Imagine a seguinte situação
hipotética:
João foi condenado e cumpre pena
de 12 anos de reclusão pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, caput, do
Código Penal).
Por se tratar de crime sexual contra vulnerável, o juiz da execução determinou
a intimação do condenado para comparecimento na Superintendência de Polícia
Técnico-Científica do Estado, a fim de que fosse realizada a coleta de material
biológico para obtenção de perfil genético, nos termos do art. 9º-A da Lei de
Execução Penal (Lei nº 7.210/84), inserido pela Lei nº 13.964/2019:
Lei de Execução Penal
Art. 9º-A. O condenado por crime doloso
praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a
vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será
submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante
extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor,
por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional.
§ 1º A identificação do perfil genético
será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido
pelo Poder Executivo.
§ 1º-A A regulamentação deverá fazer
constar garantias mínimas de proteção de dados genéticos, observando as
melhores práticas da genética forense.
§ 2º A autoridade policial, federal ou
estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado,
o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.
§ 3º Deve ser viabilizado ao titular de
dados genéticos o acesso aos seus dados constantes nos bancos de perfis
genéticos, bem como a todos os documentos da cadeia de custódia que gerou esse
dado, de maneira que possa ser contraditado pela defesa.
§ 4º O condenado pelos crimes previstos
no caput deste artigo que não tiver sido submetido à identificação do perfil
genético por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional deverá ser
submetido ao procedimento durante o cumprimento da pena.
§ 5º A amostra biológica coletada só
poderá ser utilizada para o único e exclusivo fim de permitir a identificação
pelo perfil genético, não estando autorizadas as práticas de fenotipagem
genética ou de busca familiar.
§ 6º Uma vez identificado o perfil
genético, a amostra biológica recolhida nos termos do caput deste artigo deverá
ser correta e imediatamente descartada, de maneira a impedir a sua utilização
para qualquer outro fim.
§ 7º A coleta da amostra biológica e a
elaboração do respectivo laudo serão realizadas por perito oficial.
§ 8º Constitui falta grave a recusa do
condenado em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético.
A Defensoria Pública impetrou
habeas corpus argumentando que a coleta obrigatória de material biológico do
condenado viola a dignidade da pessoa humana, bem como os princípios da
autonomia da vontade, da inviolabilidade da intimidade, da presunção de inocência
e da proibição de autoincriminação.
Alegou que o condenado tem o direito de exercer sua
autonomia para decidir se consente ou não com a coleta de seu DNA para
armazenamento no banco genético de perfis criminais, sustentando que qualquer
entendimento contrário constitui violação direta ao art. 5º, incisos II e X, da
Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a
vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
O caso chegou ao STJ. O
Tribunal concordou com os argumentos da defesa?
NÃO.
Identificação genética de
condenados (art. 9º-A da LEP)
Nos termos do art. 9º-A da Lei de
Execução Penal, com redação dada pela Lei nº 13.964/2019, o condenado por crime
doloso cometido com grave violência contra a pessoa, bem como por crimes contra
a vida, contra a liberdade sexual ou crimes sexuais contra vulneráveis, será
submetido obrigatoriamente à identificação do perfil genético por meio da
extração de DNA, realizada de forma indolor e adequada, no momento de seu
ingresso no estabelecimento penal.
Princípio da
Autoincriminação
A Constituição Federal garante o
direito de qualquer pessoa não ser obrigada a produzir provas contra si mesma. Esse
princípio decorre do direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LXIII, da CF/88
e também é reforçado pelo artigo 8º, 2, "g", da Convenção Americana
sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), incorporado ao
direito brasileiro pelo Decreto n. 678/1969.
Limitações ao princípio
O direito de não se
autoincriminar não é absoluto e tem limites legais.
O STJ, por exemplo, ao julgar a
configuração do crime de desobediência diante da ordem de parada em uma abordagem
policial (Tema 1060), concluiu que a fuga do local não se justifica pelo
princípio da vedação à autoincriminação compulsória:
A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes
públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de
crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código
Penal Brasileiro.
STJ. 3ª Seção. REsp 1.859.933-SC, Rel. Min. Antonio Saldanha
Palheiro, julgado em 09/03/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1060) (Info 732).
Situações nas quais o
princípio de autoincriminação se aplica
O direito de não se
autoincriminar permite, por exemplo, que a pessoa:
• recuse a realização do teste do
bafômetro em uma blitz;
• fique em silêncio durante um
depoimento, mesmo como testemunha;
• recuse a fornecer amostras de
voz ou escrita para perícia, se isso puder a prejudicar;
Vale ressaltar, contudo, que
essas situações são permitidas quando o ato solicitado pode ser usado para
prejudicar a pessoa em uma investigação de crime.
O momento em que o
comportamento é exigido pela lei é determinante para a aplicação ou não do
princípio da autoincriminação
Se a exigência ocorre em um
contexto de investigação de crime, e o ato solicitado pode gerar prova
contrária ao interesse de liberdade do investigado, há violação do princípio.
No entanto, quando não há uma investigação de crime em andamento, não há violação
do princípio. Portanto, a coleta de material genético do condenado, prevista na
Lei de Execução Penal, não constitui produção de prova contra si mesmo, já que
não visa investigar um crime específico.
Coleta de DNA de condenados
e a autoincriminação
A obrigatoriedade de fornecer o
perfil genético, como estabelecido no art. 9º-A da LEP, não está relacionada a
uma investigação de crime específico que a pessoa cometeu.
O objetivo não é produzir uma
prova contra o condenado, mas sim registrar e identificar o indivíduo.
Trata-se de uma ampliação dos
métodos de identificação, possibilitada pelos avanços técnicos, e pode ser
usada para elucidação de crimes futuros.
A Legalidade da coleta de
DNA
Portanto, não há ilegalidade na
exigência de coleta do perfil genético do condenado, especialmente em casos
como o do art. 217-A do Código Penal.
A recusa em fornecer esse
material configura falta grave, conforme os arts. 9º-A, § 8º, e 50, VIII, da LEP,
não sendo possível justificar a recusa com base em crimes futuros e incertos.
Em suma:
O fornecimento de perfil genético, nos termos do art.
9º-A da Lei de Execução Penal, não constitui violação do princípio da vedação à
autoincriminação, configurando falta grave a recusa.
STJ. 6ª Turma. HC 879.757-GO, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior,
julgado em 20/8/2024 (Info 822).