Dizer o Direito

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Quem paga as dívidas de IPTU incidentes sobre o imóvel que foi arrematado no leilão judicial?

Imagine a seguinte situação hipotética:

O Banco ajuizou execução contra Pedro cobrando uma dívida.

Foi penhorada uma sala comercial pertencente ao devedor.

O juiz designou um leilão judicial para alienar a sala a fim de poder pagar o Banco.

Em 2011, João arrematou o imóvel (a sala comercial) no leilão, pagando R$ 500 mil.

Vale ressaltar que, no edital do leilão, constava expressamente a informação de que o arrematante (comprador) seria responsável por quitar todos os débitos de IPTU anteriores à data da arrematação.

O imóvel possuía dívidas de IPTU referentes aos anos de 2006, 2007 e 2008, anteriores à arrematação, que somavam R$ 100 mil.

Após a arrematação, o Município passou a cobrar de João o pagamento dos R$ 100  mil referentes aos IPTUs atrasados, com base na previsão do edital do leilão.

João ingressou, então, com ação declaratória de inexistência de débitos argumentando que, de acordo com o art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, por ter adquirido o imóvel em hasta pública, não seria responsável pelos tributos anteriores à arrematação, considerando que estes deveriam ser subtraídos do valor arrecadado no leilão (sub-rogação no preço):

Art. 130. Os créditos tributários relativos a impostos cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, e bem assim os relativos a taxas pela prestação de serviços referentes a tais bens, ou a contribuições de melhoria, sub-rogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, salvo quando conste do título a prova de sua quitação.

Parágrafo único. No caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço.

 

O Município contestou, alegando que o edital previa a responsabilidade do arrematante pelos débitos anteriores.

 

De acordo com o entendimento atual do STJ, quem tem razão: o Município ou João?

João.

A posição anterior da jurisprudência (hoje superada) entendia que, se o edital do leilão determinasse que o arrematante deveria pagar os débitos tributários do bem na data da arrematação, essa exigência era válida. Nesse caso, o arrematante teria a obrigação de pagar esses tributos e não poderia invocar o parágrafo único do art. 130 do CTN para se exonerar dessa obrigação.

Essa posição se baseava no art. 886, VI, do CPC/2015 (art. 686 do CPC/1973), que prevê o seguinte:

Art. 886. O leilão será precedido de publicação de edital, que conterá:

(...)

VI - menção da existência de ônus, recurso ou processo pendente sobre os bens a serem leiloados.

 

Ocorre que o art. 886, VI, do CPC apenas indica o conteúdo mínimo do edital da hasta pública. Ele não atribui responsabilidade tributária ao arrematante. Aliás, o CPC nem poderia atribuir responsabilidade tributária para o arrematante. Isso porque as normas gerais sobre direito tributário devem ser previstas em lei complementar, conforme determina o art. 146, III, da CF/88.

O Código Tributário Nacional foi recepcionado com status de lei complementar e dedicou capítulo específico para tratar do tema. Nele, o art. 128 estabelece que a responsabilidade pelo pagamento de tributos pode ser atribuída a um terceiro, desde que haja vínculo com o fato gerador da obrigação.

Em relação à responsabilidade de sucessores, o caput do art. 130 do CTN estabelece que o adquirente de um imóvel assume os impostos, taxas e contribuições de melhorias devidos até a data da transmissão, salvo se houver prova de quitação. No entanto, o parágrafo único do art. 130 dispensa o adquirente de pagar os tributos caso ele tenha arrematado em hasta pública, determinando que o crédito tributário seja sub-rogado no preço da arrematação.

Dizer que “no caso de arrematação em hasta pública, a sub-rogação ocorre sobre o respectivo preço” (parágrafo único do art. 130) significa que, quando um imóvel é adquirido em leilão judicial, os débitos tributários pendentes (como impostos e taxas) não são transferidos ao arrematante. Em vez disso, esses débitos são transferidos para o valor arrecadado com a venda do imóvel. Isso quer dizer que o montante pago pelo arrematante no leilão será usado para quitar os tributos devidos, de acordo com a prioridade legal dos credores. Assim, o arrematante fica livre de qualquer obrigação de pagar esses débitos tributários, pois eles “sub-rogam-se” (ou seja, são transferidos) para o preço de arrematação, conforme previsto no parágrafo único do art. 130 do CTN.

