Dizer o Direito

terça-feira, 29 de outubro de 2024

A sentença trabalhista meramente homologatória de acordo serve como início de prova material para fins previdenciários?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João requereu administrativamente sua aposentadoria do INSS.

A autarquia previdenciária entendeu que o período de 01/07/2006 a 01/07/2008, que João alegava ter trabalhado para a Alfa Ltda não estava comprovado. Isso porque no CNIS esse período não aparecia.

 

“O Extrato de Contribuição (CNIS), também conhecido como Extrato Previdenciário, é um documento que apresenta o histórico de todas as contribuições à Previdência Social brasileira do cidadão. Ele informa todos os vínculos, remunerações e contribuições previdenciárias do cidadão.” (https://www.gov.br/pt-br/servicos-estaduais/emitir-extrato-de-contribuicao-cnis)

 

Inconformado, João ingressou com ação contra o INSS pedindo que esse período fosse reconhecido para fins previdenciários. Qual foi o documento que o autor apresentou para comprovar esse tempo de contribuição? Uma sentença trabalhista homologatória de acordo firmado entre João e a Alfa Ltda.

Explicando melhor isso:

- João ingressou com reclamação trabalhista contra a Alfa Ltda dizendo que trabalhou na empresa entre 01/07/2006 a 01/07/2008;

- antes que fossem ouvidas testemunhas ou produzidas provas, a Alfa fez um acordo com João reconhecendo que ele teria trabalhado na empresa durante o período reclamado;

- com isso, a Alfa aceitou assinar a CTPS de João retroativamente;

- o Juiz do Trabalho, sem analisar provas, homologou esse acordo, ou seja, disse que não havia empecilhos formais para a sua celebração e que ele poderia produzir efeitos para fins trabalhistas;

- essa é a sentença trabalhista homologatória de acordo.

 

O pedido de João deverá ser obrigatoriamente acolhido já que existe essa sentença trabalhista homologatória de acordo? A sentença trabalhista homologatória de acordo deve ser considerada, por si só, como início válido de prova para comprovar o tempo de contribuição para fins previdenciários?

NÃO.

A resposta para essa pergunta se encontra no § 3º do art. 55 da Lei nº 8.213/91:

Art. 55 (...)

§ 3º A comprovação do tempo de serviço para os fins desta Lei, inclusive mediante justificativa administrativa ou judicial, observado o disposto no art. 108 desta Lei, só produzirá efeito quando for baseada em início de prova material contemporânea dos fatos, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, na forma prevista no regulamento. (Redação dada pela Lei nº 13.846, de 2019)

 

Com base nesse dispositivo, a jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que:

A sentença trabalhista somente será admitida como início de prova material caso ela tenha sido fundada em outros elementos de prova que evidenciem o labor exercido na função e no período alegado pelo segurado.

STJ. 1ª Turma.  AgInt no AREsp 1.078.726/PE Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 01/10/2020.

 

Assim, se, no processo trabalhista não houve instrução probatória, com início de prova material, e não houve exame do mérito da demanda no qual o juiz tenha reconhecido que houve exercício da atividade laboral, apontando o trabalho desempenhado, no período correspondente etc., não se pode considerar exista início válido de prova material apto à comprovação de tempo de serviço, na forma do art. 55, § 3º, da Lei nº 8.213/91.

O STJ, a partir da interpretação da legislação de regência, conclui que o início de prova material é aquele realizado mediante documentos que comprovem o exercício de atividade nos períodos a serem contados.

Na ausência de instrução probatória adequada, incluindo início de prova material e exame de mérito da demanda trabalhista, não é possível poderá considerar a existência de um início válido de prova material que demonstre efetivamente o exercício da atividade laboral no período correspondente. Isso significa que a sentença trabalhista meramente homologatória do acordo não constitui início válido de prova material, apto à comprovação do tempo de serviço, na forma do art. 55, § 3º, da Lei nº 8.213/91, uma vez que, na prática, equivale à homologação de declaração das partes, reduzida a termo, exceto na hipótese de ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito devidamente comprovado.

