da
conduta ou quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua
prática.
Princípio da culpabilidade
No caso concreto, contudo,
deve-se analisar também o princípio da culpabilidade.
A partir do princípio
constitucional da culpabilidade – que demanda a verificação da culpa em sentido
amplo para que qualquer sanção estatal seja aplicada –, é necessário observar a
relação entre o direito penal e o processo administrativo sancionador. Isso
ocorre especialmente quando o juízo criminal declara a inimputabilidade do
agente com base no art. 26 do Código Penal e profere sentença absolutória
imprópria com medida de segurança, por considerar que o acusado, devido a uma
doença mental, era incapaz, no momento do fato, de entender o caráter ilícito
do ato ou de agir conforme esse entendimento.
Nos casos de absolvição imprópria, o juízo criminal
reconhece que houve um ato penalmente ilícito, mas também confirma a
incapacidade do agente de compreender o caráter ilegal da conduta, conforme
previsto no art. 386, parágrafo único, III, do CPP:
Art. 386. (...)
Parágrafo único. Na sentença
absolutória, o juiz:
(...)
III - aplicará medida de
segurança, se cabível.
Essa decisão exige provas
robustas e o respeito ao devido processo legal para justificar a aplicação de
uma medida de segurança com caráter curativo.
Não se trata de uma decisão
preliminar ou baseada em falta de provas. A confirmação da inimputabilidade no
processo penal demanda uma análise cuidadosa dos fatos, inclusive com a
instauração de um incidente de insanidade mental (art. 149 do CPP) e avaliação
minuciosa de laudos médicos. Quando a inimputabilidade é reconhecida, há
certeza sobre a ausência de capacidade cognitiva do acusado, o que não pode ser
ignorado ou revisado em esfera administrativa.
Nessas condições, manter a
responsabilidade disciplinar apesar da absolvição criminal por uma causa
biopsicológica que exclui a culpabilidade seria incoerente. Afinal, enquanto se
evita a aplicação de pena criminal em situações de maior reprovação social,
manter uma penalidade disciplinar, ainda que mais leve, ignoraria a
incapacidade do agente de entender o caráter ilícito da conduta.
Portanto, é essencial manter a
coerência entre as esferas de responsabilização, impedindo a aplicação de
penalidades disciplinares quando, por sentença judicial transitada em julgado,
foi confirmada uma doença mental que retirava do agente a capacidade de
compreender o caráter ilícito de suas ações. Dessa forma, deve-se dar
prioridade às conclusões judiciais, visto que o Poder Judiciário atua como
instância máxima revisora da legitimidade dos atos da Administração Pública.
Constatada a prática de falta
disciplinar quando a servidora estava em surto psicótico e absolutamente
incapaz de entender o caráter ilícito do fato cometido, descabe a fixação de
sanção administrativa, impondo-se à Administração Pública, ao contrário, o
dever de avaliar a eventual concessão de licença para tratamento de saúde ou de
aposentadoria por invalidez, sendo inviável o apenamento de pessoa mentalmente
enferma à época da conduta imputada.
Em suma:
Quando o juízo criminal reconhece a inimputabilidade
do agente fundada no art. 26 do Código Penal e profere sentença absolutória
imprópria, com imposição de medida de segurança, descabe a fixação de sanção
administrativa, impondo-se à Administração Pública, ao revés, o dever de
avaliar a eventual concessão de licença para tratamento de saúde ou de
aposentadoria por invalidez.
STJ. 1ª
Turma. RMS 72.642-PR, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 1/10/2024 (Info
828).