Dizer o Direito

sábado, 16 de novembro de 2024

Se o Ministério Público se recusar injustificadamente em oferecer o ANPP, o juiz pode rejeitar a denúncia?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi preso em flagrante com 40 porções de maconha e 34 de cocaína.

O flagranteado admitiu a prática de tráfico de drogas.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João imputando-lhe o crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006).

Na cota introdutória da denúncia, o Ministério Público afirmou que não iria oferecer o ANPP porque o tráfico de drogas é um crime hediondo e grave.

Na audiência, antes do início da instrução, a defesa requereu a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, em razão da negativa de oferecimento de ANPP.

Argumentou que o réu poderia ser beneficiado pelo acordo de não persecução penal, pois estavam presentes os requisitos legais objetivos e subjetivos e que não havia fundamentação concreta por parte do Ministério Público que embasasse a negativa da benesse.

O juiz indeferiu o pedido.

Em alegações finais, o Ministério Público requereu a aplicação da minorante prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 (tráfico privilegiado), o que foi acolhido na sentença, na fração máxima, sem recurso ministerial.

João interpôs recurso de apelação no qual pleiteou pelo envio dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP, para oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal.

O Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso sob o argumento de o ANPP não consiste em direito subjetivo do investigado, mas sim ato discricionário do Ministério Público, titular da ação penal pública.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial, no qual sustentou ter havido negativa de vigência ao art. 28-A caput e § 14 do CPP, em razão da previsibilidade de que o crime se tratava de tráfico privilegiado, além da recusa do magistrado em fazer a remessa dos autos para o Procurador-Geral de Justiça (PGJ).

 

O STJ acolheu os argumentos de João?

SIM.

 

Justiça penal negociada

O acordo de não persecução penal, de modo semelhante ao que ocorre com a transação penal ou com a suspensão condicional do processo, introduziu, no sistema processual brasileiro, mais uma forma de justiça penal negociada, seguindo uma tendência mundial inicialmente restrita a países de tradição adversarial e liberal mais acentuada e que se espraiou por ordenamentos de matriz romano-germânica.

 

Terceira onda

Houve três ondas de justiça penal negociada.

A primeira onda ocorreu com a Lei nº 9.099/1995, que trouxe a transação penal e a suspensão condicional do processo.

A segunda onda veio com a edição da Lei nº 12.850/2013, responsável por sistematizar o acordo de colaboração premiada, até então previsto timidamente em algumas leis pontuais.

A terceira onda ocorreu com a Lei nº 13.964/2019, ao prever o ANPP.

 

Nesse sentido: FONSECA, Caio Nogueira Domingues da. O controle judicial no acordo de não persecução penal. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022, p. 105-126.

 

Discricionariedade regrada

A aplicação das ferramentas de barganha penal exige que o Ministério Público exerça uma discricionariedade regrada, ou seja, uma escolha vinculada a parâmetros legais, ao propor uma alternativa consensual de resolução do conflito. Esse poder do MP não é ilimitado, pois não pode ser confundido com arbitrariedade.

 

Correntes sobre a facultatividade ou obrigatoriedade de oferecer o ANPP

Existem três correntes principais sobre o ANPP:

1ª) mera faculdade do Ministério Público

De acordo o Enunciado n. 19 do Conselho Nacional de Procuradores- Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG): “O acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará, inclusive em última análise (§ 14), se o instrumento é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime no caso concreto”.

Essa posição falha porque se apega somente à interpretação literal do verbo “poderá”, contido no art. 28-A, caput, do CPP.

Para essa corrente, o titular da ação penal poderia decidir, ao sabor de sua vontade, se vai submeter o investigado às agruras do processo penal e, posteriormente, da pena, ou se lhe vai propor solução alternativa mais branda e menos estigmatizante.

Trata-se de violação da isonomia, pois legitimaria, por exemplo, conferir tratamento diverso a indivíduos em situações iguais, com inadmissível margem para a arbitrariedade.

 

2ª) direito público subjetivo

Para essa segunda corrente, o preenchimento dos requisitos legais asseguraria ao investigado direito público subjetivo à entabulação do acordo, o que, por consequência, obrigaria o magistrado a fazê-lo caso o Ministério Público se recusasse a tanto (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 216).

O STJ não admite essa corrente.

Aceitar que o juiz assuma o lugar do titular da ação penal e proponha o ANPP ao investigado não se mostra adequado, seja por afrontar a separação de funções que define o sistema acusatório, seja por desvirtuar o próprio cerne negocial dos mecanismos penais consensuais.