Mutatis mutandis, foi o raciocínio que inspirou a súmula 149 do STJ:

Súmula 149-STJ: A prova exclusivamente testemunhal não basta a comprovação da atividade rurícola, para efeito da obtenção de benefício previdenciário.

 

A jurisprudência do STJ, embora não exija que o documento apresentado como início de prova material abranja todo o lapso controvertido, considera indispensável a sua contemporaneidade com os fatos alegados, devendo, assim, corresponder, pelo menos, a uma fração do período alegado, corroborado por idônea e robusta prova testemunhal, que amplie sua eficácia probatória.

 

Em suma:

• Regra geral: a sentença trabalhista homologatória de acordo, assim como a anotação na CTPS e demais documentos dela decorrentes, somente poderão ser consideradas como início de prova material válida quando houver elementos probatórios contemporâneos aos fatos alegados e que sejam aptos a demonstrar o tempo de serviço no período.

• Exceção: em situações de caso fortuito ou força maior, essa regra pode ser flexibilizada.

 

De acordo com a parte final do § 3º do art. 55 da Lei nº 8.213/91, em situações de caso fortuito ou força maior, o tempo poderia ser comprovado com prova exclusivamente testemunhal.

Ex1: se os registros de uma empresa foram destruídos em um incêndio (caso fortuito).

Ex: se a empresa fechou suas portas ou faliu, sem deixar registros ou documentos disponíveis (força maior).

 

Não houve no voto uma discussão mais aprofundada sobre o que constituiria caso fortuito ou força maior nem como essa flexibilização aconteceria. O relator parece ter incluído essa exceção na tese para manter consistência com a legislação existente, que já prevê essa possibilidade.

 

Tese fixada:

A sentença trabalhista homologatória de acordo, assim como a anotação na CTPS e demais documentos dela decorrentes, somente será considerada início de prova material válida, conforme o disposto no art. 55, § 3º, da Lei n. 8.213/91, quando houver nos autos elementos probatórios contemporâneos aos fatos alegados e que sejam aptos a demonstrar o tempo de serviço no período que se pretende reconhecer na ação previdenciária, exceto na hipótese de caso fortuito ou força maior. 

STJ. 1ª Seção. REsps 1.938.265-MG e 2.056.866-SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, julgado em 11/9/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1.188) (Info 825).


segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Para que se aplique o princípio da fungibilidade no processo penal é necessário demonstrar que não houve um erro grosseiro?

Imagine a seguinte situação hipotética:

O Ministério Público ofereceu denúncia contra João pela prática de homicídio.

No final da 1ª fase do procedimento do júri (sumário da culpa), o juiz proferiu sentença de absolvição sumária (art. 415 do CPP).

Confira o que diz o CPP sobre a absolvição sumária:

Art. 415.  O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando:

I – provada a inexistência do fato;

II – provado não ser ele autor ou partícipe do fato;

III – o fato não constituir infração penal;

IV – demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Parágrafo único. Não se aplica o disposto no inciso IV do caput deste artigo ao caso de inimputabilidade prevista no caput do art. 26 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, salvo quando esta for a única tese defensiva.

 

Contra essa sentença, o Ministério Público interpôs recurso em sentido estrito (RESE).

 

Agiu corretamente o MP?

NÃO. Isso porque o recurso cabível era APELAÇÃO, conforme prevê expressamente o art. 416 do CPP:

Art. 416. Contra a sentença de impronúncia ou de absolvição sumária caberá apelação.

 

O Tribunal de Justiça poderia conhecer do RESE como se fosse apelação, aplicando, no caso, o princípio da fungibilidade?

SIM.

 

Princípio da fungibilidade

A ideia do princípio da fungibilidade é a de que parte recorrente não será prejudicada se interpôs o recurso errado, desde que esteja de boa-fé, não tenha sido um erro grosseiro e o recurso incorreto tenha sido manejado no prazo do recurso certo.

