Dizer o Direito

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

A nota jornalística que divulga informações estritamente pessoais da vida da primeira-dama, abordando questões de ordem puramente privada do casal, gera indenização por danos morais

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Em 21/02/2020, a revista “ISTO É” publicou uma nota intitulada “O esforço de Bolsonaro para vigiar a mulher de perto”. Confira o teor:

 

O esforço de Bolsonaro para vigiar a mulher de perto

Michelle Bolsonaro, de 37 anos, demonstra certo desconforto no casamento. Foi sozinha à festa de casamento da deputada Carla Zambelli, na sexta-feira 14.

Na véspera do Natal, resolveu fazer uma cirurgia nos seios, e o marido viajou para a praia na Bahia.

Nos últimos meses, viajava sozinha pelo País com o ministro Osmar Terra, que acaba de cair. Agora, Bolsonaro resolveu vigiá-la de perto e instalou-a na Biblioteca do Planalto.

https://istoe.com.br/o-esforco-de-bolsonaro-para-vigiar-a-mulher-de-perto/

 

Michelle Bolsonaro ajuizou ação de obrigação de fazer com pedido de indenização por danos morais contra a editora responsável pela revista e contra o jornalista que assinou a coluna, alegando que a nota publicada era puramente especulativa sobre a integridade e o caráter da autora, insinuando de maneira sorrateira e tendenciosa que ela havia sido infiel em seu matrimônio.

 

Sentença e acórdão negaram a indenização

Em primeira instância, o juízo julgou o pedido improcedente.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a improcedência por entender que a autora, casada com o então Presidente da República, era pessoa pública e estava sujeita à constante visibilidade e à exposição de sua vida pública e pessoal.

 

Recurso especial

Inconformada, a autora interpôs recurso especial alegando que as informações publicadas estavam ligadas diretamente à sua intimidade e vida privada, fazendo menção a suposto desconforto no matrimônio, ao seu comparecimento sozinha a uma festa e à realização de uma cirurgia estética, fatos esses destituídos de qualquer interesse público e de relevância para o convívio em sociedade.

Além disso, alegou que a nota havia manipulado a opinião do leitor para despertar no público a ideia de que haveria infidelidade conjugal no relacionamento dela com o então Presidente.

 

O STJ deu provimento ao recurso?

SIM.

No caso concreto, temos a interseção entre a liberdade de imprensa e a intimidade de pessoas públicas. Trata-se de tema complexo.

A liberdade de imprensa é vital para a manutenção e o aprimoramento do estado de direito e da democracia. Por outro lado, a proteção da intimidade é essencial para preservar a dignidade das pessoas e os direitos individuais.

Pessoas públicas, como políticos, celebridades e figuras de destaque, naturalmente se veem no centro das atenções da mídia. Essas personalidades podem ter expectativa reduzida de privacidade em comparação com cidadãos comuns, dada a natureza de suas posições e do interesse público que as envolve. No entanto, tal circunstância não autoriza a desconsideração total de sua intimidade.

A imprensa desempenha papel importante ao informar o público sobre comportamento, ações e decisões de figuras públicas. É essencial, contudo, que essa cobertura seja conduzida com responsabilidade e respeitando os limites éticos e legais. O interesse público deve ser cuidadosamente ponderado em relação ao direito à intimidade, evitando-se a divulgação ou especulações desnecessárias sobre detalhes da vida pessoal sem relevância para o escopo público.

A proteção aos direitos da personalidade é assegurada a todos os indivíduos. É certo, no entanto, que a esfera de proteção dos direitos da personalidade de pessoas públicas ou notórias é reduzida. Especialmente com relação aos representantes do povo, a redução da salvaguarda se justifica à medida em que são responsáveis pela gestão da coisa pública. A transparência de certas condutas tem especial relevância no regime democrático, porquanto viabiliza o controle e a fiscalização pelo povo.

