segunda-feira, 18 de novembro de 2024
O simples fato de não ter sido de não ter sido concedido o benefício do tráfico privilegiado é suficiente para se negar a progressão de regime especial do inciso V do § 3º do art. 112 da LEP?
Progressão de regime
especial
A Lei nº 13.769/2018 (Pacote Anticrime) incluiu o § 3º no
art. 112 da Lei de Execuções Penais - LEP, prevendo progressão de regime
especial:
Art. 112 (...)
§ 3º No caso de mulher gestante ou que
for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos
para progressão de regime são, cumulativamente:
I - não ter cometido crime com
violência ou grave ameaça a pessoa;
II - não ter cometido o crime contra
seu filho ou dependente;
III - ter cumprido ao menos 1/8 (um
oitavo) da pena no regime anterior;
IV - ser primária e ter bom
comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento;
V - não ter integrado organização
criminosa.
Desse modo, esse § 3º afirmou que
a mulher gestante ou que for mãe/responsável por crianças ou pessoas com
deficiência poderá progredir de regime com 1/8 da pena cumprida (o que é um
tempo menor do que a regra geral), mas desde que cumpridos alguns requisitos
elencados no dispositivo.
Não ter integrado
organização criminosa (inciso V)
Um dos requisitos para ter
direito a essa progressão especial está no fato de que a reeducanda não pode
ter “integrado organização criminosa” (inciso V).
Surgiram duas correntes a respeito da
abrangência dessa expressão:
1ª corrente: a interpretação deve ser restritiva.
Somente abrangia a condenação por crime da Lei
nº 12.850/2013.
Para essa corrente ter “integrado organização criminosa”
(inciso V) significa: ter sido condenada pelo crime do art. 2º da Lei nº 12.850/2013:
Art. 2º Promover, constituir,
financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização
criminosa:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 8
(oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais
infrações penais praticadas.
Logo, essa expressão (“organização criminosa”)
não pode ser interpretada em sentido amplo para abranger toda e qualquer
associação criminosa.
Para essa primeira corrente, mesmo que a ré
tivesse sido condenada por associação criminosa (art. 288 do CP) ou por associação
para o tráfico (art. 35 da Lei 11.343/2006), ainda assim poderia ter direito à
progressão de regime especial. A pessoa só estaria impedida de gozar da
progressão com base nesse inciso se tiver praticado o crime previsto na Lei nº
12.850/2013.
Essa corrente já foi adotada, no passado, pelo
STJ (HC 522.651-SP, Info 678), mas está superada.
2ª corrente: admite-se a interpretação extensiva
da norma.
A expressão “não ter integrado
organização criminosa” prevista no inciso V do § 3º do art. 112 da LEP abrange todo crime
que enseje o concurso necessário de agentes em união estável e permanente
voltada para práticas delitivas, como ocorre com o crime de associação para o
tráfico de drogas (art. 35 da Lei nº 11.343/2006).
Prevalece atualmente no STJ que, não apenas a condenação pelo
delito específico de organização criminosa (art. 2º da Lei n. 12.850/13) impede
a aplicação da fração de 1/8 para a progressão de regime especial, mas também
todo aquele crime que enseje o concurso necessário de agentes em união estável
e permanente voltada para práticas delitivas - como ocorre justamente com o
crime de associação para o tráfico de drogas.
STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 916.442/SP, Rel. Min. Messod Azulay
Neto, julgado em 2/9/2024.
STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 848.866/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha
Palheiro, julgado em 27/11/2023.
Feitos esses esclarecimentos, imagine
a seguinte situação hipotética:
Regina foi presa em flagrante enquanto transportava uma
grande quantidade de cocaína escondida dentro de um carrinho de bebê.
O Ministério Público denunciou Regina por tráfico de
drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006).
Regina foi, ao final, condenada.
Na sentença, o juiz rejeitou o pedido da defesa para aplicar
a redução de pena prevista no §4º do art. 33 da Lei de Drogas (conhecida como “tráfico
privilegiado”). Como a ré já respondia a outra ação penal, o magistrado afirmou
que ela não poderia ter direito à minorante porque ficou demonstrado que se
dedica a atividades criminosas:
Art. 33 (...)
§ 4º Nos delitos definidos no
caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois
terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente
seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas
nem integre organização criminosa.
A sentença transitou em julgado.
Execução da pena
Regina iniciou o cumprimento da pena.
Passado algum tempo de cumprimento da pena, como Regina era
mãe de quatro crianças, a defesa requereu ao Juízo da execução penal a progressão
de regime especial prevista no art. 112 da LEP.
O Juízo, no entanto, indeferiu a progressão ao regime
semiaberto. Em síntese, ele ponderou o seguinte:
- eu sei que Regina não foi condenada por organização
criminosa nem por associação para o tráfico;
- no entanto, estou vendo aqui que, na sentença
condenatória, a causa de diminuição do § 4º do art. 33, da Lei nº 11.343/2006
deixou de ser aplicada exatamente pelo envolvimento da ré com o crime
organizado;
- logo, é de se reconhecer que não está presente o
requisito de “não integrar organização criminosa”, necessário para a progressão
especial conforme art. 112, § 3º, V, da LEP.
Contra essa decisão, a defesa interpôs agravo em execução
penal, requerendo ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a concessão da
progressão especial de regime. O recurso, no entanto, foi desprovido.
Ainda irresignada, a defesa impetrou habeas corpus
direcionado no STJ argumentando que o simples fato de não ter sido concedido o
benefício do tráfico privilegiado não é suficiente para se concluir que a ré
integra organização criminosa. Logo, o simples fato de não ter sido concedido o
benefício do tráfico privilegiado não é suficiente para se negar a progressão
de regime especial do inciso V do § 3º do art. 112 da LEP.
O STJ concordou com os argumentos da defesa?
SIM.
A
interpretação dada pelo juiz e pelo TJ/SP contrariou os princípios da
legalidade e da individualização da pena.
De
acordo com o princípio da legalidade no âmbito da execução, a apenada somente
pode ter seus direitos limitados/restringidos nos casos expressamente previstos
na lei e na sentença condenatória.
Conforme
o princípio da individualização da pena, deve ser evitada a padronização da
reprimenda, que deve ser adequada a cada reeducanda, considerando sua
personalidade, seu histórico prisional e sua evolução carcerária.
No caso
concreto, os fundamentos utilizados na sentença condenatória não indicam que a condenada
integre organização criminosa, mas apenas que se dedica a atividades
criminosas, o que, efetivamente, extrapola os limites do princípio da
legalidade e da individualização da pena.
Na
prática, se fosse admitida a interpretação dada pelo TJ, toda mulher condenada
por tráfico que não recebesse a causa de diminuição do tráfico privilegiado,
não teria também direito à progressão de regime especial do § 3º do art. 112 da
LEP, o que não faz sentido.
A
vedação da progressão especial pela via interpretativa para todas as condenadas
por tráfico de drogas sem incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33
da Lei nº 11.343/2006 não encontra fundamento legal, devendo se restringir a vedação do
inciso V do § 3º do art. 112 da Lei de Execução Penal aos casos em que houve
condenação por crime associativo.
Em suma:
A vedação da progressão especial prevista no inciso V
do § 3º do art. 112 da Lei de Execução Penal deve se restringir aos casos em
houve condenação por crime associativo, não servindo como óbice ao benefício o
mero afastamento da minorante do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas.
STJ. 6ª Turma. HC 888.336-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 13/8/2024 (Info 827).