O princípio da fungibilidade recursal também é chamado de “teoria do recurso indiferente”, “teoria do tanto vale”, “princípio da permutabilidade dos recursos” ou “princípio da conversibilidade dos recursos”.

Esse princípio tem previsão expressa no art. 579 do CPP:

Art. 579. Salvo a hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro.

Parágrafo único. Se o juiz, desde logo, reconhecer a impropriedade do recurso interposto pela parte, mandará processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível.

 

Aplicação da fungibilidade no processo penal:

1) Ausência de má-fé

Esse requisito está expressamente previsto no art. 579 do CPP.

Vale ressaltar que ausência de má-fé não é sinônimo de erro grosseiro.

Para se analisar se houve, ou não, má-fé, deve-se utilizar, por analogia (art. 3º do CPP), o art. 80 do CPC:

Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.

 

Nas hipóteses do art. 80 do CPC/2015, não se verifica como litigante de má-fé aquele que incide em erro grosseiro. Logo, o erro grosseiro somente implicará em litigância de má-fé se utilizado para justificar a incidência das hipóteses do art. 80 do CPC/2015.

Exemplo: será possível afastar a incidência do princípio da fungibilidade com base no erro grosseiro na escolha do recurso, desde que verificado o intuito manifestamente protelatório, tal como como ocorre no caso de interposição de agravo regimental em face de acórdão exarado por órgão julgador colegiado.

Conclui-se então que o erro grosseiro, por si só, não obsta a aplicação do princípio da fungibilidade.

 

Em atenção à análise histórica e da conjuntura atual do ordenamento vigente, o princípio da fungibilidade no processo penal deve ser aplicado quando ausente a má-fé e presente o preenchimento dos pressupostos do recurso cabível.

Má-fé não é sinônimo de erro grosseiro.

STJ. 3ª Seção. EDcl no AgRg nos EAREsp 1.240.307-MT, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 8/2/2023 (Info 13 – Edição Extraordinária).

 

O princípio da fungibilidade está previsto nos termos do art. 579, caput e parágrafo único, do CPP, “salvo a hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro. Se o juiz, desde logo, reconhecer a impropriedade do recurso interposto pela parte, mandará processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível”.

A existência de erro grosseiro, por si só, não é fator impeditivo para a aplicação do princípio da fungibilidade. O erro grosseiro obsta a aplicação do referido princípio caso sinalize má-fé ou inviabilize o preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso cabível, o que não ocorreu na hipótese.

STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 2.108.099/MG, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 22/8/2023.

 

2) Tempestividade

Trata-se de requisito implícito, que pode ser extraído do parágrafo único do art. 579 do CPP.

Apresentado o pedido após o transcurso do prazo recursal do recurso cabível, inaplicável o princípio da fungibilidade recursal (STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1.059.732/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe de 6/11/2017).

Nesse sentido:

A jurisprudência desta Corte assinala que é possível a aplicação da fungibilidade no uso do recurso de apelação em detrimento do recurso em sentido estrito, desde que demonstradas a ausência de má-fé e a tempestividade do instrumento processual.

STJ. 6ª Turma. AgRg no AREsp 1.541.008/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe de 12/11/2020.

 

É possível a aplicação da fungibilidade no uso do recurso de apelação em detrimento do recurso em sentido estrito, desde que demonstradas a ausência de má-fé e a tempestividade do instrumento processual.

STJ. 5ª Turma. AgRg no REsp 2.011.577-GO, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 27/9/2022 (Info Especial 10).

 

Em suma:

Em sede processual penal, caso verificado que o recurso interposto, embora flagrantemente inadequado (erro grosseiro), foi interposto dentro do prazo do recurso cabível e ostenta os requisitos de admissibilidade daquele reclamo, sendo possível processá-lo de acordo com o rito do recurso cabível, é possível receber tal reclamo no lugar daquele que seria o adequado por força do princípio da fungibilidade recursal, desde que não se verifique intuito manifestamente protelatório, condição apta a caracterizar a má-fé (art. 80 do CPC, c/c o art. 3º do CPP) e a obstar a incidência da norma processual em comento (art. 579 do CPP).

