sábado, 26 de outubro de 2024
É possível penhorar o FGTS para pagar honorários advocatícios?
Imagine a seguinte situação
hipotética:
João ajuizou ação contra Pedro.
O pedido foi julgado improcedente.
João foi condenado a pagar R$ 50
mil a título de honorários advocatícios em razão de sucumbência sofrida.
Esse valor (R$ 50 mil) deveria
ser pago a Dr. Rafael, advogado de Pedro.
Houve o trânsito em julgado.
Rafael ingressou com cumprimento
de sentença pedindo o recebimento do valor.
O juiz, a requerimento do credor,
determinou a expedição de ofício à Caixa Econômica Federal determinando o
bloqueio de eventual saldo em conta de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço –
FGTS.
Em palavras mais simples, o
magistrado determinou o bloqueio do saldo do FGTS (de titularidade de João) para
o pagamento da dívida. O juiz argumentou que, como os honorários constituem-se
em verba alimentar, seria possível a utilização do FGTS para quitação dessa
dívida.
A decisão do magistrado foi
mantida pelo STJ? É permitido o bloqueio do saldo do FGTS para
o pagamento de créditos relacionados a honorários advocatícios?
NÃO.
Créditos de honorários têm
natureza alimentar
Inicialmente, é importante
recordar que:
Os créditos resultantes
de honorários advocatícios têm natureza alimentar e
equiparam-se aos trabalhistas para efeito de habilitação em falência.
STJ. Corte Especial. REsp 1.152.218/RS, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, julgado em 7/5/2014 (Recurso Repetitivo).
Vale ressaltar que tanto os
honorários sucumbenciais quanto os contratuais possuem natureza jurídica
alimentar.
O art. 85, § 14, do CPC/2015 é
claro ao estabelecer que “os honorários constituem direito do advogado e têm
natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da
legislação do trabalho”.
É possível a penhora do
saldo do FGTS para pagamento de pensão alimentícia
O STJ entende que é possível a penhora
de valores constantes na conta vinculada do FGTS para a execução de alimentos.
Isso porque a situação envolve a própria subsistência do alimentando,
prevalecendo o princípio constitucional da dignidade da pessoa e do direito à
vida. Nesse sentido: AgRg no REsp n. 1.427.836/SP, relator Ministro Luis Felipe
Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/4/2014.
No entanto, não é possível
a penhora do saldo do FGTS para pagamento de honorários, mesmo sendo verba
alimentar
O STJ, em diversos julgados, tem
tratado de modo diverso prestações alimentícias e verbas de natureza alimentar.
Isso ocorre porque o ordenamento jurídico estabelece uma hierarquia de
penhorabilidade orientada pela relevância de cada bem.
As prestações alimentícias ocupam
o topo dessa escala, dada sua importância para a manutenção da vida e da
dignidade.
Por outro lado, os honorários
advocatícios, embora reconhecidos como créditos de natureza alimentar, não
possuem o mesmo grau de urgência e essencialidade do que os créditos
alimentícios tradicionais, o que justifica o tratamento distinto.
Nessa direção, a Corte Especial
do STJ, no julgamento do REsp 1.815.055/SP, afirmou que “não se deve igualar
verbas de natureza alimentar às prestações alimentícias, tampouco atribuir
àquelas os mesmos benefícios conferidos pelo legislador a estas, sob pena de
enfraquecer a proteção ao direito, à dignidade e à sobrevivência do credor de
alimentos (familiares, indenizatórios ou voluntários), por causa da
vulnerabilidade inerente do credor de alimentos quando comparado ao credor de
débitos de natureza alimentar. [...]. As exceções destinadas à execução de
prestação alimentícia, como a penhora dos bens descritos no art. 833, IV e X,
do CPC/15, e do bem de família (art. 3º, III, da Lei 8.009/90), assim como a
prisão civil, não se estendem aos honorários advocatícios, como não se estendem
às demais verbas apenas com natureza alimentar, sob pena de eventualmente
termos que cogitar sua aplicação a todos os honorários devidos a quaisquer
profissionais liberais, como médicos, engenheiros, farmacêuticos, e a tantas
outras categorias” (REsp n. 1.815.055/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi,
Corte Especial, julgado em 3/8/2020, DJe de 26/8/2020).
