Dizer o Direito

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Um imóvel abandonado e usado para o armazenamento de drogas e armas é considerado domicílio e possui a proteção constitucional de inviolabilidade?

Imagine a seguinte situação hipotética:

A Polícia Militar recebeu uma “denúncia anônima” (notícia crime apócrifa) indicando que em uma área rural há um imóvel suspeito de ser usado para armazenamento de drogas e armas.

A denúncia descreve que o local tem características semelhantes a um “bunker”, um espaço subterrâneo usado para esconder materiais ilícitos, controlado por uma organização criminosa.

Após monitoramento e investigação preliminar, os policiais militares decidem ir até o local. Ao chegarem, percebem que o imóvel está desabitado, sem sinais de moradores, e constatam que ele não tem móveis ou qualquer indício de ser uma residência. No entanto, o local está em reforma e possui uma estrutura robusta. A polícia, sem um mandado judicial, decide entrar no imóvel, pois há fundadas suspeitas de que ali estão armazenadas drogas e armas.

Ao inspecionar o imóvel, eles descobrem uma entrada oculta no piso, coberta por uma tampa de concreto que é levantada com o auxílio de uma retroescavadeira. Abaixo, encontram um depósito subterrâneo com mais de 450 kg de cocaína, 8 kg de maconha, e uma vasta coleção de armas de fogo, incluindo fuzis, pistolas e submetralhadoras.

Os responsáveis pelo local são presos e condenados por tráfico de drogas, posse ilegal de armas e organização criminosa.

A defesa de um dos condenados impetrou habeas corpus alegando que as provas obtidas deveriam ser anuladas, pois houve uma invasão ilegal do “domicílio”, sem um mandado judicial, o que violaria o direito constitucional à inviolabilidade do lar.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

O STJ entende que:

A casa abandonada, utilizada com o único propósito de tráfico de drogas, não é hipótese contemplada pela proteção constitucional da inviolabilidade de domicílio, prevista no art. 5º, XI, da Constituição da República.

STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 158.301/RS, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 29/3/2022.

 

No caso, não se verifica violação ao art. 5º, XI, da CF/88 nem ao art. 157 do CPP, considerando que a diligência policial ocorreu no interior de imóvel desabitado, o que afasta deste a proteção constitucional conferida ao domicílio:

Art. 5º (...)

XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

 

Art. 157.  São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

 

Ficou constatado que o imóvel não era uma residência. Ao contrário, tratava-se de um “bunker”, ou seja, uma estrutura fortificada e subterrânea, construída para fins exclusivos de armazenamento e refino de drogas ilícitas, bem como para guarda de armas de grosso calibre.

Não há, nos autos, elementos suficientes para caracterizar o imóvel em questão como um domicílio. Assim, não é necessário analisar a existência de razões fundadas que justifiquem o ingresso policial, já que o referido sítio não está protegido pela Constituição. Além disso, o imóvel estava desabitado e era utilizado para o armazenamento de grande quantidade de drogas e armamentos.

 

Em suma:

São lícitas as provas oriundas de diligência policial, sem mandado de busca e apreensão, realizada no interior de imóvel desabitado, caracterizado como bunker, e destinado ao armazenamento de drogas e armas.

STJ. 6ª Turma. HC 860.929-SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 27/8/2024 (Info 826).


terça-feira, 12 de novembro de 2024

INFORMATIVO Comentado 1153 STF (completo e resumido)

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1153 DO STF


DIREITO PROCESSUAL CIVIL

REQUISIÇÃO DE PEQUENO VALOR

§  A lei que define o que seja pequeno valor para fins de RPV pode ser apresentada por parlamentar (a iniciativa legislativa é concorrente).

 

DIREITO PENAL

LEI DE CONTRAVENÇÕES PENAIS

§  Portar arma branca fora de casa e em atitude com potencial de causar lesões é conduta que se amolda ao art. 19 da Lei de Contravenções Penais, que permanece válido em relação a armas brancas.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

TRIBUNAL DO JÚRI

§  Mesmo que a absolvição tenha sido com base no quesito genérico, o TJ pode dar provimento ao recurso do MP para um novo júri; se a defesa pediu a absolvição por clemência e esta tese é compatível com a CF, com o STF e com as provas, o TJ não deverá determinar novo júri.

