Dizer o Direito

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

O juiz pode reconhecer de ofício a impenhorabilidade prevista no art. 833, X, do CPC?

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Fazenda Nacional ingressou com execução fiscal cobrando R$ 100 mil de João.

No decorrer dos atos executórios, foi realizada pesquisa no sistema SISBAJUD, que identificou a existência de R$ 2.000,00 em uma conta poupança em nome do executado.

 

SISBAJUD é o Sistema de Busca de Ativos do Poder Judiciário. Ele é uma plataforma online que facilita a comunicação entre o Poder Judiciário e as instituições financeiras, permitindo a solicitação de ações como bloqueio, desbloqueio, transferência ou consulta de valores em contas correntes, poupanças e investimentos. O SISBAJUD foi desenvolvido pelo CNJ e tem como objetivo principal a recuperação de créditos judiciais, o combate à sonegação fiscal e à lavagem de dinheiro, contribuindo para a efetividade do sistema judicial e garantindo o cumprimento de decisões. Esse sistema substituiu o BacenJud, trazendo novas funcionalidades e uma interação mais ampla entre juízes, bancos e outras entidades financeiras.

 

A Fazenda Nacional requereu que o juízo executasse o comando de bloqueio junto ao sistema SISBAJUD, o que, na prática, significaria que essa quantia ficaria indisponível para João.

O magistrado, entretanto, rejeitou o pedido. Ele entendeu que, quando a pesquisa no sistema SISBAJUD (anterior ao comando de bloqueio) retorna quantias abaixo do montante de impenhorabilidade do art. 833, X, do CPC (“quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 salários-mínimos”), não há que se proceder sequer ao bloqueio efetivo:

Art. 833. São impenhoráveis:

(...)

X - a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

 

A Fazenda Nacional recorreu alegando que a decisão foi inadequada, já que “proferida pelo magistrado sem provocação da parte executada”.

Para a exequente, o juiz somente poderia ter decidido assim caso a parte executada tivesse alegado e comprovado, em sua defesa, a impenhorabilidade dos valores bloqueados junto ao SISBAJUD. “Não é dado ao Juiz determinar, de ofício e previamente à consulta, a impossibilidade de constrição de ativos financeiros”.

Em outras palavras, a Fazenda Nacional disse o seguinte: tudo bem que essa verba, em tese, é impenhorável. No entanto, o juiz somente poderia ter reconhecido isso se tivesse havido alegação e requerimento da parte executada. Como não houve, o magistrado não poderia ter reconhecido de ofício já que se trata de direito patrimonial disponível.

 

A controvérsia chegou até o STJ. A impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos (art. 833, X, do CPC) é matéria de ordem pública e pode ser reconhecida de ofício pelo juiz?

NÃO.

O art. 833 do CPC/2015 prevê as hipóteses de impenhorabilidade.

No CPC/1973 essas hipóteses estavam elencadas no art. 649.

O principal argumento a justificar o entendimento de que a regra de impenhorabilidade seria de natureza cogente e de ordem pública consistia na interpretação literal do caput do art. 649 do CPC/1973. Isso porque esse dispositivo falava que as situações ali previstas eram “absolutamente impenhoráveis”.

Ocorre que o art. 833 do CPC/2015 retirou a expressão “absolutamente”. Compare:

 

CPC/1973

CPC/2015

Art. 649.  São absolutamente impenhoráveis:

(...)

Art. 833. São impenhoráveis:

(...)

 

Ao suprimir a palavra “absolutamente” no caput do art. 833, o CPC/2015 passou a tratar a impenhorabilidade como relativa, permitindo que seja atenuada à luz de um julgamento principiológico, em que o julgador, ponderando os princípios da menor onerosidade para o devedor e da efetividade da execução para o credor, conceda a tutela jurisdicional mais adequada a cada caso, em contraponto a uma aplicação rígida, linear e inflexível do conceito de impenhorabilidade (STJ. Corte Especial. EREsp 1.874.222/DF, DJe 24/5/2023).

É fundamental ressaltar que “a impenhorabilidade é um direito do executado, que pode ser renunciado se o bem impenhorável for disponível. Se a impenhorabilidade é disponível, não pode ser considerada como regra de ordem pública” (DIDIER Jr., Fredie; et al. Curso de direito processual civil: execução. v. 5. 13. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 867).

