quarta-feira, 6 de novembro de 2024
Prefeito contratou, sem licitação, o escritório de advocacia de amigo, causando prejuízo ao erário. A Lei nº 14.230/2021 ajudou o ex-prefeito a se livrar da condenação imposta? Descubra como o STJ analisou o caso e entenda o princípio da continuidade típico-normativa
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Em 2017, João era prefeito de um
Município do interior do Estado.
Ele determinou a contatação, sem
licitação, do escritório de advocacia de seu amigo íntimo Pedro para prestar
serviços jurídicos à prefeitura.
Além disso, houve evidências de
que o serviço contratado não foi completamente prestado, apesar de valores
consideráveis terem sido pagos ao escritório.
O Ministério Público tomou conhecimento dos fatos e ajuizou ação
de improbidade administrativa contra João e Pedro. A conduta foi tipificada no
caput do art. 11 da Lei nº 8.429/1992 (antes da Lei nº 14.230/2021).
Alegou que houve contratação
ilegal, violando os princípios da administração pública.
Além disso, o Promotor também
ingressou com ação penal contra os réus.
Ação penal
Na ação penal, João foi absolvido sob o argumento de que não
ficou provado o dolo. A sentença absolutória, confirmada pelo Tribunal de
Justiça, foi baseada no art. 386, III, do CPP:
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa
na parte dispositiva, desde que reconheça:
(...)
III - não constituir o fato
infração penal;
Ação de improbidade
Em primeira instância, o juiz
condenou os réus, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.
Alguns dias depois, entrou em
vigor a Lei nº 14.230/2021, que promoveu inúmeras alterações na Lei de
Improbidade Administrativa.
João interpôs recurso especial argumentando
que:
- deveria ser aplicada a Lei nº
14.230/2021;
- a absolvição na esfera penal deveria produzir efeitos no
processo de improbidade administrativa, aplicando-se o § 4º do art. 21 da Lei
nº 8.429/1992:
Art. 21 (...)
§ 4º A absolvição criminal em
ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o
trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os
fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3
de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). (Incluído pela Lei nº 14.230, de
2021)
- a Lei nº 14.230/2021 alterou o
caput do art. 11 da Lei nº 8.429/92, que deixou de ser exemplificativo,
passando a ser taxativo. Diante disso, João pediu que fosse absolvido sob o
argumento de que, com a alteração do caput do art. 11, a conduta por ele
praticada deixou de ser ato de improbidade administrativa já que não mais
poderia ser enquadrada no caput. Argumentou que houve a abolição da figura
típica;
- alegou, por fim, que não seria
possível a condenação com base em prejuízo presumido ao erário.
O STJ concordou com os
argumentos de João? Ele foi absolvido no processo de improbidade administrativa?
NÃO.
§ 4º do art. 21 da LIA está
suspenso e vigora a independência das instâncias
A Lei nº 14.230/2021 inseriu o §
4º no art. 21 da Lei nº 8.429/1992 prevendo que a absolvição do réu em processo
criminal por qualquer fundamento do art. 386 do CPP impedirá o trâmite da ação
de improbidade.
Ocorre que esse dispositivo teve
a eficácia suspensa por decisão monocrática do Ministro Alexandre de Moraes,
que deferiu, em 27/12/2022, a medida cautelar na ADI 7236 (DJe 10/01/2023).
A absolvição do réu, no processo
criminal, fundada no art. 386, III, do CPP, não tem o condão de afastar a
condenação pela prática de improbidade administrativa.
A absolvição operada no juízo
criminal por atipicidade não impede a propositura da ação civil de improbidade,
nem tampouco faz coisa julgada na esfera cível, nos termos do art. 67, III, do
CPP e art. 935 do Código Civil.
É possível aplicar as
alterações benéficas da Lei nº 14.231/2021 porque ainda não havia trânsito em
julgado
A Lei nº 14.231/2021 trouxe
mudanças significativas no regime dos atos de improbidade administrativa que
atentam contra os princípios da administração pública, especialmente no que se
refere ao art. 11 da Lei 8.429/1992. Essas mudanças aboliram a possibilidade de
responsabilização genérica por violação dos princípios e passaram a exigir a
tipificação precisa e taxativa das condutas, agora discriminadas nos incisos do
referido artigo.