 

DIREITO TRIBUTÁRIO

TEMAS DIVERSOS

§  É prerrogativa do Poder Executivo reduzir livremente o percentual do Reintrega.

 

SANCÕES TRIBUTÁRIAS

§  As multas aplicadas em casos de sonegação, fraude ou conluio devem se limitar a 100% da dívida tributária, sendo possível que o valor chegue a 150% da dívida em caso de reincidência.

 

DIREITO FINANCEIRO

§  Por ofensa ao art. 113 do ADCT, encontra-se com eficácia suspensa a Lei 14.784/2023, que prorrogou a desoneração da folha de pagamento de municípios e de diversos setores produtivos.


A intimação deve ser realizada em nome de todos os advogados indicados pela parte, conforme requerimento expresso, sob pena de nulidade processual

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi condenado pelo crime previsto no art. 129, § 9º, do Código Penal (lesão corporal em contexto de violência doméstica).

O réu recorreu contra a condenação.

Na petição do recurso, o recorrente requereu expressamente que as intimações futuras fossem realizadas em nome dos advogados Paulo Souza e Rafael da Silva.

O Tribunal de Justiça inadmitiu o recurso.

No momento da realização da intimação dessa decisão, por meio de publicação em diário oficial, a secretaria não incluiu o nome do advogado Rafael da Silva. A intimação ocorreu somente no nome do advogado Paulo Souza.

O réu perdeu o prazo para recorrer contra essa decisão que inadmitiu o recurso.

A defesa do réu impetrou habeas corpus alegando nulidade processual pela falta de intimação do advogado Rafael da Silva. Afirmou que “ocorreu grave prejuízo ao réu, haja vista que seu principal advogado não fora intimado da decisão e, por via de consequência, não tomou conhecimento do referido decisium.”

O MPF, em seu parecer, alegou que a defesa pleiteou, no recurso, que as intimações fossem publicadas em nome de Paulo Souza e Rafael da Silva, todavia, sem requerimento de intimação exclusiva. Sendo assim, em que pese não constar, na referida intimação, a indicação do advogado Rafael da Silva, constata-se que houve referência ao causídico Paulo Souza, razão pela qual não se verifica o alegado constrangimento, considerando que houve regular intimação de um dos advogados.

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa? Houve nulidade?

SIM.

O CPC, em seu art. 272, § 5º, estabelece que, havendo requerimento expresso para que as intimações sejam feitas em nome de um advogado específico, o ato processual deve seguir esse pedido, sob pena de nulidade. Essa regra tem como objetivo garantir os princípios da ampla defesa e do contraditório, que são fundamentais ao devido processo legal.

No presente caso, foi requerido, de forma expressa, que as intimações fossem realizadas em nome dos advogados Paulo Souza e Rafael da Silva. O uso da conjunção “e” ao nomear ambos os advogados indica claramente que a intenção era de que ambos fossem intimados simultaneamente, conforme pedido da defesa.

A interpretação que considera suficiente a intimação de apenas um dos advogados não está de acordo com a redação do § 5º do art. 272 do CPC/2015. O texto legal não exige que seja mencionada expressamente a exclusividade da intimação; exige apenas que seja respeitada a vontade da parte:

Art. 272 (...)

§ 5º Constando dos autos pedido expresso para que as comunicações dos atos processuais sejam feitas em nome dos advogados indicados, o seu desatendimento implicará nulidade.

 

Obviamente, não se descarta a possibilidade de uso malicioso dessa prerrogativa por uma banca de advocacia que venha a requerer que as intimações recaiam sobre dezenas de advogados. Entretanto, esta não parece ser a situação deste e da maioria dos casos concretos do cotidiano forense, de maneira que as

exceções merecerão tratamento apropriado.

Além disso, em precedente da Segunda Seção deste Tribunal Superior, em situação semelhante envolvendo a nulidade de intimação que desconsiderou o pedido expresso da parte, foi reconhecida a necessidade de intimação de todos os advogados indicados, sob pena de nulidade do ato processual. Esse entendimento está fundamentado nos princípios da segurança jurídica e no respeito ao direito da parte de ser adequadamente representada pelos advogados que escolheu:

(...) 3. Dispõe o art. 272, § 5º, do CPC/15 que: "constando dos autos pedido expresso para que as comunicações dos atos processuais sejam feitas em nome dos advogados indicados, o seu desatendimento implicará nulidade".