 

Tese fixada:

É adequada a aplicação do princípio da fungibilidade recursal aos casos em que, embora cabível recurso em sentido estrito, a parte impugna a decisão mediante apelação ou vice-versa, desde que observada a tempestividade e os demais pressupostos de admissibilidade do recurso cabível, na forma do art. 579, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal. 

STJ. 3ª Seção. REsp 2.082.481-MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 11/9/2024 (Recurso Repetitivo – Tema 1.219) (Info 825).

 

Voltando ao caso concreto:

No caso concreto, a apelação foi interposta dentro do prazo legal e não foi constatada má-fé por parte do Ministério Público, sendo viável, desse modo, a aplicação do princípio da fungibilidade recursal.

 

DOD Plus – princípio da fungibilidade no processo civil

O princípio da fungibilidade não está previsto de forma específica nem genérica no CPC. Apesar disso, a doutrina admite a sua existência. Nesse sentido:

Enunciado 104-FPPC: O princípio da fungibilidade recursal é compatível com o CPC e alcança todos os recursos, sendo aplicável de ofício.

 

Alguns autores afirmam que o CPC/2015 previu o princípio da fungibilidade de forma específica em dois casos:

• recebimento de embargos de declaração contra decisão monocrática em tribunal como agravo interno (art. 1.024, § 3º);

• recebimento de REsp como RE e vice-versa (arts. 1.032 e 1.033).

 

Com base na jurisprudência do STJ, para a aplicação do princípio da fungibilidade, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos:

a) dúvida objetiva a respeito do recurso cabível;

b) inexistência de erro grosseiro;

c) que o recurso interposto erroneamente tenha sido apresentado no prazo daquele que seria o correto.

 

Nesse sentido:

Como dito na decisão agravada, o recurso cabível na hipótese era o agravo em recurso especial, previsto art. 1.042 do CPC. Por isso, determinou-se a baixa dos autos à origem para exame do agravo , em razão do manifesto erro grosseiro na interposição de agravo interno em recurso especial, o que tornou inaplicável o princípio da fungibilidade, que pressupõe dúvida objetiva a respeito do recurso a ser interposto, inexistência de erro grosseiro e observância do prazo do recurso correto, o que não ocorre na espécie.

STJ. 1ª Turma. AgInt no AREsp 1.985.294/DF, Rel. Min. Paulo Sérgio Domingues, julgado em 26/6/2023.


domingo, 27 de outubro de 2024

INFORMATIVO Comentado 1150 STF (completo e resumido)

Olá, amigas e amigos do Dizer o Direito,

Já está disponível mais um INFORMATIVO COMENTADO.

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Confira abaixo o índice. Bons estudos.

ÍNDICE DO INFORMATIVO 1150 DO STF


Direito Constitucional

DIREITO À SAÚDE

§  As ações que pedem o fornecimento de medicamentos do Poder Público devem ser obrigatoriamente propostas contra a União e processadas na Justiça Federal?

 

LICENÇA-PARENTAL

§  Conclusões do STF sobre licença-parental.

 

DIREITO AMBIENTAL

CASTRAÇÃO COMPULSÓRIA DE ANIMAIS

§  É inconstitucional lei estadual que preveja a castração compulsória e indiscriminada de cães e gatos antes dos quatro meses de idade, sem considerar suas características individuais, pois viola a dignidade dos animais e compromete sua integridade física.

 

DIREITO ELEITORAL

INELEGIBILIDADE

§  O art. 1º, § 4º-A da LC 64/90 aplica-se exclusivamente aos julgamentos de gestores públicos realizados pelos Tribunais de Contas; esse dispositivo não é aplicável para o julgamento das contas do chefe do Poder Executivo pelo Poder Legislativo.