Recentemente, a Corte Especial
reafirmou esse entendimento ao julgar os recursos especiais repetitivos n.
1.954.380/SP e 1.954.382/SP (Tema n. 1.153), estabelecendo que “a verba
honorária sucumbencial, a despeito da sua natureza alimentar, não se enquadra
na exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC/2015 (penhora para pagamento de
prestação alimentícia)”.
Portanto, embora a penhora do
FGTS seja permitida para garantir o pagamento de prestações alimentícias, essa
mesma medida não deve ser aplicada aos créditos decorrentes de honorários
advocatícios.
Finalidade do FGTS
O Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço foi criado com a finalidade de proteger o trabalhador em situações de
vulnerabilidade, oferecendo segurança financeira em momentos críticos como o
desemprego involuntário, a aposentadoria e doenças graves, conforme
estabelecido no art. 20 da Lei nº 8.036/1990. Esse fundo é constituído por
depósitos mensais realizados pelo empregador, que correspondem a um percentual
da remuneração do trabalhador, acumulando um montante que serve como reserva
financeira destinada a atender necessidades básicas em situações específicas e
urgentes.
A legislação brasileira impõe
restrições ao uso dos recursos do FGTS, justamente para garantir que esse fundo
cumpra sua função social de proteção ao trabalhador. As circunstâncias que
autorizam o saque do FGTS são limitadas e voltadas a assegurar que o trabalhador
e seus dependentes tenham suporte financeiro em situações que podem comprometer
gravemente sua subsistência e dignidade. Essas situações incluem, além das
mencionadas, casos como o falecimento do trabalhador, o que permite o saque
pelos dependentes, e a compra da casa própria, que visa preservar o direito
social constitucionalmente protegido à moradia.
Permitir a penhora do FGTS para o
pagamento de dívida de honorários advocatícios comprometeria a função protetiva
desse fundo. Penhorá-lo desvirtuaria seu propósito original, colocando o
trabalhador em risco de desamparo financeiro em eventual circunstância de
vulnerabilidade social.
Além disso, é importante destacar
que o FGTS é um recurso destinado exclusivamente ao trabalhador, acumulado ao
longo de sua vida laboral para garantir que ele possa enfrentar situações
adversas com um mínimo de segurança econômica. Seu uso para quitar dívidas de
natureza diversa daquelas previstas na lei enfraqueceria o papel do fundo como
uma rede de proteção social e poderia levar a uma precarização ainda maior do
trabalhador, especialmente em um contexto de crise ou dificuldade financeira.
Lei afirma que as verbas do
FGTS são impenhoráveis
Considerando o relevante caráter
social do FGTS, o art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.036/1990 estabelece que “as contas
vinculadas em nome dos trabalhadores são absolutamente impenhoráveis”.
Essa disposição visa a garantir
sua função essencial de proteção ao trabalhador em momentos críticos,
assegurando sua dignidade e segurança financeira.
Nessa perspectiva, a 3ª Turma do
STJ já afastou a hipótese de penhora do FGTS para pagamento de honorários de
sucumbência: REsp 1.619.868/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em
24/10/2017, DJe de 30/10/2017.
Da penhora de 30% dos
vencimentos líquidos
Conforme a jurisprudência
pacífica do STJ, a regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no
art. 833, inciso IV, do CPC excepcionalmente pode ser relativizada,
independentemente de o crédito ser de natureza alimentar. Nesses casos
atípicos, admite-se a penhora de parte da remuneração do devedor, desde que
seja preservado o valor necessário para assegurar a subsistência digna dele e
de sua família.
Diante disso, o STJ, no caso
concreto, decidiu:
• afastar o bloqueio do saldo da
conta de FGTS do executado;
• autorizar que o Tribunal de
origem avalie se, após a penhora de 30% dos vencimentos líquidos, o valor
restante é suficiente para garantir uma subsistência digna para o devedor e sua
família.
Em suma:
Não é permitido o bloqueio do saldo do Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para o pagamento de créditos relacionados
a honorários, sejam contratuais ou sucumbenciais.
STJ. 4ª
Turma. REsp 1.913.811-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em
10/9/2024 (Info 825).