4. Hipótese em que há pedido de intimação exclusiva de três patronos indicados, mas somente dois deles foram intimados.

5. Invalidade da intimação, necessidade de que todos os advogados indicados sejam intimados.

STJ. 2ª Seção. EAREsp 1.306.464/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 25/11/2020.

 

Em suma:

1) A intimação deve ser realizada em nome de todos os advogados indicados pela parte, conforme requerimento expresso, sob pena de nulidade processual.

2) O uso abusivo da prerrogativa de intimação de diversos advogados deve ser tratado como exceção, cabendo a sua análise caso a caso. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no HC 880.361-BA, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Rel. para acórdão Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 10/9/2024 (Info 826).


segunda-feira, 11 de novembro de 2024

INFORMATIVO Comentado 828 STJ (completo e resumido)

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 828 DO STJ


DIREITO ADMINISTRATIVO

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

§  Se o servidor público cometer uma falta disciplinar durante um surto psicótico, quando estava totalmente incapaz de compreender que a ação era ilícita, ele não deve receber punição administrativa.

 

TEMAS DIVERSOS

§  Quem ocupou irregularmente bem da União deverá pagar a indenização prevista no parágrafo único do art. 10 da Lei nº 9.636/1998, independentemente se agiu ou não de boa-fé.

 

DIREITO CIVIL

DIREITOS AUTORAIS

§  Bar pode usar o nome ‘do Leme ao Pontal’, mesmo sendo o título de uma canção de Tim Maia, não havendo, neste caso, violação a direito autoral.

 

DIREITO DO CONSUMIDOR

PRÁTICAS COMERCIAIS

§  São válidas as práticas de cobrança de taxa de conveniência na venda de ingressos pela internet, a venda antecipada para grupos específicos e a restrição de algumas formas de pagamento em compras online e via call center.

 

DIREITO EMPRESARIAL

RECUPERAÇÃO JUDICIAL

§  As fundações de direito privado não possuem legitimidade para o ajuizamento de pedido de recuperação judicial.

§  Após a entrada em vigor da Lei 14.112/2020, é indispensável a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais para o deferimento do pedido de recuperação judicial.

 

DIREITO PROCESSUAL CIVIL

PRINCÍPIOS

§  Quando comprovado o empenho da parte e o insucesso das medidas adotadas, o juiz tem o dever de auxiliá-la a fim de que encontre as informações que, à disposição do Juízo, condicionem o eficaz desempenho de suas atribuições.

 

OBRIGAÇÃO DE FAZER

§  A possibilidade de atendimento à obrigação de fazer por terceiro prevista no art. 817, caput do CPC pressupõe a anuência não só do exequente, como também do terceiro.

 

IMPENHORABILIDADE

§  O juiz não pode reconhecer de ofício a impenhorabilidade prevista no art. 833, X, do CPC.

  

DIREITO PROCESSUAL PENAL

PROCEDIMENTO

§  É indevida a decretação da revelia se o magistrado optou por intimar apenas o advogado constituído para a audiência de instrução e julgamento, sem sequer buscar localizar o acusado para realizar a sua intimação pessoal, nos termos da legislação processual penal.

 

SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

§  Não cabe a utilização de óbice previsto para o acordo de não persecução penal para negar o oferecimento da suspensão condicional do processo.


Durante uma live, um influenciador digital proferiu ofensas contra outra influenciadora. A vítima tem o direito de apresentar queixa-crime especificamente contra esse influenciador, independentemente de outras pessoas terem expressado opiniões similares anteriormente

AÇÃO PENAL E PRINCÍPIO DA INDIVISIBILIDADE

Conceito

Quando estudamos o assunto “ação penal” um tema muito importante é o princípio da indivisibilidade.

O princípio da indivisibilidade significa que a ação penal deve ser proposta contra todos os autores e partícipes do delito.

