Dizer o Direito

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

O art. 9º-A da LEP prevê que o condenado por determinados crimes é obrigado a se submeter à identificação do perfil genético por meio da extração de DNA. Essa previsão viola à princípio da vedação à autoincriminação?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João foi condenado e cumpre pena de 12 anos de reclusão pelo crime de estupro de vulnerável (art. 217-A, caput, do Código Penal).

Por se tratar de crime sexual contra vulnerável, o juiz da execução determinou a intimação do condenado para comparecimento na Superintendência de Polícia Técnico-Científica do Estado, a fim de que fosse realizada a coleta de material biológico para obtenção de perfil genético, nos termos do art. 9º-A da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84), inserido pela Lei nº 13.964/2019:

Lei de Execução Penal

Art. 9º-A. O condenado por crime doloso praticado com violência grave contra a pessoa, bem como por crime contra a vida, contra a liberdade sexual ou por crime sexual contra vulnerável, será submetido, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA (ácido desoxirribonucleico), por técnica adequada e indolor, por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional.

§ 1º A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder Executivo.

§ 1º-A A regulamentação deverá fazer constar garantias mínimas de proteção de dados genéticos, observando as melhores práticas da genética forense.

§ 2º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.

§ 3º Deve ser viabilizado ao titular de dados genéticos o acesso aos seus dados constantes nos bancos de perfis genéticos, bem como a todos os documentos da cadeia de custódia que gerou esse dado, de maneira que possa ser contraditado pela defesa.

§ 4º O condenado pelos crimes previstos no caput deste artigo que não tiver sido submetido à identificação do perfil genético por ocasião do ingresso no estabelecimento prisional deverá ser submetido ao procedimento durante o cumprimento da pena.

§ 5º A amostra biológica coletada só poderá ser utilizada para o único e exclusivo fim de permitir a identificação pelo perfil genético, não estando autorizadas as práticas de fenotipagem genética ou de busca familiar.

§ 6º Uma vez identificado o perfil genético, a amostra biológica recolhida nos termos do caput deste artigo deverá ser correta e imediatamente descartada, de maneira a impedir a sua utilização para qualquer outro fim.

§ 7º A coleta da amostra biológica e a elaboração do respectivo laudo serão realizadas por perito oficial.

§ 8º Constitui falta grave a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético.

 

A Defensoria Pública impetrou habeas corpus argumentando que a coleta obrigatória de material biológico do condenado viola a dignidade da pessoa humana, bem como os princípios da autonomia da vontade, da inviolabilidade da intimidade, da presunção de inocência e da proibição de autoincriminação.

Alegou que o condenado tem o direito de exercer sua autonomia para decidir se consente ou não com a coleta de seu DNA para armazenamento no banco genético de perfis criminais, sustentando que qualquer entendimento contrário constitui violação direta ao art. 5º, incisos II e X, da Constituição Federal:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

(...)

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

 

O caso chegou ao STJ. O Tribunal concordou com os argumentos da defesa?

NÃO.

 

Identificação genética de condenados (art. 9º-A da LEP)

Nos termos do art. 9º-A da Lei de Execução Penal, com redação dada pela Lei nº 13.964/2019, o condenado por crime doloso cometido com grave violência contra a pessoa, bem como por crimes contra a vida, contra a liberdade sexual ou crimes sexuais contra vulneráveis, será submetido obrigatoriamente à identificação do perfil genético por meio da extração de DNA, realizada de forma indolor e adequada, no momento de seu ingresso no estabelecimento penal.

 

Princípio da Autoincriminação

A Constituição Federal garante o direito de qualquer pessoa não ser obrigada a produzir provas contra si mesma. Esse princípio decorre do direito ao silêncio, previsto no art. 5º, LXIII, da CF/88 e também é reforçado pelo artigo 8º, 2, "g", da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto n. 678/1969.

 

Limitações ao princípio

O direito de não se autoincriminar não é absoluto e tem limites legais.

O STJ, por exemplo, ao julgar a configuração do crime de desobediência diante da ordem de parada em uma abordagem policial (Tema 1060), concluiu que a fuga do local não se justifica pelo princípio da vedação à autoincriminação compulsória:

A desobediência à ordem legal de parada, emanada por agentes públicos em contexto de policiamento ostensivo, para a prevenção e repressão de crimes, constitui conduta penalmente típica, prevista no art. 330 do Código Penal Brasileiro.

STJ. 3ª Seção. REsp 1.859.933-SC, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 09/03/2022 (Recurso Repetitivo – Tema 1060) (Info 732).

 

Situações nas quais o princípio de autoincriminação se aplica

O direito de não se autoincriminar permite, por exemplo, que a pessoa:

• recuse a realização do teste do bafômetro em uma blitz;

• fique em silêncio durante um depoimento, mesmo como testemunha;

• recuse a fornecer amostras de voz ou escrita para perícia, se isso puder a prejudicar;

 

Vale ressaltar, contudo, que essas situações são permitidas quando o ato solicitado pode ser usado para prejudicar a pessoa em uma investigação de crime.

 

O momento em que o comportamento é exigido pela lei é determinante para a aplicação ou não do princípio da autoincriminação

Se a exigência ocorre em um contexto de investigação de crime, e o ato solicitado pode gerar prova contrária ao interesse de liberdade do investigado, há violação do princípio. No entanto, quando não há uma investigação de crime em andamento, não há violação do princípio. Portanto, a coleta de material genético do condenado, prevista na Lei de Execução Penal, não constitui produção de prova contra si mesmo, já que não visa investigar um crime específico.

 

Coleta de DNA de condenados e a autoincriminação

A obrigatoriedade de fornecer o perfil genético, como estabelecido no art. 9º-A da LEP, não está relacionada a uma investigação de crime específico que a pessoa cometeu.

O objetivo não é produzir uma prova contra o condenado, mas sim registrar e identificar o indivíduo.

Trata-se de uma ampliação dos métodos de identificação, possibilitada pelos avanços técnicos, e pode ser usada para elucidação de crimes futuros.

 

A Legalidade da coleta de DNA

Portanto, não há ilegalidade na exigência de coleta do perfil genético do condenado, especialmente em casos como o do art. 217-A do Código Penal.

A recusa em fornecer esse material configura falta grave, conforme os arts. 9º-A, § 8º, e 50, VIII, da LEP, não sendo possível justificar a recusa com base em crimes futuros e incertos.

 

Em suma:

O fornecimento de perfil genético, nos termos do art. 9º-A da Lei de Execução Penal, não constitui violação do princípio da vedação à autoincriminação, configurando falta grave a recusa. 

STJ. 6ª Turma. HC 879.757-GO, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 20/8/2024 (Info 822).


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