Dizer o Direito

domingo, 24 de novembro de 2024

É possível usucapião de imóvel pertencente à sociedade de economia mista?

CAESB

A Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB) é uma sociedade de economia mista vinculada ao Governo do Distrito Federal.

Sua principal finalidade é a gestão das atividades de saneamento e do fornecimento de água, operando em um regime não concorrencial e sem intuito lucrativo.

 

Usucapião

Usucapião é...

- um instituto jurídico por meio do qual a pessoa que fica na posse de um bem (móvel ou imóvel)

- por determinados anos

- agindo como se fosse dono

- adquire a propriedade deste bem ou outros direitos reais a ele relacionados (exs: usufruto, servidão)

- desde que cumpridos os requisitos legais.

 

Existem diversas modalidades de usucapião. Uma delas é a usucapião extraordinária, prevista no art. 1.238 do Código Civil:

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

Usucapião extraordinária

Prazos:

• 15 anos de posse (regra)

• 10 anos

 

O prazo da usucapião extraordinária será de 10 anos se:

a) o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual; OU

b) nele tiver realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

Não se exige que a pessoa prove que tinha um justo título ou que estava de boa-fé.

Não importa o tamanho do imóvel.

O requisito temporal pode ser completado no curso do processo (CESPE 2018 TJCE)

 

Feitos esses esclarecimentos, imagine a seguinte situação hipotética:

João e sua família moram há mais de 15 anos em uma área de 7.000 m² localizada nos fundos de um terreno onde existe um reservatório de água da CAESB (Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal).

Há muitos anos João construiu uma casa no local e sempre cuidou da área como se fosse proprietário.

Ele ajuizou ação de usucapião extraordinária contra a CAESB, alegando que preenchia todos os requisitos legais: posse mansa, pacífica, ininterrupta, com animus domini (intenção de ser dono) e por prazo superior a 15 anos.

 

Contestação

A CAESB apresentou contestação alegando que o terreno em questão é bem público por ser de propriedade de uma sociedade de economia mista que presta serviço público essencial (abastecimento de água).

Além disso, a área pleiteada está afetada à prestação de serviço público, considerando que:

• existe um reservatório de água no local (Reservatório Catetinho);

• a área é estratégica para expansão do sistema de abastecimento de água por estar próxima a 11 pontos de captação;

• o terreno tem localização topográfica favorável para as atividades da companhia.

 

O juiz julgou o pedido de usucapião improcedente, sentença mantida pelo TJDFT.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial.

 

O STJ deu provimento ao recurso de João? É possível a usucapião neste caso?

NÃO.

Conforme já explicado, o imóvel objeto da demanda é de propriedade da CAESB – sociedade de economia mista, integrante da Administração Indireta do Distrito Federal, que presta serviço público em regime não concorrencial na área de saneamento básico.

O art. 102 do CC prevê expressamente que “os bens públicos não estão sujeitos a usucapião”.

O STJ possui o entendimento de que:

Os bens integrantes do acervo patrimonial de sociedade de economia mista sujeitos a uma destinação pública podem ser considerados bens públicos, insuscetíveis, portanto, de usucapião.

STJ. 4ª Turma. AgInt no REsp 1.719.589/SP, DJe de 12/11/2018.

 

Os bens integrantes do acervo patrimonial de sociedade de economia mista não são usucapíveis quando sujeitos a uma destinação pública.

STJ. 3ª Turma. AgInt no REsp 1.769.138/PR, DJe de 31/3/2022.

 

O que significa dizer que o bem está sujeito a uma destinação pública?

O STJ tem interpretado amplamente o conceito de “destinação pública” para afastar a possibilidade de usucapião de bens pertencentes a empresas estatais.

Um exemplo disso é o julgamento do REsp 1.874.632/AL, no qual o STJ afirmou que “mesmo o eventual abandono de imóvel público não possui o condão de alterar a natureza jurídica que o permeia, pois não é possível confundir a usucapião de bem público com a responsabilidade da Administração pelo abandono de bem público. Com efeito, regra geral, o bem público é indisponível [...]. Eventual inércia dos gestores públicos, ao longo do tempo, não pode servir de justificativa para perpetuar a ocupação ilícita de área pública, sob pena de se chancelar ilegais situações de invasão de terras”.

Ainda nesse julgamento, o STJ entendeu que “os imóveis públicos, mesmo desocupados, possuem finalidade específica (atender a eventuais necessidades da Administração Pública) ou genérica (realizar o planejamento urbano ou a reforma agrária). Significa dizer que, aceitar a usucapião de imóveis públicos, com fundamento na dignidade humana do usucapiente, é esquecer-se da dignidade dos destinatários da reforma agrária, do planejamento urbano ou de eventuais beneficiários da utilização do imóvel, segundo as necessidades da Administração Pública”.

Dessa forma, quando há um conflito entre direitos fundamentais, como o direito à moradia e a supremacia do interesse público, deve prevalecer, em regra, o interesse público, priorizando o bem coletivo sobre os interesses individuais.

Portanto, ao avaliar a destinação pública de um bem pertencente a uma empresa pública ou sociedade de economia mista, deve-se considerar a supremacia do interesse público e o potencial uso do bem para atender a alguma finalidade pública.

 

O bem está afeto à prestação de um serviço essencial

O imóvel em questão possui uma destinação específica voltada à prestação de serviço público de abastecimento. Ele está vinculado ao fornecimento de água potável à população do Distrito Federal, sendo parte integrante desse sistema.

A área ocupada pelo autor e sua família é considerada estratégica para a expansão do sistema de abastecimento de água, pois está próxima de 11 pontos de captação e apresenta características topográficas favoráveis para esse fim.

 

Em suma:

Não há possibilidade de usucapião de imóvel afetado à finalidade pública essencial pertencente à sociedade de economia mista que atua em regime não concorrencial. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.173.088-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 8/10/2024 (Info 829).

 

Jurisprudência em Teses (Ed. 124):

1) Os bens integrantes do acervo patrimonial de sociedades de economia mista sujeitos a uma destinação pública equiparam-se a bens públicos, sendo, portanto, insuscetíveis de serem adquiridos por meio de usucapião.


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