Dizer o Direito

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Mesmo com autorização do Município e ocupação de boa-fé, quem utiliza área da União irregularmente deve pagar indenização pela posse ilícita.

Imagine a seguinte situação hipotética:

João é o proprietário do “Quiosque do João”, localizado na faixa de areia da Praia Grande, em Arraial do Cabo (RJ).

Durante uma vistoria no local realizada pela Gerência Regional do Patrimônio da União (GRPU), foi verificado que o quiosque estava situado em um terreno de marinha, caracterizando uma ocupação irregular, já que, segundo a Constituição Federal, os terrenos de marinha são considerados bem da União:

Art. 20. São bens da União:

(...)

VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos;

 

João foi notificado para desocupar a área, mas não atendeu à determinação.

Diante desse cenário, em 02/02/2009, a União ajuizou, contra João, ação reivindicatória cumulada com pedido de indenização, buscando imitir-se na posse de área pública indevidamente ocupada pelo réu.

A indenização foi pleiteada com base no parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/98, que prevê a imissão da União na posse de imóveis ocupados irregularmente e a devida indenização pela posse ilícita:

Lei nº 9.636/98 (dispõe sobre a regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União)

(...)

Art. 10. Constatada a existência de posses ou ocupações em desacordo com o disposto nesta Lei, a União deverá imitir-se sumariamente na posse do imóvel, cancelando-se as inscrições eventualmente realizadas.

Parágrafo único. Até a efetiva desocupação, será devida à União indenização pela posse ou ocupação ilícita, correspondente a 10% (dez por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, por ano ou fração de ano em que a União tenha ficado privada da posse ou ocupação do imóvel, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

 

O réu contestou, afirmando ter autorização municipal para o uso do espaço público. Argumentou, ainda, que o quiosque funciona no local há 30 anos.

O Juiz Federal julgou os pedidos parcialmente procedentes:

a) determinou a imissão definitiva da União na posse da área ocupada irregularmente;

b) rejeitou o pedido da indenização prevista no parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/98.

 

O TRF da 2ª Região manteve a sentença alegando que a indenização não era devida, pois foi comprovada a boa-fé do réu, que possuía autorização de uso concedida pelo município.

Inconformada, a União interpôs recurso especial, argumentando que a indenização prevista no art. 10 da Lei nº 9.636/98 é objetiva, não dependendo da análise do elemento subjetivo do causador do ilícito. Segundo a União, o fundamento para a indenização é a privação do uso público do bem, que foi inviabilizado pela ocupação irregular.

 

O STJ deu provimento ao recurso da União? João foi condenado a pagar a indenização?

SIM.

Veja novamente o que diz o parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/1998:

Art. 10. (...)

Parágrafo único. Até a efetiva desocupação, será devida à União indenização pela posse ou ocupação ilícita, correspondente a 10% (dez por cento) do valor atualizado do domínio pleno do terreno, por ano ou fração de ano em que a União tenha ficado privada da posse ou ocupação do imóvel, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.

 

Repare que esse dispositivo não condiciona o pagamento da indenização à presença de má-fé do ocupante irregular do bem público.

Justamente por causa disso, o STJ tem o entendimento no sentido de que quem ocupou irregularmente bem da União deverá pagar a indenização prevista no parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/1998, “independentemente se agiu ou não de boa-fé” (STJ. 2ª Turma. AgInt no REsp 2.108.652/PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 27/5/2024).

Portanto, constatada a existência de ocupação irregular, é devida a indenização prevista no parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/1998, pela posse ou ocupação ilícita, independentemente da comprovação de boa-fé do particular, inclusive quando detém autorização de uso outorgada por quem não detinha poderes para tanto.

 

O dispositivo fala que a indenização é devida “até a efetiva desocupação”. Esse é o termo final para se calcular a indenização. E qual é o termo inicial? A indenização do parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/1998 é devida desde quando?

O termo inicial da indenização deve corresponder à data em que o ente federal notificou o particular acerca da ilegalidade da ocupação ou do ajuizamento da ação reivindicatória.

 

Em suma:

Constatada a existência de posse ou ocupação ilegal em um bem da União, a lei impõe três consequências:

1) a União deverá imitir-se sumariamente na posse do imóvel (em outras palavras, a pessoa deverá desocupar a área e a União assumirá a posse);

2) deverá ser canceladas as inscrições eventualmente realizadas;

3) o possuidor ou ocupante irregular pagará uma indenização à União correspondente a 10% do valor do terreno, por ano (ou parte de ano) em que a União ficou sem poder usar o imóvel.

Isso está previsto no art. 10, caput e parágrafo único da Lei nº 9.636/1998.

Quem ocupou irregularmente bem da União deverá pagar a indenização prevista no parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/1998, independentemente se agiu ou não de boa-fé.