Ex: se o crime foi cometido por “A” e por “B”, a ação penal deverá ser ajuizada contra os dois, não podendo, em regra, ser proposta apenas contra um deles, salvo se houver algum motivo jurídico que autorize (um deles já morreu, é doente mental, é menor de 18 anos, não há provas contra ele etc.).

 

Previsão

O princípio da indivisibilidade está previsto no art. 48 do CPP:

Art. 48. A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade.

 

Repare que o art. 48 acima fala em “queixa” (nome da peça da ação penal privada). Diante disso, indaga-se: o princípio da indivisibilidade aplica-se também para a ação penal pública (“denúncia”)?

Sobre o tema, existem duas correntes principais:

SIM

NÃO

O princípio da indivisibilidade é aplicado tanto para as ações penais privadas como para as ações penais públicas.

O princípio da indivisibilidade é aplicado apenas para as ações penais privadas, conforme prevê o art. 48 do CPP.

Havendo indícios de autoria contra os coautores e partícipes, o Ministério Público deverá denunciar todos eles.

Ação penal privada: princípio da INdivisibilidade.

Ação penal pública: princípio da DIvisibilidade.

É o entendimento de Renato Brasileiro, Fernando da Costa Tourinho Filho, Aury Lopes Jr. e outros.

É a posição que prevalece no STJ e STF.

 

O que acontece se a ação penal privada não for proposta contra todos? O que ocorre se um dos autores ou partícipes, podendo ser processado pelo querelante, ficar de fora? Qual é a consequência do desrespeito ao princípio da indivisibilidade?

Depende:

1) Se a omissão foi VOLUNTÁRIA (DELIBERADA):

Se ficar demonstrado que o querente (aquele que propõe ação penal privada) deixou, de forma deliberada, de oferecer a queixa contra um ou mais autores ou partícipes, neste caso, deve-se entender que houve de sua parte uma renúncia tácita.

Ex: João e Pedro praticaram o crime contra Maria. Ela propõe a queixa apenas contra João e deixou Pedro de fora porque é seu amigo. Entende-se que ela renunciou tacitamente ao seu direito de processar Pedro.

Ocorre que Maria não se apercebeu que renunciando o direito de queixa em relação a Pedro, isso também beneficiará João. Isso porque o CPP prevê que “a renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá” (art. 49).

Em suma, se o querelante deixou, deliberadamente, de oferecer queixa contra um dos autores ou partícipes, o juiz deverá rejeitar a queixa e declarar a extinção da punibilidade para todos (arts. 104 e 109, V, do CP). Todos ficarão livres do processo.

 

2) Se a omissão foi INVOLUNTÁRIA:

Se ficar demonstrado que a omissão de algum nome foi involuntária (ex: o crime foi praticado por João e Pedro, mas o querelante não sabia da participação deste último), então, neste caso, o Ministério Público deverá requerer a intimação do querelante para que ele faça o aditamento da queixa-crime e inclua os demais coautores ou partícipes que ficaram de fora.

• Se o querelante fizer o aditamento: o processo continuará normalmente.

• Se o querelante se recusar expressamente ou permanecer inerte: o juiz deverá entender que houve renúncia (art. 49 do CPP). Assim, deverá extinguir a punibilidade em relação a todos os envolvidos.

 

Obs: o querelante só poderá incluir o outro autor/partícipe se ainda estiver dentro do prazo decadencial de 6 meses.

 

A explicação acima foi baseada na obra de LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: Juspodivm.

Veja um precedente do STJ que corrobora essa ideia:

(...) O reconhecimento da renúncia tácita ao direito de queixa exige a demonstração de que a não inclusão de determinados autores ou partícipes na queixa-crime se deu de forma deliberada pelo querelante.

STJ. 5ª Turma. HC 186.405/RJ, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 02/12/2014.

 

EXPLICAÇÃO DO JULGADO:

Imagine a seguinte situação hipotética:

Jonathan é um influenciador digital com milhões de seguidores nas redes sociais.

Em outubro de 2020, Jonathan realizou uma live em seu perfil do Instagram onde fez diversas declarações ofensivas contra Carla, uma figura pública.

Jonathan acusou Carla de corrupção, chamou-a de “ladra” e fez insinuações sobre sua vida pessoal.

