Imagine a seguinte situação
hipotética:
A Fazenda Nacional ingressou com
execução fiscal cobrando R$ 100 mil de João.
No decorrer dos atos executórios,
foi realizada pesquisa no sistema SISBAJUD, que identificou a existência de R$ 2.000,00
em uma conta poupança em nome do executado.
SISBAJUD é o
Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário. Ele é uma plataforma online que
facilita a comunicação entre o Poder Judiciário e as instituições financeiras,
permitindo a solicitação de ações como bloqueio, desbloqueio, transferência ou
consulta de valores em contas correntes, poupanças e investimentos. O SISBAJUD
foi desenvolvido pelo CNJ e tem como objetivo principal a recuperação de
créditos judiciais, o combate à sonegação fiscal e à lavagem de dinheiro,
contribuindo para a efetividade do sistema judicial e garantindo o cumprimento
de decisões. Esse sistema substituiu o BacenJud, trazendo novas funcionalidades
e uma interação mais ampla entre juízes, bancos e outras entidades financeiras.
A Fazenda Nacional requereu que o
juízo executasse o comando de bloqueio junto ao sistema SISBAJUD, o que, na
prática, significaria que essa quantia ficaria indisponível para João.
O magistrado, entretanto, rejeitou o pedido. Ele entendeu
que, quando a pesquisa no sistema SISBAJUD (anterior ao comando de bloqueio)
retorna quantias abaixo do montante de impenhorabilidade do art. 833, X, do CPC
(“quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40
salários-mínimos”), não há que se proceder sequer ao bloqueio efetivo:
Art. 833. São impenhoráveis:
(...)
X - a quantia depositada em
caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;
A Fazenda Nacional recorreu
alegando que a decisão foi inadequada, já que “proferida pelo magistrado sem
provocação da parte executada”.
Para a exequente, o juiz somente
poderia ter decidido assim caso a parte executada tivesse alegado e comprovado,
em sua defesa, a impenhorabilidade dos valores bloqueados junto ao SISBAJUD.
“Não é dado ao Juiz determinar, de ofício e previamente à consulta, a
impossibilidade de constrição de ativos financeiros”.
Em outras palavras, a Fazenda
Nacional disse o seguinte: tudo bem que essa verba, em tese, é impenhorável. No
entanto, o juiz somente poderia ter reconhecido isso se tivesse havido alegação
e requerimento da parte executada. Como não houve, o magistrado não poderia ter
reconhecido de ofício já que se trata de direito patrimonial disponível.
A controvérsia chegou até o
STJ. A impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos (art. 833,
X, do CPC) é matéria de ordem pública e pode ser reconhecida de ofício pelo
juiz?
NÃO.
O art. 833 do CPC/2015 prevê as
hipóteses de impenhorabilidade.
No CPC/1973 essas hipóteses
estavam elencadas no art. 649.
O principal argumento a
justificar o entendimento de que a regra de impenhorabilidade seria de natureza
cogente e de ordem pública consistia na interpretação literal do caput do art.
649 do CPC/1973. Isso porque esse dispositivo falava que as situações ali
previstas eram “absolutamente impenhoráveis”.
Ocorre que o art. 833 do CPC/2015
retirou a expressão “absolutamente”. Compare:
CPC/1973 |
CPC/2015 |
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: (...) |
Art. 833. São impenhoráveis: (...) |
Ao suprimir a palavra “absolutamente”
no caput do art. 833, o CPC/2015 passou a tratar a impenhorabilidade como
relativa, permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico,
em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor
e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais
adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e
inflexível do conceito de impenhorabilidade (STJ. Corte Especial. EREsp
1.874.222/DF, DJe 24/5/2023).
É fundamental ressaltar que “a
impenhorabilidade é um direito do executado, que pode ser renunciado se o bem
impenhorável for disponível. Se a impenhorabilidade é disponível, não pode ser
considerada como regra de ordem pública” (DIDIER Jr., Fredie; et al. Curso de
direito processual civil: execução. v. 5. 13. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023,
p. 867).