Assim, mesmo que o indivíduo tenha ocupado o imóvel da União com autorização do Município, ele deverá pagar a indenização.

O termo inicial da indenização deve corresponder à data em que o ente federal notificou o particular acerca da ilegalidade da ocupação ou do ajuizamento da ação reivindicatória.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.898.029-RJ, Rel. Min. Afrânio Vilela, julgado em 17/9/2024 (Info 828).


terça-feira, 19 de novembro de 2024

Se o servidor público cometer uma falta disciplinar durante um surto psicótico, quando estava totalmente incapaz de compreender que a ação era ilícita, ele não deve receber punição administrativa

Imagine a seguinte situação hipotética:

Regina, servidora pública, foi diagnosticada com transtorno afetivo bipolar e iniciou medicação.

Em março de 2023, Regina teve um surto psicótico grave e, durante esse quadro, praticou agressões físicas e verbais contra uma vítima.

Em razão dos fatos, foram instaurados:

• um processo criminal por conta das agressões; e

• um processo administrativo disciplinar por violação aos deveres funcionais.

 

Processo penal

No processo criminal, após perícia psiquiátrica, ficou comprovado que, no momento dos fatos, Regina estava em surto psicótico decorrente de seu transtorno bipolar, estando completamente incapaz de entender o caráter ilícito de suas ações ou de se determinar de acordo com esse entendimento. Por essa razão, o juiz proferiu uma sentença absolutória imprópria, com imposição de medida de segurança, nos termos do art. 26 do Código Penal:

Inimputáveis

Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

 

PAD

No processo administrativo disciplinar, a comissão processante entendeu que Regina deveria receber a ser punida com demissão, argumentando que:

1) ela teria interrompido voluntariamente o uso da medicação semanas antes;

2) as esferas administrativa e penal seriam independentes; e

3) a punição seria necessária para preservar a imagem da instituição.

 

Mandado de segurança

Regina impetrou mandado de segurança contra a demissão argumentando que não seria possível, no caso, aplicar uma penalidade administrativa, considerando que, no processo penal pelos mesmos fatos, o Poder Judiciário reconheceu que, na época da conduta, ela era inimputável devido a um surto psicótico.

Alegou que, nesse caso, a Administração Pública deveria considerar a possibilidade de conceder a aposentadoria por invalidez, e não impor uma sanção disciplinar.

 

O STJ concordou com os argumentos da impetrante/recorrente?

SIM.

 

Princípio da relativa independência entre as instâncias civil, administrativa e penal

De acordo com o art. 66 do CPP e art. 935 do Código Civil, a sentença penal somente repercute no plano civil quando presente deliberação positiva ou negativa acerca da existência material do fato e de sua respectiva autoria:

CPP

Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

 

Código Civil

Art. 935. A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.

 

Do mesmo modo, os arts. 125 e 126 da Lei nº 8.112/1990 afirmam que as sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si, ressalvada, contingencialmente, a preponderância do juízo criminal:

Art. 125. As sanções civis, penais e administrativas poderão cumular-se, sendo independentes entre si.

Art. 126. A responsabilidade administrativa do servidor será afastada no caso de absolvição criminal que negue a existência do fato ou sua autoria.

 

Tais dispositivos consagram, no direito brasileiro, o princípio da relativa independência entre as instâncias civil, administrativa e penal, possibilitando apurações distintas no âmbito de cada esfera de responsabilidade, excepcionada, em regra, a prevalência da jurisdição criminal quanto à afirmação categórica acerca da inocorrência da conduta ou quando peremptoriamente afastada a contribuição do agente para sua prática.

 

Princípio da culpabilidade

No caso concreto, contudo, deve-se analisar também o princípio da culpabilidade.

A partir do princípio constitucional da culpabilidade – que demanda a verificação da culpa em sentido amplo para que qualquer sanção estatal seja aplicada –, é necessário observar a relação entre o direito penal e o processo administrativo sancionador. Isso ocorre especialmente quando o juízo criminal declara a inimputabilidade do agente com base no art. 26 do Código Penal e profere sentença absolutória imprópria com medida de segurança, por considerar que o acusado, devido a uma doença mental, era incapaz, no momento do fato, de entender o caráter ilícito do ato ou de agir conforme esse entendimento.

Nos casos de absolvição imprópria, o juízo criminal reconhece que houve um ato penalmente ilícito, mas também confirma a incapacidade do agente de compreender o caráter ilegal da conduta, conforme previsto no art. 386, parágrafo único, III, do CPP:

Art. 386. (...)

Parágrafo único. Na sentença absolutória, o juiz:

(...)

III - aplicará medida de segurança, se cabível.

 

Essa decisão exige provas robustas e o respeito ao devido processo legal para justificar a aplicação de uma medida de segurança com caráter curativo.