Essa diferença entre o caput e o parágrafo único do art. 130 do CTN considera o modo de aquisição da propriedade:

• em uma “venda comum”, o adquirente assume os ônus do imóvel, já que há uma relação direta entre o vendedor e o comprador;

• na arrematação judicial, contudo, a propriedade é adquirida de forma direta, sem relação entre o arrematante e o proprietário anterior, o que exime o arrematante dos ônus sobre o bem.

 

Portanto, para que um terceiro seja responsabilizado por débitos tributários, além das hipóteses já previstas no CTN, seria necessária uma lei complementar que criasse um vínculo entre o terceiro e o fato gerador da obrigação. Sem esse vínculo, não é possível incluir o arrematante no polo passivo da obrigação tributária, mesmo que o edital do leilão o preveja.

 

O fato de o edital estipular que o arrematante irá arcar com os tributos que existiam não significa uma forma de renúncia válida da previsão do parágrafo único do art. 130 do CTN?

NÃO.

No Direito Tributário, que é um ramo do Direito Público, as normas possuem natureza cogente (caráter obrigatório), limitando a autonomia da vontade (art. 123 do CTN). Assim, o fato de o arrematante ter ciência e eventualmente concordar, de forma expressa ou tácita, em assumir os tributos que incidem sobre o imóvel não configura renúncia válida à aplicação do parágrafo único do art. 130 do CTN.

As normas gerais do direito tributário, incluindo as que tratam da responsabilidade tributária, têm natureza pública e não podem ser flexibilizadas por atos administrativos, que estão sujeitos ao controle de legalidade.

Além disso, como a responsabilidade tributária é fixada por lei, o edital de leilão não pode alterar o responsável pelo pagamento dos tributos, seja para criar uma nova responsabilidade ou para afastar uma previsão de isenção, sob risco de violar os arts. 146, III, “b”, da CF/88 e os arts. 97, III, 121, 128 e 130, parágrafo único, do CTN. Em respeito à hierarquia das normas jurídicas, uma regra de responsabilidade tributária estabelecida no CTN, que tem status de lei complementar, não pode ser modificada por disposição de um edital que contrarie essa norma.

 

Conclusões

A partir da interpretação sistemática da legislação tributária, conclui-se que:

i) a aquisição da propriedade em hasta pública ocorre de forma originária, inexistindo responsabilidade do terceiro adquirente pelos débitos tributários incidentes sobre o imóvel anteriormente à arrematação, por força do disposto no parágrafo único do art. 130 do CTN;

ii) a aplicação dessa norma geral, de natureza cogente, não pode ser excepcionada por previsão no edital do leilão, notadamente porque o referido ato não tem aptidão para modificar a definição legal do sujeito passivo da obrigação tributária;

iii) é irrelevante a ciência e a eventual concordância, expressa ou tácita, do participante do leilão, em assumir o ônus pelo pagamento das exações que incidam sobre o imóvel arrematado, não configurando renúncia tácita ao disposto no art. 130, parágrafo único, do CTN; e

iv) em atenção à norma geral sobre responsabilidade tributária trazida pelo art. 128 do CTN e à falta de lei complementar que restrinja ou excepcione o disposto no art. 130, parágrafo único, do CTN, é vedado exigir do arrematante, com base em previsão editalícia, o recolhimento dos créditos tributários incidentes sobre o bem arrematado cujos fatos geradores sejam anteriores à arrematação.

 

Em suma:

Diante do disposto no art. 130, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, é inválida a previsão em edital de leilão atribuindo responsabilidade ao arrematante pelos débitos tributários que já incidiam sobre o imóvel na data de sua alienação. 

STJ. 1ª Seção. REsp 1.914.902-SP, REsp 1.944.757-SP e REsp 1.961.835-SP, Rel. Min. Teodoro Silva Santos, julgados em 9/10/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1134) (Info 829).

 

Modulação dos efeitos

Este julgado acima explicado representou uma mudança na jurisprudência do STJ.

Em razão disso, com base nos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia, o STJ decidiu fazer a modulação dos efeitos desta decisão.

Assim, por aplicação analógica do art. 1.035, § 11 do CPC/2015, a tese repetitiva acima fixada deverá ser aplicada somente aos leilões cujos editais sejam publicizados após a publicação da ata de julgamento do tema repetitivo, ressalvadas as ações judiciais ou pedidos administrativos pendentes de julgamento, em relação aos quais a aplicabilidade é imediata.


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