segunda-feira, 11 de novembro de 2024
Durante uma live, um influenciador digital proferiu ofensas contra outra influenciadora. A vítima tem o direito de apresentar queixa-crime especificamente contra esse influenciador, independentemente de outras pessoas terem expressado opiniões similares anteriormente
AÇÃO PENAL E PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE
Conceito
Quando estudamos o assunto “ação
penal” um tema muito importante é o princípio da indivisibilidade.
O princípio da indivisibilidade
significa que a ação penal deve ser proposta contra todos os autores e
partícipes do delito.
Ex: se o crime foi cometido por
“A” e por “B”, a ação penal deverá ser ajuizada contra os dois, não podendo, em
regra, ser proposta apenas contra um deles, salvo se houver algum motivo
jurídico que autorize (um deles já morreu, é doente mental, é menor de 18 anos,
não há provas contra ele etc.).
Previsão
O princípio da indivisibilidade está previsto no art. 48 do
CPP:
Art. 48. A queixa contra qualquer
dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público
velará pela sua indivisibilidade.
Repare que o art. 48 acima fala
em “queixa” (nome da peça da ação penal privada). Diante disso, indaga-se: o
princípio da indivisibilidade aplica-se também para a ação penal pública
(“denúncia”)?
Sobre o tema,
existem duas correntes principais:
SIM |
NÃO |
O princípio da indivisibilidade
é aplicado tanto para as ações penais privadas como para as ações penais
públicas. |
O princípio da indivisibilidade
é aplicado apenas para as ações penais privadas, conforme prevê o art. 48 do
CPP. |
Havendo indícios de autoria
contra os coautores e partícipes, o Ministério Público deverá denunciar todos
eles. |
Ação penal privada: princípio
da INdivisibilidade. Ação penal pública: princípio
da DIvisibilidade. |
É o entendimento de Renato
Brasileiro, Fernando da Costa Tourinho Filho, Aury Lopes Jr. e outros. |
É a posição que prevalece no
STJ e STF. |
O que acontece se a ação penal
privada não for proposta contra todos? O que ocorre se um dos autores ou
partícipes, podendo ser processado pelo querelante, ficar de fora? Qual é a
consequência do desrespeito ao princípio da indivisibilidade?
Depende:
1) Se a omissão foi VOLUNTÁRIA
(DELIBERADA):
Se ficar demonstrado que o
querente (aquele que propõe ação penal privada) deixou, de forma deliberada, de
oferecer a queixa contra um ou mais autores ou partícipes, neste caso, deve-se
entender que houve de sua parte uma renúncia tácita.
Ex: João e Pedro praticaram o
crime contra Maria. Ela propõe a queixa apenas contra João e deixou Pedro de
fora porque é seu amigo. Entende-se que ela renunciou tacitamente ao seu
direito de processar Pedro.
Ocorre que Maria não se apercebeu
que renunciando o direito de queixa em relação a Pedro, isso também beneficiará
João. Isso porque o CPP prevê que “a renúncia ao exercício do direito de
queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá” (art. 49).
Em suma, se o querelante deixou,
deliberadamente, de oferecer queixa contra um dos autores ou partícipes, o juiz
deverá rejeitar a queixa e declarar a extinção da punibilidade para todos
(arts. 104 e 109, V, do CP). Todos ficarão livres do processo.
2) Se a omissão foi
INVOLUNTÁRIA:
Se ficar demonstrado que a
omissão de algum nome foi involuntária (ex: o crime foi praticado por João e
Pedro, mas o querelante não sabia da participação deste último), então, neste
caso, o Ministério Público deverá requerer a intimação do querelante para que
ele faça o aditamento da queixa-crime e inclua os demais coautores ou
partícipes que ficaram de fora.
• Se o querelante fizer o
aditamento: o processo continuará normalmente.
• Se o querelante se recusar
expressamente ou permanecer inerte: o juiz deverá entender que houve renúncia
(art. 49 do CPP). Assim, deverá extinguir a punibilidade em relação a todos os
envolvidos.
Obs: o querelante só poderá
incluir o outro autor/partícipe se ainda estiver dentro do prazo decadencial de
6 meses.
A explicação acima foi baseada na
obra de LIMA, Renato Brasileiro de. Manual
de Processo Penal. Salvador: Juspodivm.
Veja um precedente do STJ que
corrobora essa ideia:
(...) O reconhecimento da renúncia tácita ao direito de
queixa exige a demonstração de que a não inclusão de determinados autores ou
partícipes na queixa-crime se deu de forma deliberada pelo querelante.
STJ. 5ª Turma. HC 186.405/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado
em 02/12/2014.