Não se trata de uma decisão preliminar ou baseada em falta de provas. A confirmação da inimputabilidade no processo penal demanda uma análise cuidadosa dos fatos, inclusive com a instauração de um incidente de insanidade mental (art. 149 do CPP) e avaliação minuciosa de laudos médicos. Quando a inimputabilidade é reconhecida, há certeza sobre a ausência de capacidade cognitiva do acusado, o que não pode ser ignorado ou revisado em esfera administrativa.

Nessas condições, manter a responsabilidade disciplinar apesar da absolvição criminal por uma causa biopsicológica que exclui a culpabilidade seria incoerente. Afinal, enquanto se evita a aplicação de pena criminal em situações de maior reprovação social, manter uma penalidade disciplinar, ainda que mais leve, ignoraria a incapacidade do agente de entender o caráter ilícito da conduta.

Portanto, é essencial manter a coerência entre as esferas de responsabilização, impedindo a aplicação de penalidades disciplinares quando, por sentença judicial transitada em julgado, foi confirmada uma doença mental que retirava do agente a capacidade de compreender o caráter ilícito de suas ações. Dessa forma, deve-se dar prioridade às conclusões judiciais, visto que o Poder Judiciário atua como instância máxima revisora da legitimidade dos atos da Administração Pública.

Constatada a prática de falta disciplinar quando a servidora estava em surto psicótico e absolutamente incapaz de entender o caráter ilícito do fato cometido, descabe a fixação de sanção administrativa, impondo-se à Administração Pública, ao contrário, o dever de avaliar a eventual concessão de licença para tratamento de saúde ou de aposentadoria por invalidez, sendo inviável o apenamento de pessoa mentalmente enferma à época da conduta imputada.

 

Em suma:

Quando o juízo criminal reconhece a inimputabilidade do agente fundada no art. 26 do Código Penal e profere sentença absolutória imprópria, com imposição de medida de segurança, descabe a fixação de sanção administrativa, impondo-se à Administração Pública, ao revés, o dever de avaliar a eventual concessão de licença para tratamento de saúde ou de aposentadoria por invalidez. 

STJ. 1ª Turma. RMS 72.642-PR, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 1/10/2024 (Info 828).


A Lei 14.843/2024 restringiu a saída temporária. Essa mudança pode ser aplicada para crimes praticados antes da sua vigência (11/04/2024)?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Em 2018, João praticou o crime de roubo.

Em 2020, João cometeu outro crime de roubo, desta vez com emprego de arma de fogo.

Ele foi condenado pelos dois crimes de roubo.

Atualmente, João cumpre pena pela prática dos dois crimes de roubo, estando em regime semiaberto.

Em 29/07/2024, o apenado pediu a concessão de saída temporária.

O juiz negou o benefício argumentando que o § 2º do art. 122 da LEP, depois da Lei nº 14.843/2024, proíbe a saída temporária para condenados por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça contra a pessoa:

Lei de Execução Penal

Da Saída Temporária

Art. 122. Os condenados que cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos:

(...)

§ 2º Não terá direito à saída temporária a que se refere o caput deste artigo o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo com resultado morte. (Redação antes da Lei nº 14.843, de 2024)

§ 2º Não terá direito à saída temporária de que trata o caput deste artigo ou a trabalho externo sem vigilância direta o condenado que cumpre pena por praticar crime hediondo ou com violência ou grave ameaça contra pessoa. (Redação dada pela Lei nº 14.843, de 2024)

 

Como João praticou roubo com emprego de arma de fogo, não poderia ter direito à saída temporária já que se trata de crime com grave ameaça contra pessoa.

O Tribunal de Justiça manteve a decisão argumentando que, por se tratar de norma processual penal, a alteração promovida pela Lei nº 14.843/2024 aplica-se imediatamente, em conformidade com o princípio do tempus regit actum (art. 2º do CPP).

A Defensoria Pública estadual impetrou habeas corpus alegando que houve constrangimento ilegal, pois o delito pelo qual o paciente cumpre pena foi cometido antes da vigência da Lei nº 14.843/2004. Nesse sentido, aponta a ofensa ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

A Lei nº 14.843/2024, ao modificar o § 2º do art. 122 da Lei de Execução Penal, recrudesce a execução da pena ao vedar a concessão de saídas temporárias para condenados por crimes hediondos ou cometidos com violência ou grave ameaça contra pessoa.

A aplicação retroativa dessa norma constitui novatio legis in pejus, vedada pela Constituição Federal (art. 5º, XL) e pelo Código Penal (art. 2º).

A jurisprudência do STJ e do STF firmou entendimento de que normas mais gravosas não podem retroagir para prejudicar o executado, conforme a Súmula 471/STJ e precedentes correlatos.

