Dizer o Direito

domingo, 10 de novembro de 2024

A obrigação de fazer pode ser convertida em perdas e danos, mesmo sem pedido expresso?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João sofria de um problema de arritmia cardíaca.

O médico que o acompanhava, entendendo que havia risco de morte súbita do paciente, prescreveu a realização, em caráter de urgência, de um determinado tratamento cardíaco.

João ajuizou ação de obrigação de fazer contra o Estado-membro pedindo que o poder público fosse compelido a viabilizar o tratamento. Não houve pedido para o pagamento de qualquer quantia.

Na petição inicial, o autor requereu a concessão de tutela provisória de urgência.

O juízo deferiu a tutela provisória.

Ocorre que, mesmo com a ordem judicial, a administração pública demorou para cumprir.

Diante da demora em viabilizar o tratamento e, com receio de sofrer um ataque cardíaco, João decidiu realizá-lo às suas próprias expensas.

Logo em seguida, João peticionou nos autos informando que, por necessidade de saúde, o tratamento já havia sido realizado na rede particular. Requereu, então, que o pedido cominatório (obrigação de fazer) fosse convertido em perdas e danos, já que o cumprimento da tutela específica pelo réu (realização do tratamento) teria se tornado impossível.

O Juiz, no entanto, prolatou sentença extinguindo o processo sem resolução do mérito, por “perda superveniente do interesse processual”, sob o fundamento de já ter sido realizado o tratamento postulado e não haver pedido expresso de ressarcimento na petição inicial.

A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial sustentando que a conversão da ação em perdas e danos, quando a tutela específica ou obtenção do resultado prático se tornarem impossíveis, decorre de autorização legal (art. 461, § 1º, do CPC), não sendo necessário pedido na petição inicial.

 

O STJ concordou com os argumentos do autor/recorrente?

SIM.

 

Caso a mora do devedor torne inviável a concessão da tutela específica, será possível converter a obrigação de fazer em perdas e danos, mesmo sem pedido do titular do direito subjetivo?

SIM.

As prestações de fazer e não fazer devem, prioritariamente, ser objeto de tutela específica.

As obrigações de fazer ou não fazer somente podem ser convertidas em prestação pecuniária em duas hipóteses:

1) em caso de pedido expresso do credor, mesmo que ainda disponível o cumprimento na forma específica; ou

2) quando não for possível a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente ao adimplemento voluntário.

 

O CPC/2015 trata sobre isso no art. 499, nos seguintes termos:

Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.    (Incluído pela Lei nº 14.833, de 2024)

 

Esse dispositivo deve ser analisado em conjunto com a disciplina do Código Civil acerca das obrigações de fazer, merecendo destaque, por oportuno, as seguintes disposições.

Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível.

Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.

Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

[…]

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado.

 

Qual é o momento dessa conversão?

Acerca do momento da conversão da obrigação em perdas e danos, Leonardo Carneiro da Cunha ensina:

“A tutela específica pode ser convertida em perdas e danos em 4 momentos:

(a) o autor pode optar pela conversão desde a petição inicial que instaurou a fase cognitiva do procedimento, caso em que o pedido não terá por objeto a tutela específica, mas o seu equivalente pecuniário,

(b) a conversão pode ocorrer ainda na fase de conhecimento, antes de transitada em julgado a decisão de mérito, observado o contraditório;

(c) a conversão pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão de mérito, podendo o credor converter a prestação originária em prestação pecuniária e dar início à fase de cumprimento para pagamento de quantia;

(d) a conversão pode ocorrer durante a fase de cumprimento.”

(Código de Processo Civil Comentado, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 778).

 

À vista disso, o STJ firmou entendimento segundo a qual é possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente do pedido do titular do direito subjetivo, inclusive em fase de cumprimento de sentença, quando verificada a impossibilidade de cumprimento da tutela específica. Nesse sentido:

A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que é possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente de pedido explícito e mesmo em fase de cumprimento de sentença, se verificada a impossibilidade de cumprimento da obrigação específica.

STJ. 1ª Turma. AgInt no RMS 39.066/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 12/4/2021.

 

Vale ressaltar, ainda, que o STJ entende que é possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos face à sua impossibilidade, nas hipóteses em que verificada a negligência ou a demora do demandado no cumprimento da tutela específica:

(...) 2. O Tribunal a quo condenou a agravante ao pagamento de indenização por perdas e danos, em razão de sua negligência quanto ao fornecimento de dados requeridos pelo Juízo, mesmo diante da possibilidade técnica de realizar a diligência.

3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme quanto à possibilidade de conversão do pedido de obrigação de fazer em perdas e danos quando impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente, como meio viabilizador da eficácia do julgamento. (...)

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.205.100/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 19/3/2019.

 

Portanto, conclui-se que, caso a mora do devedor torne inviável a concessão da tutela específica pleiteada na inicial, pode a obrigação ser convertida, ex officio, e em qualquer fase processual, em reparação por perdas e danos, sem prejuízo da multa fixada para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação, enquanto perdurar sua viabilidade.

 

Entendimento contrário privilegiaria a conduta omissiva dos entes públicos

Importante destacar que pensamento diverso privilegiaria a conduta omissiva dos entes públicos, obrigando o autor a adotar medidas judiciais coercitivas para suprir a mora da Fazenda Pública, em detrimento da potencial urgência no atendimento de sua saúde.

 

Em suma:

É possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente do pedido do titular do direito subjetivo, em qualquer fase processual, quando verificada a impossibilidade de cumprimento da tutela específica. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.121.365-MG, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 3/9/2024 (Info 826).


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