Dizer o Direito

domingo, 13 de outubro de 2024

A tentativa de fuga após o acidente é posterior aos fatos e não permite concluir que o réu agiu com dolo

Imagine a seguinte situação hipotética:

João, embriagado, conduzia um automóvel em uma rodovia, em velocidade incompatível com o local.

Determinado momento, João entrou na contramão e atropelou Paulo, que andava de bicicleta no acostamento da via.

Após a colisão, João tentou fugir do local, mas não conseguiu por causa dos danos sofridos por seu veículo. Paulo faleceu.

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João imputando-lhe a prática de homicídio doloso (art. 121 do Código Penal) em concurso com o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do Código de Trânsito).

O MP sustentou ter havido dolo eventual por parte do denunciado baseado em quatro razões:

I) a embriaguez do acusado;

II) o excesso de velocidade do veículo no momento da colisão;

III) o fato de a colisão ter acontecido no acostamento; e

IV) a tentativa de fuga do réu após os fatos.

 

João foi pronunciado e submetido a julgamento pelo Tribunal do Júri.

O excesso de velocidade não foi comprovado pela perícia. Também não se conseguiu ter certeza que a vítima estaria no acostamento da via.

Mesmo assim, os jurados decidiram condenar o réu.

O Tribunal de Justiça manteve a decisão do Júri.

Ainda inconformado, João interpôs recurso especial no qual sustentou que o reconhecimento do dolo foi manifestamente contrário à prova dos autos.

 

O STJ concordou com o réu?

SIM.

O simples fato de o acusado encontrar-se embriagado  não justifica por si só a imputação de dolo eventual.

Além disso, a tentativa de fuga após a colisão é conduta posterior à consumação do crime, e por isso, obviamente, não influencia o que aconteceu antes dela.

Tentar fugir do local dos fatos é uma postura reprovável (e que pode configurar um crime autônomo, tipificado no art. 305 do CTB), mas nada diz sobre o elemento subjetivo na conduta anterior do acusado, quando da colisão.

Dessa forma, o único fato efetivamente comprovado, que é a embriaguez do acusado, é por si só insuficiente para comprovar o dolo em sua conduta.

Por todos esses fatores, conclui-se que não há prova suficiente para embasar o veredito condenatório quanto ao dolo eventual, sendo necessária a cassação da sentença e a submissão do réu a novo júri, nos termos do art. 593, III, “d”, e § 3º, do CPP:

Art. 593. Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias:

(...)

III - das decisões do Tribunal do Júri, quando:

(...)

d) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.

(...)

§ 3º Se a apelação se fundar no nº III, d, deste artigo, e o tribunal ad quem se convencer de que a decisão dos jurados é manifestamente contrária à prova dos autos, dar-lhe-á provimento para sujeitar o réu a novo julgamento; não se admite, porém, pelo mesmo motivo, segunda apelação.

 

Em suma:

A tentativa de fuga após o acidente é posterior aos fatos e não permite concluir que o réu agiu com dolo. 

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.519.852-SC, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 3/9/2024 (Info 824).


Dizer o Direito!