No caso concreto, os crimes pelos quais o paciente foi condenado ocorreram antes da vigência da Lei nº 14.843/2024, o que impede a aplicação retroativa das novas restrições à saída temporária.

 

Em suma:

O § 2º do art. 122 da Lei de Execução Penal, com a redação da Lei n. 14.843/2024, torna mais restritiva a execução da pena, restringindo o gozo das saídas temporárias aos condenados por crimes hediondos ou cometido com violência ou grave ameaça à pessoa, não pode ser aplicado retroativamente a fatos ocorridos antes de sua vigência, em respeito ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa. 

STJ. 6ª Turma. HC 932.864-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 10/9/2024 (Info 827).


segunda-feira, 18 de novembro de 2024

INFORMATIVO Comentado 830 STJ (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 830 DO STJ


DIREITO CIVIL

USUCAPIÃO

§  Para configuração do animus domini, exige-se que a parte autora detenha efetivamente a posse do bem e não a detenção, devendo ser verificada a condição subjetiva e abstrata que demonstra a intenção de ter a coisa como sua, como ocorreu no caso.

 

PARENTESCO

§  É possível presumir a maternidade de mãe não biológica de criança gerada por inseminação artificial caseira no curso de união estável homoafetiva.

 

ALIMENTOS

§  Intransmissibilidade do direito a alimentos vencidos e não pagos aos herdeiros em caso de morte do alimentando.

 

DIREITO DO CONSUMIDOR

PRINCÍPIOS

§  O Decreto 4.680/2003 prevê que os rótulos de alimentos com menos de um por cento de organismos geneticamente modificados (OGM) não precisam informar que eles contêm OGM. Esse Decreto é válido.

 

DIREITO EMPRESARIAL

SOCIEDADES EMPRESÁRIAS

§  O termo inicial para ação contra administrador que praticou má-gestão não se inicia da data em que os atos foram praticados, mas sim da data em que os outros sócios tomaram conhecimento; isso com base na teoria da actio nata em sua vertente subjetiva.

 

DIREITO ECONÔMICO

§  A cobrança da tarifa THC2 nos portos é ilegal.

 

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE

APURAÇÃO DE ATO INFRACIONAL

§  É nulo processo no qual o juiz, antes da audiência, fez a oitiva informal do adolescente infrator, no corredor do fórum, sem a presença da defesa.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

RECURSOS

§  No julgamento assíncrono em ambiente eletrônico, caso o processo seja retirado da pauta (e não adiado) é obrigatória a renovação de intimação das partes, notadamente quando há determinação expressa de retirada em atendimento à solicitação de sustentação oral.

  

EXECUÇÃO

§  É possível a substituição da penhora em dinheiro por seguro garantia judicial, observados os requisitos do art. 835, § 2º, do CPC/2015.

 

DIREITO PENAL

FAVORECIMENTO DA PROSTITUIÇÃO

§  Configura o crime do art. 218-B do CP ainda que a vítima seja prostituta.

 

LEI MARIA DA PENHA

§  Em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, a palavra da vítima tem especial relevância, haja vista que muitos desses casos ocorrem em situações de clandestinidade.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

§  Compete ao STJ processar e julgar desembargadores, mesmo que os fatos imputados não tenham relação com o exercício do cargo, para garantir a imparcialidade.

 

DIREITO PREVIDENCIÁRIO

PROCESSO ADMINISTRATIVO E JUDICIAL PREVIDENCIÁRIO

§  A tese fixada no Tema 692 complementada pelo STJ em embargos de declaração para deixar claro que é possível a cobrança dos valores pagos por força de decisão precária nos próprios autos ou em autos apartados.


O simples fato de não ter sido de não ter sido concedido o benefício do tráfico privilegiado é suficiente para se negar a progressão de regime especial do inciso V do § 3º do art. 112 da LEP?

Progressão de regime especial

A Lei nº 13.769/2018 (Pacote Anticrime) incluiu o § 3º no art. 112 da Lei de Execuções Penais - LEP, prevendo progressão de regime especial:

Art. 112 (...)

§ 3º No caso de mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência, os requisitos para progressão de regime são, cumulativamente:

I - não ter cometido crime com violência ou grave ameaça a pessoa;

II - não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente;

III - ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior;

IV - ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento;

V - não ter integrado organização criminosa.

 

Desse modo, esse § 3º afirmou que a mulher gestante ou que for mãe/responsável por crianças ou pessoas com deficiência poderá progredir de regime com 1/8 da pena cumprida (o que é um tempo menor do que a regra geral), mas desde que cumpridos alguns requisitos elencados no dispositivo.

 

Não ter integrado organização criminosa (inciso V)

Um dos requisitos para ter direito a essa progressão especial está no fato de que a reeducanda não pode ter “integrado organização criminosa” (inciso V).