Durante a live, Jonathan mencionou que havia recebido mensagens privadas de alguns seguidores com informações e opiniões negativas sobre Carla, mas não revelou a identidade desses seguidores.

Jonathan incorporou essas informações em seus próprios comentários durante a transmissão ao vivo.

Carla, sentindo-se difamada e injuriada, ingressou com queixa-crime contra Jonathan em fevereiro de 2021, dentro do prazo decadencial de 6 meses:

Código de Processo Penal

Art. 38.  Salvo disposição em contrário, o ofendido, ou seu representante legal, decairá no direito de queixa ou de representação, se não o exercer dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que vier a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do art. 29, do dia em que se esgotar o prazo para o oferecimento da denúncia.

Parágrafo único.  Verificar-se-á a decadência do direito de queixa ou representação, dentro do mesmo prazo, nos casos dos arts. 24, parágrafo único, e 31.

 

Na queixa-crime, Carla afirmou que João teria praticado os crimes de injúria (art. 140 do CP) e de difamação (art. 139 do CP).

A queixa-crime foi baseada especificamente nas declarações feitas por Jonathan durante a live de outubro de 2020.

A defesa do querelado impetrou habeas corpus alegando que Carla deveria ter incluído na queixa-crime os seguidores que enviaram as mensagens privadas a Jonathan, argumentando que a não inclusão desses indivíduos violava o princípio da indivisibilidade da ação penal privada.

A omissão de Carla em processar os outros indivíduos configuraria renúncia ao direito de queixa contra João, acarretando a extinção da punibilidade, na forma do art. 107, V, do CP:

Art. 107 - Extingue-se a punibilidade:

(...)

V - pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada;

 

O STJ concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

O princípio da indivisibilidade está previsto no art. 48 do CPP:

Art. 48. A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade.

 

O princípio da indivisibilidade da ação penal privada destina-se a evitar o uso do Poder Judiciário para propósitos de vingança privada.

Vale ressaltar que apenas a coautoria e a participação estão sujeitas ao princípio da indivisibilidade, conforme se percebe pelo art. 49 do CPP:

Art. 49.  A renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá.

 

A definição dos contextos dos crimes contra a honra é fundamental para distinguir entre autoria colateral e coautoria/participação.

O princípio da indivisibilidade não se aplica quando os crimes são autônomos e ocorrem em contextos diferentes.

No caso em questão, as ofensas feitas pelo querelado durante uma live não configuram coautoria com terceiros que, em momentos distintos, tenham manifestado opiniões semelhantes. Assim, não se pode falar em renúncia tácita por parte da querelante quanto ao direito de queixa contra outras pessoas que não foram identificadas ou estão identificadas de forma precária.

Não seria razoável exigir que a querelante investigasse centenas de pessoas, sob pena de perder o direito de processar o querelado dentro do prazo decadencial de seis meses, sendo ele o principal responsável pela campanha difamatória específica.

Portanto, considerando o princípio da indivisibilidade e a ausência de provas de seletividade na ação penal, a querelante não pode ser impedida de exercer seu direito de queixa contra o querelado, mesmo que não tenha apresentado queixa contra outros possíveis autores das ofensas em contextos diferentes.

 

Em suma:

Não configurada coautoria ou participação nos crimes contra honra, mas delitos autônomos em contextos distintos, a ausência de oferecimento de queixa-crime contra todos os que proferiram ofensas contra a vítima não afronta o princípio da indivisibilidade da ação penal privada. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no RHC 188.454-RJ, Rel. Min. Messod Azulay Neto, Rel. para acórdão Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 27/8/2024 (Info 826).

 

No mesmo sentido:

Quando várias pessoas denigrem a imagem de alguém, via internet, cada uma se utilizando de um comentário, não há coautoria ou participação, mas vários delitos autônomos, unidos no máximo por conexão probatória.

A falta de inclusão de autor de comentário autônomo na queixa-crime não configura, pois, renúncia tácita ao direito de queixa.

STJ. Corte Especial. APn 895/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 15/5/2019.


Revisão para o concurso de Juiz de Direito do TJMT

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Revisão para o concurso de Procurador do Estado do Paraná

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domingo, 10 de novembro de 2024

A obrigação de fazer pode ser convertida em perdas e danos, mesmo sem pedido expresso?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João sofria de um problema de arritmia cardíaca.

