quarta-feira, 27 de novembro de 2024
O STJ reconheceu que é possível registrar o bebê com o nome das duas mães em caso de inseminação artificial “caseira”, desde que na constância de uma união estável homoafetiva. Entenda
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Regina e Carla mantinham uma
união estável desde 2018, formalizada em cartório através de escritura pública.
O casal sempre sonhou em ter
filhos, mas os altos custos dos procedimentos de reprodução assistida em
clínicas especializadas (em média R$ 25 mil) eram um impeditivo financeiro.
Após muito planejamento, em 2022
elas optaram por realizar uma inseminação artificial “caseira”, onde Regina
seria a mãe gestante.
Abrindo um parêntese: o que
é a inseminação artificial caseira?
A inseminação artificial caseira,
ou autoinseminação, é um método de reprodução assistida realizado fora do
ambiente médico, em que uma pessoa ou casal utiliza sêmen de doador para tentar
engravidar sem a ajuda direta de profissionais de saúde ou de uma clínica de
fertilidade. Esse processo costuma ser feito de maneira mais simples, usando
materiais básicos como seringas adquiridas em drogarias.
O método é chamado “caseiro”
porque o procedimento acontece em casa ou em um ambiente não clínico.
A pessoa interessada injeta o
sêmen no canal vaginal no momento em que se acredita estar no período fértil,
sem acompanhamento ou intervenção médica.
É uma prática que, apesar de ser
mais acessível economicamente para algumas pessoas e casais, pode ter riscos,
como uma menor taxa de sucesso em comparação com métodos assistidos em clínicas
especializadas e possíveis problemas de segurança e saúde, caso o sêmen não
tenha sido coletado e armazenado em condições seguras.
Voltando ao caso concreto:
O procedimento foi bem-sucedido e
Regina engravidou.
Durante a gestação, com 32
semanas, elas entraram com uma ação judicial pedindo autorização para que a
criança, quando nascesse, pudesse ser registrada com o nome das duas mães.
Em julho de 2022, nasceu Beatriz.
O juiz julgou o pedido improcedente, sentença mantida pelo
Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que não seria possível o
registro da dupla maternidade por se tratar de inseminação caseira, não
realizada em clínica especializada conforme exigido pela regulamentação do
Conselho Federal de Medicina e pelo Conselho Nacional de Justiça:
Provimento 149/2023 do CNJ
Art. 513. Será indispensável, para fins
de registro e de emissão da certidão de nascimento, a apresentação dos
seguintes documentos:
(...)
II — declaração, com firma reconhecida,
do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que
foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por
reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários;
Para o TJ/SP, a ausência de
acompanhamento clínico inviabilizava a presunção de maternidade para Carla, que
não gerou o bebê.
Inconformadas, elas interpuseram
recurso especial insistindo no pedido.
Argumentaram que o fato de terem
optado por um método de inseminação “caseira” não deveria impedi-las de
registrar a dupla maternidade, uma vez que essa escolha foi feita em comum
acordo, dentro da união estável e com o intuito de formar uma família. O casal alegou,
ainda, que não teriam condições financeiras de arcar com os altos custos da
inseminação assistida formal, realizada em clínicas.
O STJ deu provimento ao
recurso?
SIM. A 3ª Turma do STJ, por
unanimidade, deu provimento ao recurso, permitindo o registra da criança com o
nome das duas mães.
Para que se verifique a presunção
de filiação prevista no art. 1.597, V, do CC/2002, é necessário que estejam
presentes os seguintes requisitos:
(I) a concepção da criança na
constância do casamento;
(II) a utilização da técnica de
inseminação artificial heteróloga; e
(III) a prévia autorização do
marido.
Art. 1.597. Presumem-se
concebidos na constância do casamento os filhos:
(...)
V - havidos por inseminação
artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Verificada a concepção de filho
no curso de convivência pública, contínua e duradoura, com intenção de
constituição de família, viável a aplicação análoga do disposto no art. 1.597,
do Código Civil, às uniões estáveis hétero e homoafetivas, em atenção à
equiparação promovida pelo julgamento conjunto da ADI 4.277 e ADPF 132 pelo
Supremo Tribunal Federal.
O Provimento 149/2023 do CNJ
institui o Código de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho
Nacional de Justiça e permite, expressamente, o registro de criança havida por
técnica de reprodução assistida por casal homoafetivo, conforme dispõe o art.
512, §2º.
Dentre os documentos necessários
para o registro e emissão da certidão de nascimento de criança havida por
técnica de reprodução assistida, determina o art. 513, II, a necessidade de
apresentação de declaração, com firma reconhecida, de diretor técnico da
clínica, centro ou serviço de reprodução humana assistida em que realizada a
inseminação artificial.
Contudo, a despeito da exigência
da apresentação do documento do art. 513, II, não se verifica, no ordenamento
jurídico brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por
meio de procedimento sem acompanhamento médico, chamada inseminação artificial
“caseira”, ou “autoinseminação”.
Conquanto o acompanhamento médico
e de clínicas especializadas seja de extrema relevância para o planejamento da
concepção por meio de técnicas de reprodução assistida, não há, no ordenamento
jurídico brasileiro, vedação explícita ao registro de filiação realizada por
meio de inseminação artificial “caseira”, também denominada “autoinseminação”.
Ao contrário, a interpretação do
art. 1.597, V, do CC/2002, à luz dos princípios que norteiam o livre
planejamento familiar e o melhor interesse da criança, indica que a inseminação
artificial “caseira” é protegida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
No caso, preenchidos,
simultaneamente, todos os requisitos do art. 1.597, V, do Código Civil,
presume-se a maternidade.
Em suma:
É possível presumir a maternidade de mãe não
biológica de criança gerada por inseminação artificial “caseira” no curso de
união estável homoafetiva.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.137.415-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/10/2024 (Info
830).