Surgiram duas correntes a respeito da abrangência dessa expressão:

 

1ª corrente: a interpretação deve ser restritiva.

Somente abrangia a condenação por crime da Lei nº 12.850/2013.

Para essa corrente ter “integrado organização criminosa” (inciso V) significa: ter sido condenada pelo crime do art. 2º da Lei nº 12.850/2013:

Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa:

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas.

 

Logo, essa expressão (“organização criminosa”) não pode ser interpretada em sentido amplo para abranger toda e qualquer associação criminosa.

Para essa primeira corrente, mesmo que a ré tivesse sido condenada por associação criminosa (art. 288 do CP) ou por associação para o tráfico (art. 35 da Lei 11.343/2006), ainda assim poderia ter direito à progressão de regime especial. A pessoa só estaria impedida de gozar da progressão com base nesse inciso se tiver praticado o crime previsto na Lei nº 12.850/2013.

Essa corrente já foi adotada, no passado, pelo STJ (HC 522.651-SP, Info 678), mas está superada.

 

2ª corrente: admite-se a interpretação extensiva da norma.

A expressão “não ter integrado organização criminosa” prevista no inciso V do § 3º do art. 112 da LEP abrange todo crime que enseje o concurso necessário de agentes em união estável e permanente voltada para práticas delitivas, como ocorre com o crime de associação para o tráfico de drogas (art. 35 da Lei nº 11.343/2006).

 

Prevalece atualmente no STJ que, não apenas a condenação pelo delito específico de organização criminosa (art. 2º da Lei n. 12.850/13) impede a aplicação da fração de 1/8 para a progressão de regime especial, mas também todo aquele crime que enseje o concurso necessário de agentes em união estável e permanente voltada para práticas delitivas - como ocorre justamente com o crime de associação para o tráfico de drogas.

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 916.442/SP, Rel. Min. Messod Azulay Neto, julgado em 2/9/2024.

STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 848.866/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 27/11/2023.

 

Feitos esses esclarecimentos, imagine a seguinte situação hipotética:

Regina foi presa em flagrante enquanto transportava uma grande quantidade de cocaína escondida dentro de um carrinho de bebê.

O Ministério Público denunciou Regina por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006).

Regina foi, ao final, condenada.

Na sentença, o juiz rejeitou o pedido da defesa para aplicar a redução de pena prevista no §4º do art. 33 da Lei de Drogas (conhecida como “tráfico privilegiado”). Como a ré já respondia a outra ação penal, o magistrado afirmou que ela não poderia ter direito à minorante porque ficou demonstrado que se dedica a atividades criminosas:

Art. 33 (...)

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

 

A sentença transitou em julgado.

 

Execução da pena

Regina iniciou o cumprimento da pena.

Passado algum tempo de cumprimento da pena, como Regina era mãe de quatro crianças, a defesa requereu ao Juízo da execução penal a progressão de regime especial prevista no art. 112 da LEP.

O Juízo, no entanto, indeferiu a progressão ao regime semiaberto. Em síntese, ele ponderou o seguinte:

- eu sei que Regina não foi condenada por organização criminosa nem por associação para o tráfico;

- no entanto, estou vendo aqui que, na sentença condenatória, a causa de diminuição do § 4º do art. 33, da Lei nº 11.343/2006 deixou de ser aplicada exatamente pelo envolvimento da ré com o crime organizado;

- logo, é de se reconhecer que não está presente o requisito de “não integrar organização criminosa”, necessário para a progressão especial conforme art. 112, § 3º, V, da LEP.

 

Contra essa decisão, a defesa interpôs agravo em execução penal, requerendo ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo a concessão da progressão especial de regime. O recurso, no entanto, foi desprovido.

Ainda irresignada, a defesa impetrou habeas corpus direcionado no STJ argumentando que o simples fato de não ter sido concedido o benefício do tráfico privilegiado não é suficiente para se concluir que a ré integra organização criminosa. Logo, o simples fato de não ter sido concedido o benefício do tráfico privilegiado não é suficiente para se negar a progressão de regime especial do inciso V do § 3º do art. 112 da LEP.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

A interpretação dada pelo juiz e pelo TJ/SP contrariou os princípios da legalidade e da individualização da pena.

De acordo com o princípio da legalidade no âmbito da execução, a apenada somente pode ter seus direitos limitados/restringidos nos casos expressamente previstos na lei e na sentença condenatória.

Conforme o princípio da individualização da pena, deve ser evitada a padronização da reprimenda, que deve ser adequada a cada reeducanda, considerando sua personalidade, seu histórico prisional e sua evolução carcerária.

No caso concreto, os fundamentos utilizados na sentença condenatória não indicam que a condenada integre organização criminosa, mas apenas que se dedica a atividades criminosas, o que, efetivamente, extrapola os limites do princípio da legalidade e da individualização da pena.

