Imagine a seguinte situação
hipotética:
João era prefeito de um Município
do interior do Estado.
Ele determinou a contatação, sem
licitação, do escritório de advocacia de seu amigo íntimo Pedro para prestar
serviços jurídicos à prefeitura.
Além disso, houve evidências de
que o serviço contratado não foi completamente prestado, apesar de valores
consideráveis terem sido pagos ao escritório.
O Ministério Público instaurou um
inquérito civil para investigar as irregularidades e, diante dos diversos
documentos e depoimentos coletados, ingressou com ação de improbidade
administrativa contra João.
O juízo de primeiro grau condenou
o réu utilizando, como fundamentação, as provas colhidas no inquérito civil. A
defesa recorreu, mas a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.
Ainda inconformado, João interpôs
recurso especial argumentando que:
• as provas colhidas durante o
inquérito civil foram produzidas de maneira unilateral pelo Ministério Público,
sem a participação direta do réu. Logo, não poderiam ser usadas como fundamento
para condenação;
• as provas produzidas durante
essa fase investigativa não respeitam o contraditório nem a ampla defesa.
Diante disso, deveriam ser relativizadas ou desconsideradas.
Em resumo, o recorrente alegou
violação à regra do ônus da prova, considerando que sua condenação ocorreu,
exclusivamente, com base no inquérito civil, composto de documentos colhidos de
modo informal e unilateral pelo Ministério Público, sem observância dos
princípios do contraditório e da ampla defesa.
O STJ concordou com os
argumentos de João?
NÃO.
O que é um inquérito civil?
O inquérito civil é um
procedimento administrativo, investigativo, de natureza inquisitorial,
instaurado pelo membro do Ministério Público com a finalidade de apurar fatos
que podem ser objeto de uma ação civil pública.
Características:
• procedimento administrativo;
• investigativo;
• inquisitorial (para a maioria, não existe
contraditório e ampla defesa);
• unilateral;
• não obrigatório (facultativo);
• público; e
• exclusivo do Ministério Público (só ele
pode instaurar).
Regulamentação
• Art. 129, III, da CF/88;
• Art. 8º da Lei nº 7.347/85 (Lei
de Ação Civil Pública);
• Art. 6º da Lei nº 7.853/89
(pessoas com deficiência);
• Art. 201, V, da Lei nº 8.069/90
(ECA);
• Art. 6º, VII, da LC nº75/93
(Lei do MPU);
• Art. 25, IV, da Lei nº 8.625/93
(Lei orgânica do MP);
• Art. 74, I, da Lei nº
10.741/2003 (Estatuto do Idoso);
• Resolução nº 23/2007-CNMP.
Valor do inquérito civil
Conforme explica Hugo Nigro Mazzilli:
“O valor do
inquérito civil como prova em juízo decorre de ser uma investigação pública e
de caráter oficial. Quando regularmente realizado, o que nele se apurar tem
validade e eficácia em juízo, como as perícias e inquirições. Ainda que sirva
essencialmente o inquérito civil para preparar a propositura da ação civil
pública, as informações nele contidas podem concorrer para formar ou reforçar a
convicção do juiz, desde que não colidam com provas de maior hierarquia, como
aquelas colhidas sob as garantias do contraditório” (MAZZILLI, Hugo Nigri. O
Inquérito Civil. São Paulo: Saraiva, p. 53).
No caso concreto, João não
produziu qualquer prova que desconstituísse as conclusões aferidas em sede de
inquérito cível e corroboradas em juízo. Assim, não havendo contraprova que
afaste a presunção relativa das provas produzidas no inquérito civil, elas
devem ser preservadas.
Em suma:
As provas colhidas em inquérito
civil têm valor probatório relativo, podendo o magistrado valer-se de suas
informações para formar ou reforçar sua convicção, desde que não colidam com
provas de hierarquia superior, como aquelas colhidas sob as garantias do
contraditório.
STJ. 2ª Turma. AREsp 1.417.207-MG, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em
17/9/2024 (Info 826).
No mesmo sentido:
As provas produzidas no inquérito civil público têm valor
probatório relativo, mas só devem ser afastadas quando há contraprova produzida
sob a vigilância do contraditório.
STJ. 3ª Turma. REsp n. 2.080.523/SP, Rel. Min. Nancy
Andrighi, julgado em 22/8/2023.