“Alguns exemplos podem ser úteis
para a correta compreensão do tema. [...]
b) Penhora sobre bem impenhorável
disponível. Intimado a defender-se, o executado não a questiona, deixando de
exercer o seu direito de não ter aquele bem penhorado. Há, no caso, preclusão,
pois a invalidade do ato deve ser requerida no primeiro momento em que couber à
parte falar nos autos (art. 278 do CPC).” (DIDIER Jr., Fredie; et al. Curso de
direito processual civil: execução. v. 5. 13. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023,
p. 866-869)
No mesmo sentido, leciona Araken
de Assis que, diante da “disponibilidade da impenhorabilidade”, “só ao
executado, e a ninguém mais, cabe alegar a impenhorabilidade, na primeira
oportunidade, sob pena de preclusão (art. 278, caput)” (Manual da Execução. 21.
ed. São Paulo: RT, p. RB- 4.15).
Além disso, é fundamental observar que no incidente de
penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, como na espécie, o
CPC/2015 passou a prever expressamente o prazo de 5 dias para o executado
demonstrar a impenhorabilidade da quantia bloqueada. Veja o § 3º do art. 854:
Art. 854. Para possibilitar a
penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a
requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado,
determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido
pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne
indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se
a indisponibilidade ao valor indicado na execução.
§ 1º No prazo de 24 (vinte e
quatro) horas a contar da resposta, de ofício, o juiz determinará o
cancelamento de eventual indisponibilidade excessiva, o que deverá ser cumprido
pela instituição financeira em igual prazo.
§ 2º Tornados indisponíveis os
ativos financeiros do executado, este será intimado na pessoa de seu advogado
ou, não o tendo, pessoalmente.
§ 3º Incumbe ao executado, no
prazo de 5 (cinco) dias, comprovar que:
I - as quantias tornadas
indisponíveis são impenhoráveis;
II - ainda remanesce
indisponibilidade excessiva de ativos financeiros.
§ 4º Acolhida qualquer das
arguições dos incisos I e II do § 3º, o juiz determinará o cancelamento de
eventual indisponibilidade irregular ou excessiva, a ser cumprido pela
instituição financeira em 24 (vinte e quatro) horas.
§ 5º Rejeitada ou não apresentada
a manifestação do executado, converter-se-á a indisponibilidade em penhora, sem
necessidade de lavratura de termo, devendo o juiz da execução determinar à
instituição financeira depositária que, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas,
transfira o montante indisponível para conta vinculada ao juízo da execução.
(...)
Observa-se, ainda, que quando o
CPC/2015 objetivou autorizar a atuação de ofício pelo juiz nessa matéria, o fez
de forma expressa, como no § 1º do referido art. 854, admitindo tão somente que
o juiz determine, de ofício, o cancelamento de indisponibilidade que ultrapasse
o valor executado.
Desse modo, o CPC/2015 não
autoriza que o Juiz reconheça a impenhorabilidade de ofício. Ao contrário, ele atribui
ao executado o ônus de alegar e comprovar tal situação de forma tempestiva,
sendo claro que o descumprimento desse ônus pelo executado ensejará a conversão
da indisponibilidade em penhora, nos termos do art. 854, § 3º, I, e § 5º, do
CPC/2015.
Registra-se que, embora o transcurso do referido prazo de 5
dias sem manifestação do executado resulte na efetivação da penhora, restará,
ainda, o manejo de impugnação ao cumprimento de sentença ou de embargos à
execução para alegar e comprovar eventual impenhorabilidade.
Não havendo a alegação tempestiva
em nenhuma dessas hipóteses, estará configurada a preclusão temporal da questão
referente à impenhorabilidade, não podendo nem mesmo ser apreciada em exceção
de pré-executividade, por não se tratar de matéria de ordem pública.
Em síntese:
A impenhorabilidade deve ser
arguida pelo executado:
1) no primeiro momento em que lhe
couber falar nos autos; ou
2) sede de embargos à execução ou
impugnação ao cumprimento de sentença.
Tese fixada pelo STJ:
A impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários
mínimos (art. 833, X, do CPC) não é matéria de ordem pública e não pode ser
reconhecida de ofício pelo juiz, devendo ser arguida pelo executado no primeiro
momento em que lhe couber falar nos autos ou em sede de embargos à execução ou
impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão.
STJ. Corte
Especial. REsps 2.061.973-PR e 2.066.882-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado
em 2/10/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1235) (Info 828).
Cuidado. Risque de seus materiais
de estudo a seguinte decisão em sentido contrário: STJ. 1ª Turma. AgInt no
AREsp 2.220.880-RS, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 26/2/2024
(Info 811).