Imagine a seguinte situação
hipotética:
João sofria de um problema de arritmia cardíaca.
O médico que o acompanhava, entendendo que havia risco de
morte súbita do paciente, prescreveu a realização, em caráter de urgência, de
um determinado tratamento cardíaco.
João ajuizou ação de obrigação de fazer contra o Estado-membro
pedindo que o poder público fosse compelido a viabilizar o tratamento. Não
houve pedido para o pagamento de qualquer quantia.
Na petição inicial, o autor requereu a concessão de
tutela provisória de urgência.
O juízo deferiu a tutela provisória.
Ocorre que, mesmo com a ordem judicial, a administração
pública demorou para cumprir.
Diante da demora em viabilizar o tratamento e, com receio
de sofrer um ataque cardíaco, João decidiu realizá-lo às suas próprias expensas.
Logo em seguida, João peticionou nos autos informando que,
por necessidade de saúde, o tratamento já havia sido realizado na rede
particular. Requereu, então, que o pedido cominatório (obrigação de fazer) fosse
convertido em perdas e danos, já que o cumprimento da tutela específica pelo
réu (realização do tratamento) teria se tornado impossível.
O Juiz, no entanto, prolatou sentença extinguindo o
processo sem resolução do mérito, por “perda superveniente do interesse
processual”, sob o fundamento de já ter sido realizado o tratamento postulado e
não haver pedido expresso de ressarcimento na petição inicial.
A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.
Ainda inconformado, João interpôs recurso especial
sustentando que a conversão da ação em perdas e danos, quando a tutela
específica ou obtenção do resultado prático se tornarem impossíveis, decorre de
autorização legal (art. 461, § 1º, do CPC), não sendo necessário pedido na
petição inicial.
O STJ concordou
com os argumentos do autor/recorrente?
SIM.
Caso a mora do devedor torne inviável a concessão
da tutela específica, será possível converter a obrigação de fazer em perdas e
danos, mesmo sem pedido do titular do direito subjetivo?
SIM.
As
prestações de fazer e não fazer devem, prioritariamente, ser objeto de tutela
específica.
As
obrigações de fazer ou não fazer somente podem ser convertidas em prestação
pecuniária em duas hipóteses:
1) em
caso de pedido expresso do credor, mesmo que ainda disponível o cumprimento na
forma específica; ou
2) quando
não for possível a obtenção da tutela específica ou do resultado prático
equivalente ao adimplemento voluntário.
O CPC/2015 trata sobre isso no art. 499, nos seguintes
termos:
Art. 499. A obrigação somente
será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a
tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.
Parágrafo único. Nas hipóteses de
responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº
10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade
subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos,
o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela
específica. (Incluído pela Lei nº
14.833, de 2024)
Esse dispositivo deve ser analisado em conjunto com a
disciplina do Código Civil acerca das obrigações de fazer, merecendo destaque,
por oportuno, as seguintes disposições.
Art. 247. Incorre na obrigação de
indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou
só por ele exequível.
Art. 248. Se a prestação do fato
tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por
culpa dele, responderá por perdas e danos.
Art. 249. Se o fato puder ser
executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do
devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível.
Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de
autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois
ressarcido.
[…]
Art. 389. Não cumprida a
obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização
monetária e honorários de advogado.
Qual é o momento dessa conversão?
Acerca do momento da conversão da obrigação em perdas e
danos, Leonardo Carneiro da Cunha ensina:
“A
tutela específica pode ser convertida em perdas e danos em 4 momentos:
(a)
o autor pode optar pela conversão desde a petição inicial que instaurou a fase
cognitiva do procedimento, caso em que o pedido não terá por objeto a tutela
específica, mas o seu equivalente pecuniário,
(b)
a conversão pode ocorrer ainda na fase de conhecimento, antes de transitada em
julgado a decisão de mérito, observado o contraditório;
(c)
a conversão pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão de mérito,
podendo o credor converter a prestação originária em prestação pecuniária e dar
início à fase de cumprimento para pagamento de quantia;
(d)
a conversão pode ocorrer durante a fase de cumprimento.”
(Código
de Processo Civil Comentado, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 778).
À vista
disso, o STJ firmou entendimento segundo a qual é possível a conversão da
obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente do pedido do titular do
direito subjetivo, inclusive em fase de cumprimento de sentença, quando
verificada a impossibilidade de cumprimento da tutela específica. Nesse
sentido:
A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que é
possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente
de pedido explícito e mesmo em fase de cumprimento de sentença, se verificada a
impossibilidade de cumprimento da obrigação específica.
STJ. 1ª
Turma. AgInt no RMS 39.066/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em
12/4/2021.
Vale
ressaltar, ainda, que o STJ entende que é possível a conversão da obrigação de
fazer em perdas e danos face à sua impossibilidade, nas hipóteses em que
verificada a negligência ou a demora do demandado no cumprimento da tutela
específica:
(...) 2. O Tribunal a quo condenou a agravante ao pagamento
de indenização por perdas e danos, em razão de sua negligência quanto ao
fornecimento de dados requeridos pelo Juízo, mesmo diante da possibilidade
técnica de realizar a diligência.
3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme
quanto à possibilidade de conversão do pedido de obrigação de fazer em perdas e
danos quando impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático
correspondente, como meio viabilizador da eficácia do julgamento. (...)
STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.205.100/SP, Rel. Min. Sérgio
Kukina, julgado em 19/3/2019.
Portanto,
conclui-se que, caso a mora do devedor torne inviável a concessão da tutela
específica pleiteada na inicial, pode a obrigação ser convertida, ex officio,
e em qualquer fase processual, em reparação por perdas e danos, sem prejuízo da
multa fixada para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação,
enquanto perdurar sua viabilidade.
Entendimento contrário privilegiaria a conduta
omissiva dos entes públicos
Importante
destacar que pensamento diverso privilegiaria a conduta omissiva dos entes
públicos, obrigando o autor a adotar medidas judiciais coercitivas para suprir
a mora da Fazenda Pública, em detrimento da potencial urgência no atendimento
de sua saúde.
Em suma:
É possível a conversão da obrigação de fazer em
perdas e danos, independentemente do pedido do titular do direito subjetivo, em
qualquer fase processual, quando verificada a impossibilidade de cumprimento da
tutela específica.
STJ. 1ª
Turma. REsp 2.121.365-MG, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 3/9/2024 (Info
826).