Na prática, se fosse admitida a interpretação dada pelo TJ, toda mulher condenada por tráfico que não recebesse a causa de diminuição do tráfico privilegiado, não teria também direito à progressão de regime especial do § 3º do art. 112 da LEP, o que não faz sentido.

A vedação da progressão especial pela via interpretativa para todas as condenadas por tráfico de drogas sem incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei nº 11.343/2006 não encontra fundamento legal, devendo se restringir a vedação do inciso V do § 3º do art. 112 da Lei de Execução Penal aos casos em que houve condenação por crime associativo.

 

Em suma:

A vedação da progressão especial prevista no inciso V do § 3º do art. 112 da Lei de Execução Penal deve se restringir aos casos em houve condenação por crime associativo, não servindo como óbice ao benefício o mero afastamento da minorante do § 4º do art. 33 da Lei de Drogas. 

STJ. 6ª Turma. HC 888.336-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 13/8/2024 (Info 827).


Revisão para o concurso de Promotor de Justiça de Mato Grosso do Sul (MP/MS)

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Bons estudos.



domingo, 17 de novembro de 2024

INFORMATIVO Comentado 1154 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1154 DO STF


Direito Constitucional

COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS

§  É inconstitucional lei estadual que cria crime de incêndio, mesmo que sob o argumento de proteção ao meio ambiente.

§  É inconstitucional lei estadual que preveja sanções para as pessoas que praticarem crimes.

 

DIREITO NOTARIAL E REGISTRAL

REGISTRO CIVIL DE PESSOAS NATURAIS

§  É constitucional norma estadual que prevê a participação conjunta de agentes públicos e pessoas jurídicas de direito privado na gestão administrativa do Fundo de Apoio ao Registro Civil de Pessoas Naturais (FUNARPEN), composto por recursos públicos.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

PRECATÓRIOS

§  Mesmo depois da EC 113/2021, não incide a Selic durante o período de graça dos precatórios (incide apenas correção monetária).

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS

§  É constitucional o Decreto nº 11.374/2023, que restabeleceu as alíquotas originárias do PIS/Cofins sobre receitas financeiras, previstas no Decreto 8.426/2015.


Um réu ficou sentado de costas para os jurados durante toda a sessão de julgamento no Júri. Essa condenação foi mantida ou anulada pelo STJ?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João estava sendo julgado pelo Tribunal do Júri, acusado de feminicídio contra sua ex-companheira.

Durante a sessão de julgamento, João foi posicionado de costas para os sete jurados que compunham o Conselho de Sentença.

Antes do interrogatório, o advogado do réu formulou requerimento ao juiz presidente do Tribunal do Júri pedindo que João pudesse ficar de frente para os jurados, argumentando que o contato visual era importante para um julgamento adequado. Isso porque assim os jurados poderiam avaliar as expressões faciais e reações do réu, essenciais para a compreensão completa de sua versão dos fatos.

O juiz indeferiu o pedido, alegando que não havia previsão legal sobre o posicionamento do réu e que a disposição física no plenário não influenciaria no julgamento.

Após várias horas de julgamento, João foi condenado pelo Conselho de Sentença a 18 anos e 8 meses de reclusão em regime fechado.

O réu recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo alegando nulidade do julgamento por cerceamento de defesa e violação aos princípios da dignidade humana e plenitude de defesa, mas teve o recurso negado.

A defesa impetrou então habeas corpus no STJ insistindo na alegação de nulidade. Requereu,  a  anulação  do  julgamento, para que fosse determinada a realização de nova sessão plenária.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

SIM.

No caso, o paciente foi submetido a julgamento pelo Conselho de Sentença e ficou de costas, situação inadmissível devido ao tratamento oposto ao princípio da presunção de inocência.

O Ministro Ayres Britto já nos ensinou que “a palavra ‘sentença’ deriva do verbo ‘sentir’ e que o sentimento é anterior ao pensamento na vida intrauterina", ou seja, os jurados utilizam todos os seus sentidos para chegaram a um veredicto.

É inconcebível o argumento de que não existiria previsão legal para que o paciente seja julgado com dignidade, valor garantido pela Constituição Federal a todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros, ignorando assim vários princípios e direitos assegurados pela Constituição da República e os tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.

O julgamento do Tribunal do Júri pode se estender por muitas horas e, durante esse período, os jurados dedicam atenção a todos os ritos, aos advogados e, principalmente, ao acusado, que permanece exposto a análises até a decisão final. Desse modo, o local em que ele fica, a roupa que usa e a utilização de algemas, por exemplo, são fatores simbólicos observáveis e ponderados pelos jurados.

O prejuízo no caso concreto é constatado pelo desrespeito ao princípio da dignidade humana, uma vez que o Poder Judiciário tolheu do paciente a possibilidade de ser visto por seus julgadores, bem como pela condenação que suportou após a deliberação do Conselho de Sentença.