No julgamento do ARE 843.989
(Tema 1.199), o STF decidiu que as mudanças introduzidas pela Lei nº 14.231/2021
não se aplicam aos casos já transitados em julgado ou que estejam na fase de
execução de penas. Contudo, o STF permitiu que essas mudanças se apliquem para
os casos nos quais ainda não houve o trânsito em julgado, como na presente
situação.
Portanto, as alterações trazidas
ao art. 11 da Lei nº 8.429/1992 pela Lei nº 14.231/2021 podem ser aplicadas em
atos praticados sob a vigência da versão anterior da lei, desde que não haja
condenação transitada em julgado.
No caso concreto, houve
abolitio?
NÃO. Considera-se que houve
abolição da figura típica se a conduta – anteriormente enquadrada no inciso
revogado – não for mais disciplinada em nenhum outro dispositivo do art. 11 da
Lei nº 8.429/92 que ainda esteja em vigor.
Se a conduta continua proibida em
outro dispositivo do art. 11, considera-se que houve continuidade
típico-normativa da conduta.
Desse modo, nas ações de
improbidade administrativa em andamento, é necessário verificar se houve a
extinção da reprovabilidade da conduta ilícita.
Caso a reprovabilidade tenha sido
extinta, como em situações de tortura ou assédio, a ação deve ser julgada
improcedente, devido à aplicação retroativa de normas sancionatórias mais
benéficas ao réu.
Por outro lado, se a conduta
ainda estiver descrita na Lei nº 8.429/1992, aplica-se o princípio da
continuidade típico-normativa.
Assim, é possível a aplicação do princípio
da continuidade típico-normativa, de modo a afastar a abolição da tipicidade da
conduta do réu (art. 11, caput, da LIA), quando for possível o enquadramento
típico nos incisos da nova redação trazida pela Lei nº 14.230/2021, preservando
a reprovação da conduta da parte.
Analisando o caso concreto
A conduta imputada aos réus é a
de que houve a contratação de serviços advocatícios, em princípio prestados sem
a devida realização de concurso público, licitação ou mesmo de nomeação a cargo
de provimento amplo, o que causou prejuízo ao erário ne medida em que frustrou
a licitude do concurso e ou se dispensou indevidamente.
A conduta de frustrar o
procedimento licitatório continuou sendo vedada tanto na esfera criminal e
cível, senão vejamos.
No âmbito do direito penal, a
conduta estava tipificada nos arts. 89 e 90 da Lei nº 8.666/1993.
Com o advento da Lei nº
14.133/2021 tais tipos penais foram revogados, mas um novo capítulo foi
inserido no Capítulo II-B do Título XI do Código Penal tratando justamente das
mesmas condutas ilícitas.
O legislador, em continuidade
típico normativa, manteve a tipicidade das condutas de contratação direta
ilegal (art. 337-E), frustrar o caráter competitivo de licitação (art. 337-F),
patrocínio de contratação indevida (art. 337-G), modificação ou pagamento
irregular em contrato administrativo (art. 337-H), perturbação de processo licitatório
(art. 337-I), violação de sigilo em licitação (art. 337-J), afastamento de
licitante (art. 337-K), fraude em licitação ou contrato (art. 337-L),
contratação inidônea (art. 337-M), impedimento indevido (art. 337-N) e omissão
grave de dado ou de informação por projetista (art. 337-O).
Ou seja, em nenhum momento a
conduta de frustrar o procedimento licitatório passou a ser admitida como
válida em nosso ordenamento.
Já na esfera cível, no âmbito da
Lei nº 8.429/1992, as alterações legislativas foram bastante pontuais na
matéria.
A conduta criminal de frustrar o caráter competitivo da
licitação tipificada no art. 337-F do Código Penal, punida com reclusão de 4 a
8 anos e multa, tem seu similar no art. 10, VIII, da Lei nº 8.429/1992, que
assim dispõe:
Art. 10. Constitui ato de
improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão
dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio,
apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades
referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:
(...)
VIII - frustrar a licitude de
processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com
entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda
patrimonial efetiva; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)
Passou-se a exigir na legislação
civil que a conduta acarrete efetiva perda patrimonial para que esteja
configurado o ato de improbidade, não bastando a presunção de dano ou dano in
re ipsa.
Se não houver a efetiva perda patrimonial, a conduta poderá
ser enquadrada como ato que atenta contra os princípios da administração
pública na forma do art. 11, V, da Lei nº 8.429/1992, que assim dispõe:
Art. 11 (...)
