O caso concreto, com adaptações,
foi o seguinte:
Em 21/02/2020, a revista “ISTO
É” publicou uma nota intitulada “O esforço de Bolsonaro para vigiar a mulher de
perto”. Confira o teor:
O esforço de Bolsonaro para vigiar a
mulher de perto
Michelle Bolsonaro, de 37 anos,
demonstra certo desconforto no casamento. Foi sozinha à festa de casamento da
deputada Carla Zambelli, na sexta-feira 14.
Na véspera do Natal, resolveu fazer uma
cirurgia nos seios, e o marido viajou para a praia na Bahia.
Nos últimos meses, viajava sozinha pelo
País com o ministro Osmar Terra, que acaba de cair. Agora, Bolsonaro resolveu
vigiá-la de perto e instalou-a na Biblioteca do Planalto.
https://istoe.com.br/o-esforco-de-bolsonaro-para-vigiar-a-mulher-de-perto/
Michelle Bolsonaro ajuizou ação de obrigação de fazer com pedido de
indenização por danos morais contra a editora responsável pela revista e contra
o jornalista que assinou a coluna, alegando que a nota publicada era puramente
especulativa sobre a integridade e o caráter da autora, insinuando de maneira
sorrateira e tendenciosa que ela havia sido infiel em seu matrimônio.
Sentença e acórdão negaram a indenização
Em primeira instância, o juízo julgou o pedido improcedente.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a improcedência por
entender que a autora, casada com o então Presidente da República, era pessoa
pública e estava sujeita à constante visibilidade e à exposição de sua vida
pública e pessoal.
Recurso especial
Inconformada, a autora interpôs recurso especial alegando que as
informações publicadas estavam ligadas diretamente à sua intimidade e vida
privada, fazendo menção a suposto desconforto no matrimônio, ao seu
comparecimento sozinha a uma festa e à realização de uma cirurgia estética,
fatos esses destituídos de qualquer interesse público e de relevância para o
convívio em sociedade.
Além disso, alegou que a nota havia manipulado a opinião do leitor para
despertar no público a ideia de que haveria infidelidade conjugal no
relacionamento dela com o então Presidente.
O STJ deu provimento ao recurso?
SIM.
No caso concreto, temos a interseção entre a liberdade de imprensa e a
intimidade de pessoas públicas. Trata-se de tema complexo.
A liberdade de imprensa é vital para a manutenção e o aprimoramento do
estado de direito e da democracia. Por outro lado, a proteção da intimidade é essencial
para preservar a dignidade das pessoas e os direitos individuais.
Pessoas públicas, como políticos, celebridades e figuras de destaque,
naturalmente se veem no centro das atenções da mídia. Essas personalidades
podem ter expectativa reduzida de privacidade em comparação com cidadãos
comuns, dada a natureza de suas posições e do interesse público que as envolve.
No entanto, tal
circunstância não autoriza a desconsideração total de sua intimidade.
A imprensa desempenha papel importante ao informar o público sobre
comportamento, ações e decisões de figuras públicas. É essencial, contudo, que
essa cobertura seja conduzida com responsabilidade e respeitando os limites
éticos e legais. O interesse público deve ser cuidadosamente ponderado em
relação ao direito à intimidade, evitando-se a divulgação ou especulações
desnecessárias sobre detalhes da vida pessoal sem relevância para o escopo
público.
A proteção
aos direitos da personalidade é assegurada a todos os indivíduos. É certo, no
entanto, que a esfera de proteção dos direitos da personalidade de pessoas
públicas ou notórias é reduzida. Especialmente com relação aos representantes
do povo, a redução da salvaguarda se justifica à medida em que são responsáveis
pela gestão da coisa pública. A transparência de certas condutas tem especial
relevância no regime democrático, porquanto viabiliza o controle e a
fiscalização pelo povo.
É verdade
que se o fato for eminentemente relacionado à vida privada, não guardando
qualquer pertinência com o desempenho da atividade pública, estará ausente o
interesse público a justificar a sua divulgação pela imprensa.