 

Em suma:

É possível a anulação de julgamento realizado pelo Tribunal do Júri quando o réu ficar sentado de costas para os jurados durante a sessão. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 768.422-SP, Rel. Min. Daniela Teixeira, julgado em 10/9/2024 (Info 827).


sábado, 16 de novembro de 2024

Se o Ministério Público se recusar injustificadamente em oferecer o ANPP, o juiz pode rejeitar a denúncia?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi preso em flagrante com 40 porções de maconha e 34 de cocaína.

O flagranteado admitiu a prática de tráfico de drogas.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João imputando-lhe o crime de tráfico de drogas (art. 33, caput, da Lei nº 11.343/2006).

Na cota introdutória da denúncia, o Ministério Público afirmou que não iria oferecer o ANPP porque o tráfico de drogas é um crime hediondo e grave.

Na audiência, antes do início da instrução, a defesa requereu a remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, em razão da negativa de oferecimento de ANPP.

Argumentou que o réu poderia ser beneficiado pelo acordo de não persecução penal, pois estavam presentes os requisitos legais objetivos e subjetivos e que não havia fundamentação concreta por parte do Ministério Público que embasasse a negativa da benesse.

O juiz indeferiu o pedido.

Em alegações finais, o Ministério Público requereu a aplicação da minorante prevista no art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 (tráfico privilegiado), o que foi acolhido na sentença, na fração máxima, sem recurso ministerial.

João interpôs recurso de apelação no qual pleiteou pelo envio dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP, para oferecimento de proposta de acordo de não persecução penal.

O Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso sob o argumento de o ANPP não consiste em direito subjetivo do investigado, mas sim ato discricionário do Ministério Público, titular da ação penal pública.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial, no qual sustentou ter havido negativa de vigência ao art. 28-A caput e § 14 do CPP, em razão da previsibilidade de que o crime se tratava de tráfico privilegiado, além da recusa do magistrado em fazer a remessa dos autos para o Procurador-Geral de Justiça (PGJ).

 

O STJ acolheu os argumentos de João?

SIM.

 

Justiça penal negociada

O acordo de não persecução penal, de modo semelhante ao que ocorre com a transação penal ou com a suspensão condicional do processo, introduziu, no sistema processual brasileiro, mais uma forma de justiça penal negociada, seguindo uma tendência mundial inicialmente restrita a países de tradição adversarial e liberal mais acentuada e que se espraiou por ordenamentos de matriz romano-germânica.

 

Terceira onda

Houve três ondas de justiça penal negociada.

A primeira onda ocorreu com a Lei nº 9.099/1995, que trouxe a transação penal e a suspensão condicional do processo.

A segunda onda veio com a edição da Lei nº 12.850/2013, responsável por sistematizar o acordo de colaboração premiada, até então previsto timidamente em algumas leis pontuais.

A terceira onda ocorreu com a Lei nº 13.964/2019, ao prever o ANPP.

 

Nesse sentido: FONSECA, Caio Nogueira Domingues da. O controle judicial no acordo de não persecução penal. 2022. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2022, p. 105-126.

 

Discricionariedade regrada

A aplicação das ferramentas de barganha penal exige que o Ministério Público exerça uma discricionariedade regrada, ou seja, uma escolha vinculada a parâmetros legais, ao propor uma alternativa consensual de resolução do conflito. Esse poder do MP não é ilimitado, pois não pode ser confundido com arbitrariedade.

 

Correntes sobre a facultatividade ou obrigatoriedade de oferecer o ANPP

Existem três correntes principais sobre o ANPP:

1ª) mera faculdade do Ministério Público

De acordo o Enunciado n. 19 do Conselho Nacional de Procuradores- Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG): “O acordo de não persecução penal é faculdade do Ministério Público, que avaliará, inclusive em última análise (§ 14), se o instrumento é necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime no caso concreto”.

Essa posição falha porque se apega somente à interpretação literal do verbo “poderá”, contido no art. 28-A, caput, do CPP.

Para essa corrente, o titular da ação penal poderia decidir, ao sabor de sua vontade, se vai submeter o investigado às agruras do processo penal e, posteriormente, da pena, ou se lhe vai propor solução alternativa mais branda e menos estigmatizante.

Trata-se de violação da isonomia, pois legitimaria, por exemplo, conferir tratamento diverso a indivíduos em situações iguais, com inadmissível margem para a arbitrariedade.

 

2ª) direito público subjetivo

Para essa segunda corrente, o preenchimento dos requisitos legais asseguraria ao investigado direito público subjetivo à entabulação do acordo, o que, por consequência, obrigaria o magistrado a fazê-lo caso o Ministério Público se recusasse a tanto (LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 216).