O médico que o acompanhava, entendendo que havia risco de morte súbita do paciente, prescreveu a realização, em caráter de urgência, de um determinado tratamento cardíaco.

João ajuizou ação de obrigação de fazer contra o Estado-membro pedindo que o poder público fosse compelido a viabilizar o tratamento. Não houve pedido para o pagamento de qualquer quantia.

Na petição inicial, o autor requereu a concessão de tutela provisória de urgência.

O juízo deferiu a tutela provisória.

Ocorre que, mesmo com a ordem judicial, a administração pública demorou para cumprir.

Diante da demora em viabilizar o tratamento e, com receio de sofrer um ataque cardíaco, João decidiu realizá-lo às suas próprias expensas.

Logo em seguida, João peticionou nos autos informando que, por necessidade de saúde, o tratamento já havia sido realizado na rede particular. Requereu, então, que o pedido cominatório (obrigação de fazer) fosse convertido em perdas e danos, já que o cumprimento da tutela específica pelo réu (realização do tratamento) teria se tornado impossível.

O Juiz, no entanto, prolatou sentença extinguindo o processo sem resolução do mérito, por “perda superveniente do interesse processual”, sob o fundamento de já ter sido realizado o tratamento postulado e não haver pedido expresso de ressarcimento na petição inicial.

A sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial sustentando que a conversão da ação em perdas e danos, quando a tutela específica ou obtenção do resultado prático se tornarem impossíveis, decorre de autorização legal (art. 461, § 1º, do CPC), não sendo necessário pedido na petição inicial.

 

O STJ concordou com os argumentos do autor/recorrente?

SIM.

 

Caso a mora do devedor torne inviável a concessão da tutela específica, será possível converter a obrigação de fazer em perdas e danos, mesmo sem pedido do titular do direito subjetivo?

SIM.

As prestações de fazer e não fazer devem, prioritariamente, ser objeto de tutela específica.

As obrigações de fazer ou não fazer somente podem ser convertidas em prestação pecuniária em duas hipóteses:

1) em caso de pedido expresso do credor, mesmo que ainda disponível o cumprimento na forma específica; ou

2) quando não for possível a obtenção da tutela específica ou do resultado prático equivalente ao adimplemento voluntário.

 

O CPC/2015 trata sobre isso no art. 499, nos seguintes termos:

Art. 499. A obrigação somente será convertida em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente.

Parágrafo único. Nas hipóteses de responsabilidade contratual previstas nos arts. 441, 618 e 757 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e de responsabilidade subsidiária e solidária, se requerida a conversão da obrigação em perdas e danos, o juiz concederá, primeiramente, a faculdade para o cumprimento da tutela específica.    (Incluído pela Lei nº 14.833, de 2024)

 

Esse dispositivo deve ser analisado em conjunto com a disciplina do Código Civil acerca das obrigações de fazer, merecendo destaque, por oportuno, as seguintes disposições.

Art. 247. Incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedor que recusar a prestação a ele só imposta, ou só por ele exequível.

Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos.

Art. 249. Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido.

[…]

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros, atualização monetária e honorários de advogado.

 

Qual é o momento dessa conversão?

Acerca do momento da conversão da obrigação em perdas e danos, Leonardo Carneiro da Cunha ensina:

“A tutela específica pode ser convertida em perdas e danos em 4 momentos:

(a) o autor pode optar pela conversão desde a petição inicial que instaurou a fase cognitiva do procedimento, caso em que o pedido não terá por objeto a tutela específica, mas o seu equivalente pecuniário,

(b) a conversão pode ocorrer ainda na fase de conhecimento, antes de transitada em julgado a decisão de mérito, observado o contraditório;

(c) a conversão pode ocorrer após o trânsito em julgado da decisão de mérito, podendo o credor converter a prestação originária em prestação pecuniária e dar início à fase de cumprimento para pagamento de quantia;

(d) a conversão pode ocorrer durante a fase de cumprimento.”

(Código de Processo Civil Comentado, 1ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 778).

