Dizer o Direito

sábado, 23 de novembro de 2024

A pessoa comprou um imóvel sabendo que se tratava de um loteamento irregular. Ela poderá posteriormente pedir rescisão do contrato alegando que a compra e venda é nula?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João era proprietário de uma grande área de terra na zona urbana.

Ele dividiu informalmente essa área em vários lotes menores para vender cada um deles separadamente.

Ocorre que João não fez o devido registro no cartório nem obteve aprovação do Município para isso, caracterizando, portanto, um loteamento irregular/clandestino.

Regina se interessou por um dos lotes. Ela foi informada por João que o loteamento era irregular. Mesmo ciente da irregularidade, Regina decidiu comprar o lote.

João e Regina firmaram um contrato particular de compra e venda. Neste ajuste havia uma cláusula expressamente mencionando que o lote não estava regularizado.

Após alguns meses, Regina descobriu que a falta de regularização do lote trazia várias consequências negativas considerando que:

• ela não conseguia financiamento bancário dando o imóvel em garantia;

• ela não conseguia obter alvará de construção na prefeitura para edificar no local;

• havia risco de problemas com infraestrutura básica (água, luz, esgoto);

• não havia como conseguir o registro definitivo da propriedade.

 

Diante desse cenário, Regina decidiu ingressar com ação contra João pedindo a anulação do contrato de compra e venda e a devolução do dinheiro pago. Ela argumentou que, mesmo ciente da irregularidade, o negócio deveria ser considerado nulo, pois a lei proíbe a venda de lotes em áreas sem o devido registro.

João contestou o pedido alegando que Regina tinha ciência da irregularidade do lote ao firmar o negócio jurídico, configurando o pedido de nulidade como um venire contra factum proprium. Argumentou que deveria ser respeitada a liberdade contratual dos particulares, que, de forma livre e espontânea, decidiram estabelecer a compra e venda de um lote não regularizado.

 

A discussão chegou até o STJ. O negócio jurídico foi declarado nulo?

SIM.

A Lei nº 6.766/1979 estabelece normas para o loteamento e desmembramento de áreas urbanas, com o objetivo de promover a expansão ordenada do solo urbano, evitar irregularidades e garantir infraestrutura básica. Essa lei tem importância social e ambiental, pois o loteamento irregular causa problemas como a desorganização das vias, dificultando o acesso a serviços essenciais, além de contribuir para erosão, alagamentos, poluição de rios e lençóis freáticos, ausência de áreas públicas e expansão urbana excessiva, que aumenta os custos para o poder público. (PINTO, Victor Carvalho. Ocupação irregular do solo urbano: o papel da legislação federal. Brasília: Senado Federal, Consultoria Legislativa, 2003, p. 3)

Além disso, a venda de loteamentos irregulares pode resultar em enriquecimento indevido em prejuízo dos compradores – geralmente pessoas com menor poder aquisitivo e que buscam a casa própria –, pela falta de infraestrutura básica exigida pela legislação. (MIRANDA, Marcos Paulo. Responsáveis por loteamentos indevidos podem ter bens sequestrados. Consultor Jurídico, 2019)

Em relação à venda de imóveis irregulares, é importante entender que, conforme a Lei 6.766/79, as normas sobre fracionamento de solo aplicam-se independentemente de o vendedor ser do ramo imobiliário ou se a relação é de consumo. A interpretação da norma deve ser ampla, pois a simples possibilidade de venda irregular já ameaça a regularidade da expansão urbana. (JACOMINO, Sérgio. Revista de Direito Imobiliário: RDI, v. 22, n. 47, jul./dez. 1999)

Com isso, a Lei nº 6.766/79 aplica-se a contratos entre particulares, inclusive em casos nos quais o comprador sabe da irregularidade.

O art. 37 da Lei proíbe vender ou prometer venda de loteamentos ou desmembramentos não registrados:

Art. 37. É vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado.

 

Embora a lei não estabeleça uma sanção específica, essa prática é expressamente proibida, o que torna o contrato nulo com base no art. 166, VII, do Código Civil:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

(...)

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

 

Além disso, o objeto do contrato de compra e venda de terreno irregular é considerado ilícito, atraindo a aplicação do art. 166, II, do Código Civil, justificando a nulidade do negócio jurídico:

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

(...)

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

 

A ilicitude do objeto decorre do propósito da Lei nº 6.766/79, que visa evitar os impactos negativos ambientais e sociais do loteamento irregular.

Por se tratar de nulidade, o fato de o comprador saber da irregularidade não valida o negócio, e os envolvidos só podem retornar à situação anterior (status quo ante).

Assim, sem o registro do imóvel, a venda de loteamento não registrado, ainda que entre partes cientes, é proibida e tem objeto ilícito, sendo, portanto, nula.

 

Em suma:

A compra e venda de loteamento não registrado é nula, independentemente de ter sido firmada entre particulares que estavam cientes da irregularidade do imóvel no momento do negócio jurídico. 

STJ. 3ª Turma. REsp 2.166.273-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/8/2024 (Info 829).


Dizer o Direito!