O STJ não admite essa corrente.

Aceitar que o juiz assuma o lugar do titular da ação penal e proponha o ANPP ao investigado não se mostra adequado, seja por afrontar a separação de funções que define o sistema acusatório, seja por desvirtuar o próprio cerne negocial dos mecanismos penais consensuais.

 

3ª) poder-dever do membro do MP

De modo a equilibrar essas linhas antagônicas de pensamento, a jurisprudência do STJ se assentou em posição intermediária, com o entendimento de que a oferta de alternativas de barganha penal ao investigado consiste em poder-dever do Ministério Público.

Assim, se, por um lado, não se trata de direito subjetivo do réu, por outro, também não é mera faculdade a ser exercida ao alvedrio do MP.

Assim, a atuação do MP é vista como um “dever-poder” e não como uma mera opção.

 

Verificação dos requisitos legais

A discricionariedade do MP ao oferecer um acordo limita-se à verificação dos requisitos legais, especialmente daqueles que envolvem conceitos jurídicos indeterminados. Por exemplo, o art. 28-A, caput, do CPP exige que o acordo seja “necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime” expressão que gera discussões interpretativas devido à sua imprecisão.

Dessa forma, se os requisitos legais estão presentes, o MP não pode recusar um acordo com base apenas em critérios de conveniência ou oportunidade. Em casos excepcionais, com fundamentação concreta, o MP pode avaliar se o acordo atende à prevenção e reprovação do crime, que é um requisito legal.

 

Dever do MP de fundamentar suas decisões

O MP tem o dever, tanto pela Lei Orgânica do Ministério Público (art. 43, III, da Lei nº 8.625/1993) quanto pela Constituição (art. 129, VIII), de fundamentar suas decisões. Embora não haja direito subjetivo ao acordo, há o direito a uma manifestação fundamentada.

Cabe ao Judiciário, em seu papel de “dizer o direito”, verificar se a fundamentação do MP respeita os limites legais.

 

Voltando ao caso concreto

Nem o MP nem o Judiciário podem, exceto em casos de inconstitucionalidade, negar um acordo consensual legalmente previsto com base na natureza do crime ou no fato de ser hediondo. Esse entendimento evita restrições adicionais não previstas em lei, respeitando as escolhas do legislador sobre quais crimes são incompatíveis com acordos.

Neste caso específico, o MP recusou o acordo de não persecução penal (ANPP) por considerar o tráfico de drogas um crime hediondo. A defesa solicitou que os autos fossem enviados à Procuradoria-Geral, o que foi negado pelo juiz, alegando que havia apreensão de drogas e dinheiro. Contudo, o próprio MP, nas alegações finais, requereu a aplicação da minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, e essa foi aceita na sentença, sem recurso do MP.

Essa minorante pode reduzir a pena mínima para menos de 4 anos, permitindo o ANPP conforme o art. 28-A, § 1º, do CPP e afastando a natureza hedionda do crime, conforme art. 112, § 5º, da Lei de Execução Penal e entendimento dos tribunais superiores. Assim, em tese, nada impede a aplicação do ANPP no crime de tráfico de drogas.

Mesmo que a minorante seja aplicada na terceira fase da dosimetria da pena e com frações variáveis, o MP deve considerar a possibilidade de aplicação do ANPP desde o oferecimento da denúncia. O critério do ANPP depende da pena mínima cominada, considerando as causas de diminuição aplicáveis na maior fração possível.

Ao oferecer a denúncia, o MP deve justificar concretamente a inaplicabilidade do ANPP, demonstrando, com base no inquérito, que o investigado não se enquadra nos requisitos para a minorante do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 ou que a gravidade concreta do crime torna o acordo desnecessário e insuficiente para reprovação e prevenção do crime.

Se o MP recusa o ANPP sem justificativa adequada, a denúncia deve ser rejeitada por falta de interesse de agir (art. 395, II, do CPP), conforme entendimento do STF que considera a ausência de fundamentação do ANPP como nulidade absoluta.

Por fim, o art. 28, § 14, do CPP, que prevê a remessa dos autos a um órgão superior em caso de recusa do MP em propor o ANPP, não impede o controle judicial sobre a fundamentação do MP. Assim, está configurada a violação do art. 28-A, caput e § 14, do CPP, tanto pela falta de fundamentação adequada do MP para recusar o ANPP quanto pela recusa do juiz em remeter os autos para revisão superior do MP, já que não havia ausência de requisito objetivo para isso.

 

Em suma:

A recusa injustificada ou ilegalmente motivada do Ministério Público em oferecer o acordo de não persecução penal autoriza à rejeição da denúncia, por falta de interesse de agir para o exercício da ação penal. 

STJ. 6ª Turma. REsp 2.038.947-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 17/9/2024 (Info 827).


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