 

À vista disso, o STJ firmou entendimento segundo a qual é possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente do pedido do titular do direito subjetivo, inclusive em fase de cumprimento de sentença, quando verificada a impossibilidade de cumprimento da tutela específica. Nesse sentido:

A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que é possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente de pedido explícito e mesmo em fase de cumprimento de sentença, se verificada a impossibilidade de cumprimento da obrigação específica.

STJ. 1ª Turma. AgInt no RMS 39.066/SP, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 12/4/2021.

 

Vale ressaltar, ainda, que o STJ entende que é possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos face à sua impossibilidade, nas hipóteses em que verificada a negligência ou a demora do demandado no cumprimento da tutela específica:

(...) 2. O Tribunal a quo condenou a agravante ao pagamento de indenização por perdas e danos, em razão de sua negligência quanto ao fornecimento de dados requeridos pelo Juízo, mesmo diante da possibilidade técnica de realizar a diligência.

3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme quanto à possibilidade de conversão do pedido de obrigação de fazer em perdas e danos quando impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente, como meio viabilizador da eficácia do julgamento. (...)

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.205.100/SP, Rel. Min. Sérgio Kukina, julgado em 19/3/2019.

 

Portanto, conclui-se que, caso a mora do devedor torne inviável a concessão da tutela específica pleiteada na inicial, pode a obrigação ser convertida, ex officio, e em qualquer fase processual, em reparação por perdas e danos, sem prejuízo da multa fixada para compelir o réu ao cumprimento específico da obrigação, enquanto perdurar sua viabilidade.

 

Entendimento contrário privilegiaria a conduta omissiva dos entes públicos

Importante destacar que pensamento diverso privilegiaria a conduta omissiva dos entes públicos, obrigando o autor a adotar medidas judiciais coercitivas para suprir a mora da Fazenda Pública, em detrimento da potencial urgência no atendimento de sua saúde.

 

Em suma:

É possível a conversão da obrigação de fazer em perdas e danos, independentemente do pedido do titular do direito subjetivo, em qualquer fase processual, quando verificada a impossibilidade de cumprimento da tutela específica. 

STJ. 1ª Turma. REsp 2.121.365-MG, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 3/9/2024 (Info 826).


sábado, 9 de novembro de 2024

O plano de saúde é obrigado a cobrir, de forma ilimitada, as terapias prescritas ao paciente com Síndrome de Down Avise para o maior número de pessoas que precisam saber disso!

Imagine a seguinte situação hipotética:

Pablo, criança de 8 anos, é uma pessoa com síndrome de Down.

O médico que o atende prescreveu um tratamento multidisciplinar contínuo, incluindo sessões de fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional para auxiliar em seu desenvolvimento.

O plano de saúde, contudo, recusou-se a cobrir integralmente o tratamento, alegando que o contrato limitava o número de sessões anuais para essas terapias.

Além disso, a operadora argumentou que alguns dos métodos prescritos eram experimentais e envolviam o uso de órteses e próteses, que estariam expressamente excluídos da cobertura contratual.

Pablo, representado por seus pais, ajuizou ação contra o plano pleiteando a cobertura integral do tratamento prescrito.

 

O pedido de Pablo encontra amparo na jurisprudência do STJ?

SIM.

A operadora de saúde tem o dever de fornecer os tratamentos prescritos, sendo considerada abusiva qualquer limitação imposta, especialmente quando a restrição do número de sessões de terapia é incompatível com a função social dos contratos e com os princípios constitucionais. Isso é ainda mais evidente em contratos de plano de saúde, como no caso em questão, em que uma criança de apenas 8 (oito) anos de idade, com deficiência física, tem suas interações sociais diretamente impactadas pelas limitações de sua condição. Essa situação coloca o paciente em desvantagem evidente frente ao prestador de serviço, caracterizando-o como um consumidor vulnerável.

O STJ tem entendimento consolidado no sentido de que, nos casos de pacientes com Síndrome de Down, o plano de saúde tem a obrigação de cobrir, de forma ilimitada, as terapias prescritas.

Nesse sentido:

O STJ já concluiu ser abusiva a recusa de cobertura de sessões de terapias especializadas prescritas para o tratamento de transtorno do espectro autista (TEA).