No caso concreto, o texto publicado abordou aspectos da vida pessoal da
então primeira-dama do Brasil, reportando eventos e situações cotidianas
particulares, com menções à sua vida conjugal e à sua saúde.
Tais informações não apresentam interesse público nem relevância
jornalística, considerando que estão relacionadas com a vida estritamente
privada da então primeira-dama.
O modo como a nota foi estruturada deu à notícia um ar de “fofoca”.
De fato, a publicação revela tom sensacionalista ao sinalizar, logo no
início, um “desconforto no casamento” atribuído à recorrente.
Além disso, imediatamente após mencionar que a primeira-dama “viajava
sozinha pelo País com o ministro Osmar Terra”, o texto sugere que o Presidente
decidiu “vigiá-la de perto”, insinuando que o casal estaria passando por certa
crise no matrimônio.
Percebe-se, portanto, que não havia interesse público que justificasse a
divulgação desse tipo de notícia pela imprensa. Além disso, não houve zelo na
apuração dos fatos, carecendo de verossimilhança as informações relatadas.
Logo, é possível concluir que houve abuso da liberdade de informar.
A figura da “primeira-dama” desempenha papel significativo na sociedade,
influenciando a percepção do governo, de suas políticas e até mesmo da cultura
no País. Embora não exerça função oficialmente definida, a primeira-dama é
frequentemente compreendida como representante simbólica da Nação, envolvida em
eventos diplomáticos e na promoção de causas sociais. Portanto, a maneira como
ela é retratada pela mídia pode ter consequências sociais profundas e
duradouras, o que reforça a necessidade da divulgação mais criteriosa de
informações relacionadas a sua pessoa.
Assim, o texto em questão, ao divulgar informações pessoais com conteúdo
pejorativo, sem clara relevância pública ou justificativa jornalística, violou
a honra, a intimidade e a imagem pública da então primeira-dama, contrariando
princípios fundamentais de respeito aos direitos da personalidade.
Caracterizados o ato ilícito e o dano moral, cabe indenização. Como
calculá-la?
O método bifásico, utilizado como referência pelo STJ para medir a
indenização por danos morais, atende aos requisitos de uma avaliação justa,
reduzindo possíveis arbitrariedades e evitando a adoção de critérios puramente
subjetivos por parte do julgador.
O método elimina a rigidez na quantificação do dano, proporcionando um
ponto de equilíbrio que busca estabelecer correspondência adequada entre o
valor da indenização e o interesse jurídico prejudicado, permitindo, por
conseguinte, a definição de um montante mais condizente com as particularidades
do caso em questão.
O STJ levou em consideração:
• os padrões aplicados em julgamentos similares, que versaram sobre o
abuso da liberdade de expressão e informação;
• o fato de a ofendida ser a primeira-dama do País na época dos fatos;
• a circunstância de a matéria jornalística ter sido publicada em
influente revista em formato digital, com abrangência nacional.
Com base nessas parâmetros, o Tribunal condenou
• a editora (revista) a pagar R$ 30 mil;
• o jornalista autor da nota a pagar R$ 10 mil.
Retratação
A compensação financeira, por si, não seria suficiente para reparar os
danos. Por esse motivo, o STJ determinou que a editora publique, pelo mesmo
meio digital e com a mesma amplitude de divulgação, uma retratação dentro do
prazo de 15 dias, contados do trânsito em julgado da decisão, sob pena de
pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), limitada a R$
30.000,00 (trinta mil reais).
Em suma:
A nota jornalística que divulga informações
estritamente pessoais da vida da primeira-dama do Brasil, abordando questões de
ordem puramente privada do casal presidencial, aparta-se da legítima
prerrogativa de informar, contrariando princípios fundamentais de direitos da
personalidade.
STJ. 4ª
Turma. REsp 2.066.238-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em
3/9/2024 (Info 825).