EXPLICAÇÃO DO JULGADO:
Imagine a seguinte situação
hipotética:
Jonathan é um influenciador
digital com milhões de seguidores nas redes sociais.
Em outubro de 2020, Jonathan
realizou uma live em seu perfil do Instagram onde fez diversas declarações
ofensivas contra Carla, uma figura pública.
Jonathan acusou Carla de
corrupção, chamou-a de “ladra” e fez insinuações sobre sua vida pessoal.
Durante a live, Jonathan
mencionou que havia recebido mensagens privadas de alguns seguidores com
informações e opiniões negativas sobre Carla, mas não revelou a identidade
desses seguidores.
Jonathan incorporou essas
informações em seus próprios comentários durante a transmissão ao vivo.
Carla, sentindo-se difamada e injuriada, ingressou com queixa-crime
contra Jonathan em fevereiro de 2021, dentro do prazo decadencial de 6 meses:
Código de Processo Penal
Art. 38. Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou
seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se
não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber
quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o
prazo para o oferecimento da denúncia.
Parágrafo único. Verificar-se-á a decadência do direito de
queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24,
parágrafo único, e 31.
Na queixa-crime, Carla afirmou
que João teria praticado os crimes de injúria (art. 140 do CP) e de difamação
(art. 139 do CP).
A queixa-crime foi baseada
especificamente nas declarações feitas por Jonathan durante a live de outubro
de 2020.
A defesa do querelado impetrou
habeas corpus alegando que Carla deveria ter incluído na queixa-crime os
seguidores que enviaram as mensagens privadas a Jonathan, argumentando que a
não inclusão desses indivíduos violava o princípio da indivisibilidade da ação
penal privada.
A omissão de Carla em processar os outros indivíduos
configuraria renúncia ao direito de queixa contra João, acarretando a extinção
da punibilidade, na forma do art. 107, V, do CP:
Art. 107 - Extingue-se a
punibilidade:
(...)
V - pela renúncia do direito de
queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada;
O STJ concordou com os
argumentos da defesa?
NÃO.
O princípio da indivisibilidade está previsto no art. 48 do
CPP:
Art. 48. A queixa contra qualquer
dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público
velará pela sua indivisibilidade.
O princípio da indivisibilidade
da ação penal privada destina-se a evitar o uso do Poder Judiciário para
propósitos de vingança privada.
Vale ressaltar que apenas a coautoria e a participação estão
sujeitas ao princípio da indivisibilidade, conforme se percebe pelo art. 49 do
CPP:
Art. 49. A renúncia ao exercício do direito de queixa,
em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá.
A definição dos contextos dos
crimes contra a honra é fundamental para distinguir entre autoria colateral e
coautoria/participação.
O princípio da indivisibilidade não
se aplica quando os crimes são autônomos e ocorrem em contextos diferentes.
No caso em questão, as ofensas
feitas pelo querelado durante uma live não configuram coautoria com terceiros
que, em momentos distintos, tenham manifestado opiniões semelhantes. Assim, não
se pode falar em renúncia tácita por parte da querelante quanto ao direito de
queixa contra outras pessoas que não foram identificadas ou estão identificadas
de forma precária.
Não seria razoável exigir que a
querelante investigasse centenas de pessoas, sob pena de perder o direito de
processar o querelado dentro do prazo decadencial de seis meses, sendo ele o
principal responsável pela campanha difamatória específica.
Portanto, considerando o
princípio da indivisibilidade e a ausência de provas de seletividade na ação
penal, a querelante não pode ser impedida de exercer seu direito de queixa
contra o querelado, mesmo que não tenha apresentado queixa contra outros possíveis
autores das ofensas em contextos diferentes.
Em suma:
Não configurada coautoria ou participação nos crimes
contra honra, mas delitos autônomos em contextos distintos, a ausência de
oferecimento de queixa-crime contra todos os que proferiram ofensas contra a
vítima não afronta o princípio da indivisibilidade da ação penal privada.
STJ. 5ª
Turma. AgRg no RHC 188.454-RJ, Rel. Min. Messod Azulay Neto, Rel. para acórdão Min.
Joel Ilan Paciornik, julgado em 27/8/2024 (Info 826).
No mesmo sentido:
Quando várias pessoas denigrem a imagem de alguém, via
internet, cada uma se utilizando de um comentário, não há coautoria ou
participação, mas vários delitos autônomos, unidos no máximo por conexão
probatória.
A falta de inclusão de autor de comentário autônomo na
queixa-crime não configura, pois, renúncia tácita ao direito de queixa.
STJ. Corte Especial. APn 895/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi,
julgado em 15/5/2019.