Imagine a seguinte situação
hipotética:
João era proprietário de uma
grande área de terra na zona urbana.
Ele dividiu informalmente essa
área em vários lotes menores para vender cada um deles separadamente.
Ocorre que João não fez o devido
registro no cartório nem obteve aprovação do Município para isso,
caracterizando, portanto, um loteamento irregular/clandestino.
Regina se interessou por um dos
lotes. Ela foi informada por João que o loteamento era irregular. Mesmo ciente
da irregularidade, Regina decidiu comprar o lote.
João e Regina firmaram um
contrato particular de compra e venda. Neste ajuste havia uma cláusula
expressamente mencionando que o lote não estava regularizado.
Após alguns meses, Regina
descobriu que a falta de regularização do lote trazia várias consequências
negativas considerando que:
• ela não conseguia financiamento
bancário dando o imóvel em garantia;
• ela não conseguia obter alvará
de construção na prefeitura para edificar no local;
• havia risco de problemas com
infraestrutura básica (água, luz, esgoto);
• não havia como conseguir o registro
definitivo da propriedade.
Diante desse cenário, Regina decidiu
ingressar com ação contra João pedindo a anulação do contrato de compra e venda
e a devolução do dinheiro pago. Ela argumentou que, mesmo ciente da
irregularidade, o negócio deveria ser considerado nulo, pois a lei proíbe a
venda de lotes em áreas sem o devido registro.
João contestou o pedido alegando
que Regina tinha ciência da irregularidade do lote ao firmar o negócio
jurídico, configurando o pedido de nulidade como um venire contra factum
proprium. Argumentou que deveria ser respeitada a liberdade contratual dos
particulares, que, de forma livre e espontânea, decidiram estabelecer a compra
e venda de um lote não regularizado.
A discussão chegou até o STJ. O negócio jurídico foi declarado nulo?
SIM.
A Lei nº 6.766/1979 estabelece normas para o loteamento e desmembramento
de áreas urbanas, com o objetivo de promover a expansão ordenada do solo
urbano, evitar irregularidades e garantir infraestrutura básica. Essa lei tem
importância social e ambiental, pois o loteamento irregular causa problemas
como a desorganização das vias, dificultando o acesso a serviços essenciais,
além de contribuir para erosão, alagamentos, poluição de rios e lençóis
freáticos, ausência de áreas públicas e expansão urbana excessiva, que aumenta
os custos para o poder público. (PINTO, Victor Carvalho. Ocupação irregular
do solo urbano: o papel da legislação federal. Brasília: Senado Federal,
Consultoria Legislativa, 2003, p. 3)
Além disso, a venda de loteamentos irregulares pode resultar em
enriquecimento indevido em prejuízo dos compradores – geralmente pessoas com
menor poder aquisitivo e que buscam a casa própria –, pela falta de
infraestrutura básica exigida pela legislação. (MIRANDA, Marcos Paulo. Responsáveis
por loteamentos indevidos podem ter bens sequestrados. Consultor Jurídico,
2019)
Em relação à venda de imóveis irregulares, é importante entender que,
conforme a Lei 6.766/79, as normas sobre fracionamento de solo aplicam-se
independentemente de o vendedor ser do ramo imobiliário ou se a relação é de
consumo. A interpretação da norma deve ser ampla, pois a simples possibilidade
de venda irregular já ameaça a regularidade da expansão urbana. (JACOMINO,
Sérgio. Revista de Direito Imobiliário: RDI, v. 22, n. 47, jul./dez.
1999)
Com isso, a Lei nº 6.766/79 aplica-se a contratos entre particulares,
inclusive em casos nos quais o comprador sabe da irregularidade.
O art. 37 da Lei proíbe vender ou prometer venda de
loteamentos ou desmembramentos não registrados:
Art. 37. É vedado vender ou
prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado.
Embora a lei não estabeleça uma sanção específica, essa
prática é expressamente proibida, o que torna o contrato nulo com base no art.
166, VII, do Código Civil:
Art. 166. É nulo o negócio
jurídico quando:
(...)
VII - a lei taxativamente o
declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.
Além disso, o objeto do contrato de compra e venda de
terreno irregular é considerado ilícito, atraindo a aplicação do art. 166, II,
do Código Civil, justificando a nulidade do negócio jurídico:
Art. 166. É nulo o negócio
jurídico quando:
(...)
II - for ilícito, impossível ou
indeterminável o seu objeto;
A ilicitude do objeto decorre do propósito da Lei nº 6.766/79, que visa
evitar os impactos negativos ambientais e sociais do loteamento irregular.
Por se tratar de nulidade, o fato de o comprador saber da irregularidade
não valida o negócio, e os envolvidos só podem retornar à situação anterior
(status quo ante).
Assim, sem o registro do imóvel, a venda de loteamento não registrado,
ainda que entre partes cientes, é proibida e tem objeto ilícito, sendo,
portanto, nula.
Em suma:
A compra e venda de loteamento não registrado é nula,
independentemente de ter sido firmada entre particulares que estavam cientes da
irregularidade do imóvel no momento do negócio jurídico.
STJ. 3ª
Turma. REsp 2.166.273-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 10/8/2024 (Info
829).