Existem diversas manifestações da ANS, no sentido de reafirmar a importância das terapias multidisciplinares para os portadores de transtornos globais do desenvolvimento, e de favorecer, por conseguinte, o seu tratamento integral e ilimitado.

Segundo a diretriz da ANS, o fato de a síndrome de Down não estar enquadrada na CID F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de a operadora cobrir o tratamento multidisciplinar e ilimitado prescrito ao beneficiário com essa condição que apresente quaisquer dos transtornos globais do desenvolvimento.

STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 2.543.020/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/6/2024.

 

Jurisprudência em Teses (Ed. 213):

12) O fato de a Paralisia Cerebral e a Síndrome de Down não estarem enquadradas na CID-10 F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de as operadoras de planos de saúde fornecerem cobertura de terapia multidisciplinar, sem limite de sessões, prescrita a beneficiário.

 

Em suma:

O plano de saúde é obrigado a cobrir, de forma ilimitada, as terapias prescritas ao paciente com Síndrome de Down. 

STJ. 3ª Turma. AgInt no AREsp 2.511.984-MS, Rel. Min. Moura Ribeiro, julgado em 26/8/2024 (Info 826).

 

DOD Plus – informações complementares

Resolução Normativa 539/2022 da ANS

No dia 01/07/2022, entrou em vigor a Resolução Normativa n. 539/2022, por meio da qual a ANS ampliou as regras de cobertura para tratamentos de transtornos globais de desenvolvimento.

Em suma, por meio dessa RN ficou estabelecida a “cobertura obrigatória em número ilimitado de sessões para pacientes com transtornos globais do desenvolvimento (CID F84)”.

Nesses casos, a operadora deverá oferecer o atendimento indicado pelo médico assistente, sem limitação de sessões.

 

Mas o que são os “transtornos globais do desenvolvimento (CID F84)”?

Trata-se de uma categoria da Classificação Internacional de Doenças e Transtornos Mentais que inclui diversos transtornos e condições com sintomas semelhantes.

De acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) são considerados transtornos globais do desenvolvimento:

• Autismo infantil (CID 10 – F84.0)

• Autismo atípico (CID 10 – F84.1)

• Síndrome de Rett (CID 10 – F84.2)

• Outro transtorno desintegrativo da infância (CID 10 – F84.3)

• Transtorno com hipercinesia associada a retardo mental e a movimentos estereotipados (CID 10 – F84.4)

• Síndrome de Asperger (CID 10 – F84.5)

• Outros transtornos globais do desenvolvimento (CID 10 – F84.8)

• Transtornos globais não especificados do desenvolvimento (CID 10 – F84.9).

 

Note, portanto, que a Síndrome de Down não está enquadrada na CID-10 F84.

 

O fato de a Síndrome de Down não estar enquadrada na CID-10 F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de as operadoras de planos de saúde fornecerem cobertura de terapia multidisciplinar, sem limite de sessões, prescrita a beneficiário

(…) 5. Segundo a diretriz da ANS, o fato de a paralisia cerebral não estar enquadrada na CID-10 F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de a operadora cobrir o tratamento multidisciplinar e ilimitado prescrito ao beneficiário com essa condição que apresente quaisquer dos transtornos globais do desenvolvimento.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.049.092/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 11/4/2023.

 

(…) 4. Segundo a diretriz da ANS, o fato de a síndrome de Down não estar enquadrada na CID F84 (transtornos globais do desenvolvimento) não afasta a obrigação de a operadora cobrir o tratamento multidisciplinar e ilimitado prescrito ao beneficiário com essa condição que apresente quaisquer dos transtornos globais do desenvolvimento.

STJ. 3ª Turma. REsp 2.008.283/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 11/4/2023.

 

A propósito, não é outro o entendimento da ANS:

“Importante esclarecer que as operadoras de planos de saúde não poderão negar atendimento a pessoas com condições tais como paralisia cerebral e Síndrome de Down que apresentem transtornos global do desenvolvimento.” (<https://www.gov.br/ans/pt-br/assuntos/noticias/periodo-eleitoral/ans-amplia-regras-de-cobertura-para-tratamento-de-transtornos-globais-do-desenvolvimento).


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