 

3ª) poder-dever do membro do MP

De modo a equilibrar essas linhas antagônicas de pensamento, a jurisprudência do STJ se assentou em posição intermediária, com o entendimento de que a oferta de alternativas de barganha penal ao investigado consiste em poder-dever do Ministério Público.

Assim, se, por um lado, não se trata de direito subjetivo do réu, por outro, também não é mera faculdade a ser exercida ao alvedrio do MP.

Assim, a atuação do MP é vista como um “dever-poder” e não como uma mera opção.

 

Verificação dos requisitos legais

A discricionariedade do MP ao oferecer um acordo limita-se à verificação dos requisitos legais, especialmente daqueles que envolvem conceitos jurídicos indeterminados. Por exemplo, o art. 28-A, caput, do CPP exige que o acordo seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” expressão que gera discussões interpretativas devido à sua imprecisão.

Dessa forma, se os requisitos legais estão presentes, o MP não pode recusar um acordo com base apenas em critérios de conveniência ou oportunidade. Em casos excepcionais, com fundamentação concreta, o MP pode avaliar se o acordo atende à prevenção e reprovação do crime, que é um requisito legal.

 

Dever do MP de fundamentar suas decisões

O MP tem o dever, tanto pela Lei Orgânica do Ministério Público (art. 43, III, da Lei nº 8.625/1993) quanto pela Constituição (art. 129, VIII), de fundamentar suas decisões. Embora não haja direito subjetivo ao acordo, há o direito a uma manifestação fundamentada.

Cabe ao Judiciário, em seu papel de “dizer o direito”, verificar se a fundamentação do MP respeita os limites legais.

 

Voltando ao caso concreto

Nem o MP nem o Judiciário podem, exceto em casos de inconstitucionalidade, negar um acordo consensual legalmente previsto com base na natureza do crime ou no fato de ser hediondo. Esse entendimento evita restrições adicionais não previstas em lei, respeitando as escolhas do legislador sobre quais crimes são incompatíveis com acordos.

Neste caso específico, o MP recusou o acordo de não persecução penal (ANPP) por considerar o tráfico de drogas um crime hediondo. A defesa solicitou que os autos fossem enviados à Procuradoria-Geral, o que foi negado pelo juiz, alegando que havia apreensão de drogas e dinheiro. Contudo, o próprio MP, nas alegações finais, requereu a aplicação da minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, e essa foi aceita na sentença, sem recurso do MP.

Essa minorante pode reduzir a pena mínima para menos de 4 anos, permitindo o ANPP conforme o art. 28-A, § 1º, do CPP e afastando a natureza hedionda do crime, conforme art. 112, § 5º, da Lei de Execução Penal e entendimento dos tribunais superiores. Assim, em tese, nada impede a aplicação do ANPP no crime de tráfico de drogas.

Mesmo que a minorante seja aplicada na terceira fase da dosimetria da pena e com frações variáveis, o MP deve considerar a possibilidade de aplicação do ANPP desde o oferecimento da denúncia. O critério do ANPP depende da pena mínima cominada, considerando as causas de diminuição aplicáveis na maior fração possível.

Ao oferecer a denúncia, o MP deve justificar concretamente a inaplicabilidade do ANPP, demonstrando, com base no inquérito, que o investigado não se enquadra nos requisitos para a minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 ou que a gravidade concreta do crime torna o acordo desnecessário e insuficiente para reprovação e prevenção do crime.

Se o MP recusa o ANPP sem justificativa adequada, a denúncia deve ser rejeitada por falta de interesse de agir (art. 395, II, do CPP), conforme entendimento do STF que considera a ausência de fundamentação do ANPP como nulidade absoluta.

Por fim, o art. 28, § 14, do CPP, que prevê a remessa dos autos a um órgão superior em caso de recusa do MP em propor o ANPP, não impede o controle judicial sobre a fundamentação do MP. Assim, está configurada a violação do art. 28-A, caput e § 14, do CPP, tanto pela falta de fundamentação adequada do MP para recusar o ANPP quanto pela recusa do juiz em remeter os autos para revisão superior do MP, já que não havia ausência de requisito objetivo para isso.

 

Em suma:

A recusa injustificada ou ilegalmente motivada do Ministério Público em oferecer o acordo de não persecução penal autoriza à rejeição da denúncia, por falta de interesse de agir para o exercício da ação penal. 

STJ. 6ª Turma. REsp 2.038.947-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 17/9/2024 (Info 827).


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