“Alguns exemplos podem ser úteis para a correta compreensão do tema. [...]

b) Penhora sobre bem impenhorável disponível. Intimado a defender-se, o executado não a questiona, deixando de exercer o seu direito de não ter aquele bem penhorado. Há, no caso, preclusão, pois a invalidade do ato deve ser requerida no primeiro momento em que couber à parte falar nos autos (art. 278 do CPC).” (DIDIER Jr., Fredie; et al. Curso de direito processual civil: execução. v. 5. 13. ed. São Paulo: JusPodivm, 2023, p. 866-869)

 

No mesmo sentido, leciona Araken de Assis que, diante da “disponibilidade da impenhorabilidade”, “só ao executado, e a ninguém mais, cabe alegar a impenhorabilidade, na primeira oportunidade, sob pena de preclusão (art. 278, caput)” (Manual da Execução. 21. ed. São Paulo: RT, p. RB- 4.15).

Além disso, é fundamental observar que no incidente de penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, como na espécie, o CPC/2015 passou a prever expressamente o prazo de 5 dias para o executado demonstrar a impenhorabilidade da quantia bloqueada. Veja o § 3º do art. 854:

Art. 854. Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou em aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, sem dar ciência prévia do ato ao executado, determinará às instituições financeiras, por meio de sistema eletrônico gerido pela autoridade supervisora do sistema financeiro nacional, que torne indisponíveis ativos financeiros existentes em nome do executado, limitando-se a indisponibilidade ao valor indicado na execução.

§ 1º No prazo de 24 (vinte e quatro) horas a contar da resposta, de ofício, o juiz determinará o cancelamento de eventual indisponibilidade excessiva, o que deverá ser cumprido pela instituição financeira em igual prazo.

§ 2º Tornados indisponíveis os ativos financeiros do executado, este será intimado na pessoa de seu advogado ou, não o tendo, pessoalmente.

§ 3º Incumbe ao executado, no prazo de 5 (cinco) dias, comprovar que:

I - as quantias tornadas indisponíveis são impenhoráveis;

II - ainda remanesce indisponibilidade excessiva de ativos financeiros.

§ 4º Acolhida qualquer das arguições dos incisos I e II do § 3º, o juiz determinará o cancelamento de eventual indisponibilidade irregular ou excessiva, a ser cumprido pela instituição financeira em 24 (vinte e quatro) horas.

§ 5º Rejeitada ou não apresentada a manifestação do executado, converter-se-á a indisponibilidade em penhora, sem necessidade de lavratura de termo, devendo o juiz da execução determinar à instituição financeira depositária que, no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, transfira o montante indisponível para conta vinculada ao juízo da execução.

(...)

 

Observa-se, ainda, que quando o CPC/2015 objetivou autorizar a atuação de ofício pelo juiz nessa matéria, o fez de forma expressa, como no § 1º do referido art. 854, admitindo tão somente que o juiz determine, de ofício, o cancelamento de indisponibilidade que ultrapasse o valor executado.

Desse modo, o CPC/2015 não autoriza que o Juiz reconheça a impenhorabilidade de ofício. Ao contrário, ele atribui ao executado o ônus de alegar e comprovar tal situação de forma tempestiva, sendo claro que o descumprimento desse ônus pelo executado ensejará a conversão da indisponibilidade em penhora, nos termos do art. 854, § 3º, I, e § 5º, do CPC/2015.

Registra-se que, embora o transcurso do referido prazo de 5 dias sem manifestação do executado resulte na efetivação da penhora, restará, ainda, o manejo de impugnação ao cumprimento de sentença ou de embargos à execução para alegar e comprovar eventual impenhorabilidade.

Não havendo a alegação tempestiva em nenhuma dessas hipóteses, estará configurada a preclusão temporal da questão referente à impenhorabilidade, não podendo nem mesmo ser apreciada em exceção de pré-executividade, por não se tratar de matéria de ordem pública.

 

Em síntese:

A impenhorabilidade deve ser arguida pelo executado:

1) no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos; ou

2) sede de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença.

 

Tese fixada pelo STJ:

A impenhorabilidade de quantia inferior a 40 salários mínimos (art. 833, X, do CPC) não é matéria de ordem pública e não pode ser reconhecida de ofício pelo juiz, devendo ser arguida pelo executado no primeiro momento em que lhe couber falar nos autos ou em sede de embargos à execução ou impugnação ao cumprimento de sentença, sob pena de preclusão. 

STJ. Corte Especial. REsps 2.061.973-PR e 2.066.882-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 2/10/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1235) (Info 828).

 

Cuidado. Risque de seus materiais de estudo a seguinte decisão em sentido contrário: STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 2.220.880-RS, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 26/2/2024 (Info 811).


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