V - frustrar, em ofensa à
imparcialidade, o caráter concorrencial de concurso público, de chamamento ou
de procedimento licitatório, com vistas à obtenção de benefício próprio, direto
ou indireto, ou de terceiros;
Logo, com a edição da Lei nº
14.230/2021, não houve extinção da reprovabilidade na esfera cível, pelo
contrário, a conduta de frustrar o procedimento licitatório continua descrita
na Lei nº 8.429/1992, tanto no art. 10, VIII como art. 11, V.
O Ministério Público
ajuizou a ação de improbidade com base no caput do art. 11. O STJ afirmou que seria
possível manter a condenação com fundamento no inciso V do art. 11. Mas e o
art. 17, § 10-C, da Lei nº 8.429/1992?
No pedido condenatório, era comum o MP
enquadrar a conduta ímproba nos arts. 9º ou 10 e fazer pedido subsidiário de
aplicação do art. 11, que contém dispositivos mais abrangentes.
O juiz, por sua vez, não ficava
restrito à “tipificação” realizada na inicial, podendo enquadrar a conduta do
agente ímprobo nos arts. 9º, 10 ou 11 (como se fosse uma emendatio libelli,
do processo penal). Isso porque, antes da Lei nº 14.230/2021, a jurisprudência
do STJ estava sedimentada no sentido que, na ação de improbidade, o réu
defende-se dos fatos imputados, e não da capitulação legal da conduta.
Ocorre que, com a Lei nº 14.230/2021, essa prática não é
mais permitida, não podendo o juiz alterar a capitulação inicial. Veja:
Art. 17 (...)
§ 10-C. Após a réplica do
Ministério Público, o
juiz proferirá decisão na qual indicará com precisão a tipificação do ato de
improbidade administrativa imputável ao réu, sendo-lhe vedado modificar
o fato principal e a capitulação legal apresentada pelo autor.
§ 10-D. Para cada ato de
improbidade administrativa, deverá necessariamente ser indicado apenas um tipo
dentre aqueles previstos nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei.
(...)
§ 10-F. Será nula a decisão de mérito total ou
parcial da ação de improbidade administrativa que:
I - condenar o requerido por tipo
diverso daquele definido na petição inicial;
Trata-se de
aplicação do princípio da correlação entre o pedido, ou seja, entre as sanções
qualitativa e quantitativamente postuladas pelo autor, e a sentença.
Ocorre que jurisprudência do STJ
é no sentido de que o art. 17, § 10-C da Lei nº 14.230/2021 não pode ser
aplicado aos processos já
sentenciados: STJ. 1ª Turma. AgInt
no AREsp 2.301.778/DF, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 4/12/2023.
Logo, não há óbice legal para a
alteração do enquadramento jurídico da conduta ilícita objeto de sentença em
data anterior a vigência da Lei nº 14.230/2021.
Dentro desse arcabouço normativo,
admite-se a incidência da continuidade típico-normativa.
Antes
da Lei nº 14.230/2021 havia controvérsia sobre o assunto.
A Lei nº 14.230/2021,
contudo, conferiu nova redação ao art. 10, VIII, da Lei nº 8.429/1992 dispondo
que, para fins de configuração de improbidade administrativa, o ato deverá
acarretar “perda patrimonial efetiva”:
LEI Nº 8.429/92 |
|
Antes da Lei n.º 14.230/2021 |
Depois da Lei nº 14.230/2021 |
Art. 10. Constitui ato de
improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou
omissão, dolosa ou
culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação,
malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no
art. 1º desta lei, e notadamente: |
Art. 10. Constitui ato de
improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão
dolosa, que
enseje, efetiva e
comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação,
malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no
art. 1º desta Lei, e notadamente: |
VIII - frustrar a licitude de
processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com
entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente; (Redação dada
pela Lei nº 13.019, de 2014) (...) |
VIII - frustrar a licitude de
processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com
entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda
patrimonial efetiva; (...) |
Ocorre que, no caso concreto, ao
contrário do que alegou João, não se trata de dano presumido.
O juiz e o TJ reconheceram que existiu
efetivo dano ao erário considerando que houve o pagamento ao escritório de
advocacia e ele não executou os serviços contratados.
Em suma:
A dispensa indevida de licitação que acarreta
pagamento ao agente ímprobo e a ausência de prestação de serviço gera dano
concreto e enseja a responsabilização nos termos do art. 11, V, da Lei nº
8.429/1992.
STJ. 2ª Turma. AREsp 1.417.207-MG, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em
17/9/2024 (Info 826).