É verdade que se o fato for eminentemente relacionado à vida privada, não guardando qualquer pertinência com o desempenho da atividade pública, estará ausente o interesse público a justificar a sua divulgação pela imprensa.

No caso concreto, o texto publicado abordou aspectos da vida pessoal da então primeira-dama do Brasil, reportando eventos e situações cotidianas particulares, com menções à sua vida conjugal e à sua saúde.

Tais informações não apresentam interesse público nem relevância jornalística, considerando que estão relacionadas com a vida estritamente privada da então primeira-dama.

O modo como a nota foi estruturada deu à notícia um ar de “fofoca”.

De fato, a publicação revela tom sensacionalista ao sinalizar, logo no início, um “desconforto no casamento” atribuído à recorrente.

Além disso, imediatamente após mencionar que a primeira-dama “viajava sozinha pelo País com o ministro Osmar Terra”, o texto sugere que o Presidente decidiu “vigiá-la de perto”, insinuando que o casal estaria passando por certa crise no matrimônio.

Percebe-se, portanto, que não havia interesse público que justificasse a divulgação desse tipo de notícia pela imprensa. Além disso, não houve zelo na apuração dos fatos, carecendo de verossimilhança as informações relatadas. Logo, é possível concluir que houve abuso da liberdade de informar.

A figura da “primeira-dama” desempenha papel significativo na sociedade, influenciando a percepção do governo, de suas políticas e até mesmo da cultura no País. Embora não exerça função oficialmente definida, a primeira-dama é frequentemente compreendida como representante simbólica da Nação, envolvida em eventos diplomáticos e na promoção de causas sociais. Portanto, a maneira como ela é retratada pela mídia pode ter consequências sociais profundas e duradouras, o que reforça a necessidade da divulgação mais criteriosa de informações relacionadas a sua pessoa.

Assim, o texto em questão, ao divulgar informações pessoais com conteúdo pejorativo, sem clara relevância pública ou justificativa jornalística, violou a honra, a intimidade e a imagem pública da então primeira-dama, contrariando princípios fundamentais de respeito aos direitos da personalidade.

 

Caracterizados o ato ilícito e o dano moral, cabe indenização. Como calculá-la?

O método bifásico, utilizado como referência pelo STJ para medir a indenização por danos morais, atende aos requisitos de uma avaliação justa, reduzindo possíveis arbitrariedades e evitando a adoção de critérios puramente subjetivos por parte do julgador.

O método elimina a rigidez na quantificação do dano, proporcionando um ponto de equilíbrio que busca estabelecer correspondência adequada entre o valor da indenização e o interesse jurídico prejudicado, permitindo, por conseguinte, a definição de um montante mais condizente com as particularidades do caso em questão.

O STJ levou em consideração:

• os padrões aplicados em julgamentos similares, que versaram sobre o abuso da liberdade de expressão e informação;

• o fato de a ofendida ser a primeira-dama do País na época dos fatos;

• a circunstância de a matéria jornalística ter sido publicada em influente revista em formato digital, com abrangência nacional.

 

Com base nessas parâmetros, o Tribunal condenou

• a editora (revista) a pagar R$ 30 mil;

• o jornalista autor da nota a pagar R$ 10 mil.

 

Retratação

A compensação financeira, por si, não seria suficiente para reparar os danos. Por esse motivo, o STJ determinou que a editora publique, pelo mesmo meio digital e com a mesma amplitude de divulgação, uma retratação dentro do prazo de 15 dias, contados do trânsito em julgado da decisão, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), limitada a R$ 30.000,00 (trinta mil reais).

 

Em suma:

A nota jornalística que divulga informações estritamente pessoais da vida da primeira-dama do Brasil, abordando questões de ordem puramente privada do casal presidencial, aparta-se da legítima prerrogativa de informar, contrariando princípios fundamentais de direitos da personalidade. 

STJ. 4ª Turma. REsp 2.066.238-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 3/9/2024 (Info 825).


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