Imagine a seguinte situação
hipotética:
João é um pequeno produtor rural.
Ele possui um pequeno imóvel onde cria vacas leiteiras.
Em 15 de março de 2023, a empresa
responsável pelo fornecimento de energia elétrica na região, realizou uma
interrupção programada no fornecimento de energia por 12 horas para fazer
manutenção na rede.
A empresa divulgou a informação
sobre o corte programado por meio de anúncios em duas rádios locais nos três
dias anteriores à interrupção. Ocorre que João não ouviu os anúncios.
Sem energia elétrica, o
resfriador de leite da propriedade de João ficou desligado durante as 12 horas
de interrupção, o que causou a perda de 300 litros de leite que estavam
armazenados.
Inconformado, João ingressou com
ação de indenização por danos contra a empresa, alegando que não foi
devidamente notificado sobre a interrupção programada conforme exige a Resolução
Normativa nº 1.000/2021, da ANEEL.
O juiz julgou o pedido
procedente, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça.
A empresa interpôs recurso
especial argumentando que o aviso por rádio atendia ao previsto no art. 6º, §3º
da Lei nº 8.987/1995, que exige apenas “prévio aviso” sem especificar a forma:
Lei nº 8.987/95 (dispõe sobre as concessões e permissões de
serviços públicos):
Art. 6º Toda concessão ou
permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos
usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no
respectivo contrato.
(...)
§ 3º Não se caracteriza como
descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após
prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem
técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do
usuário, considerado o interesse da coletividade.
O STJ
concordou com os argumentos da fornecedora?
NÃO.
A interrupção no fornecimento de
energia, por motivos técnicos ou de segurança, deve ser precedida de uma
notificação à unidade consumidora. O art. 6º, § 3º, I, da Lei nº 8.987/95
estabelece que deve haver um “prévio aviso”, sem especificar o meio pelo qual
isso deve ser feito.
Nesse contexto, tanto a Lei de
Concessões quanto o Código de Defesa do Consumidor devem ser interpretados no
sentido de que o aviso prévio sobre a interrupção programada dos serviços
essenciais deve seguir a forma determinada pelo órgão regulador competente.
Isso ocorre porque a concessionária cumpre sua obrigação legal ao observar as
normas estabelecidas pelo órgão regulador, cujo poder normativo é reconhecido,
inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal:
As disposições emanadas da Resolução ANTT 233/2003 obedecem
às diretrizes legais, na medida em que protegem os interesses dos usuários,
relativamente ao zelo pela qualidade e pela oferta de serviços de transportes
que atendam a padrões de eficiência, segurança, conforto, regularidade,
pontualidade e modicidade das tarifas, assim como a cominação das penas não
desborda da parâmetros estabelecidos em lei.
STF. Plenário. ADI 5906, Relator p/ acórdão Min. Alexandre
de Moraes, julgado em 6/3/2023.
Atualmente, a Resolução Normativa nº 1.000/2021 da ANEEL
regula o tema, exigindo que a notificação seja feita por escrito ou de maneira
destacada na fatura:
Art. 360. A notificação ao
consumidor e demais usuários sobre a suspensão do fornecimento de energia
elétrica deve conter:
I - o dia a partir do qual poderá
ser realizada a suspensão do fornecimento, exceto no caso de suspensão
imediata;
II - o prazo para o encerramento
das relações contratuais, conforme art. 140;
III - a informação da cobrança do
custo de disponibilidade, conforme art. 322; e
IV - no caso de impedimento de
acesso para fins de leitura, as informações do inciso IV do art. 278.
§ 1º A notificação deve ser realizada com
antecedência de pelo menos:
I - 3 dias úteis: por razões de
ordem técnica ou de segurança; ou
II - 15 dias: nos casos de
inadimplemento.
§ 2º A critério da distribuidora, a notificação
pode ser:
I - escrita, específica e com
entrega comprovada; ou
II - impressa em destaque na
fatura.
§ 3º A notificação escrita, específica e com
entrega comprovada é obrigatória para:
I - serviço público ou essencial
à população e que seja prejudicado com a suspensão do fornecimento, com a
notificação devendo ser feita ao poder público competente;
II - unidade consumidora em que
existam pessoas usuárias de equipamentos de autonomia limitada, vitais à
preservação da vida humana e dependentes de energia elétrica, desde que tenha
sido cadastrada previamente junto à distribuidora; e
III - suspensão imediata do
fornecimento decorrente da caracterização de situação emergencial.
§ 4º Em se tratando de
consumidores livres e especiais, inclusive os representados por agentes
varejistas, a distribuidora deverá encaminhar notificação a respeito da
suspensão do fornecimento de energia elétrica à CCEE, a qual informará ao
respectivo agente varejista, se for o caso.
É necessária uma interpretação
conjunta dos arts. 14 e 22 do Código de Defesa do Consumidor (que tratam da
responsabilidade do fornecedor por danos causados ao consumidor por defeitos na
prestação dos serviços) e do art. 6º, § 3º, I, da Lei nº 8.987/1995, no sentido
de que "o aviso prévio da interrupção programada dos serviços essenciais
precisa ser feito na forma determinada pelo órgão regulador".
As Agências Reguladoras, criadas
por lei, possuem delegação para exercer poder normativo e regular as áreas de
sua competência. No caso em questão, esse poder foi exercido por meio da
expedição de Resoluções. Embora esses atos normativos infralegais não possam
criar novas normas ou contrariar a legislação vigente, eles expressam o
exercício legítimo do poder regulamentar concedido às Agências Reguladoras, ao
qual as concessionárias e permissionárias de serviços públicos devem se
submeter.
Em suma:
Em caso de interrupção programada dos serviços, cabe
ao fornecedor de serviços essenciais a obrigação de avisar previamente os
consumidores pela forma definida pelo respectivo órgão regulador.
STJ. 1ª
Turma. REsp 1.812.140-RS, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em
10/9/2024 (Info 826).