 

DIREITO PROCESSUAL PENAL

PROVAS

§  É constitucional o art. 17-B da Lei de Lavagem de Capitais, que permite que Delegados e membros do MP tenham acesso aos dados cadastrais de investigados, mesmo sem autorização judicial; tais dados são apenas os de qualificação pessoal, filiação e endereço.

 

TRIBUNAL DO JÚRI

§  Se o réu for condenado pelo Tribunal do Júri, ele deverá iniciar imediatamente a execução da pena imposta, não importando o total da pena fixada.


O relacionamento entre adolescente maior de 14 e menor de 18 anos (sugar baby) e um adulto (sugar daddy ou sugar mommy) configura crime?

Imagine a seguinte situação hipotética:

Pedro, 42 anos, estrangeiro, veio para o Brasil a passeio.

Antes da viagem, ele se cadastrou em um site de relacionamentos chamado “Seeking Arrangement”, voltado para conectar “sugar daddies” (homens mais velhos e ricos) com “sugar babies” (mulheres mais jovens em busca de benefícios financeiros).

Por intermédio desse site, Pedro conheceu Letícia, uma adolescente de 14 anos. Letícia sonhava em se tornar uma influenciadora digital.

Pedro, aproveitando-se disso, ofereceu ajudá-la em sua carreira. Além disso, ele comprou bens para a adolescente e pagou sua hospedagem em um hotel de luxo na praia.

Determinado dia, Pedro levou Letícia sozinha para passear na praia, comprou roupas de banho para ela e beberam champanhe juntos. Ao retornarem ao hotel, Pedro beijou Letícia no elevador e a apalpou, sendo flagrado pelas câmeras de segurança.

Mais tarde, policiais foram até o quarto de Pedro após receberem uma denúncia. Eles encontraram Pedro e Letícia completamente nus na cama. Pedro foi preso em flagrante.

No processo criminal, Pedro foi denunciado e condenado pelo crime de favorecimento da exploração sexual de adolescente (art. 218-B, §2º, I do Código Penal):

Art. 218-B.  Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos.

(...)

§ 2º Incorre nas mesmas penas:

I - quem pratica conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém menor de 18 (dezoito) e maior de 14 (catorze) anos na situação descrita no caput deste artigo;

(...)

 

A defesa recorreu alegando que não houve crime, pois Letícia havia consentido com os atos e a relação era apenas um acordo “sugar” normal.

A condenação foi mantida pelo Tribunal de Justiça.

Ainda inconformado, Pedro interpôs recurso especial.

 

Para o STJ, houve crime? A condenação foi mantida?

SIM.

A dignidade sexual é um valor moral, e o direito penal protege esse valor para garantir os princípios éticos da sociedade. Ao criminalizar atos que violam a dignidade sexual, o legislador reforça o compromisso de proteger os membros mais vulneráveis da sociedade.

O crime de exploração sexual de menores, previsto no art. 218-B, §§ 1º e 2º, do Código Penal, é um exemplo claro da ligação entre direito e moral. O § 1º desse artigo define como crime a prática de conjunção carnal ou outro ato sexual com menor de 18 e maior de 14 anos nas situações descritas no caput. Já o § 2º responsabiliza o dono, gerente ou responsável pelo local onde ocorrem tais práticas.

O crime previsto no art. 218-B, § 2º, I, do CP tem por objetivo tutelar adolescentes entre 14 e 18 anos.

Essa proteção decorre da ideia de que, embora adolescentes possam expressar sua sexualidade, ainda estão em fase de desenvolvimento e, por isso, precisam de cuidados extras para evitar exploração e abuso. A adolescência, entre 14 e 18 anos, é uma fase crítica, marcada por mudanças físicas, emocionais e psicológicas. Nessa etapa, os jovens ainda não têm maturidade plena para tomar decisões complexas, como as que envolvem a sexualidade. A vulnerabilidade pode ser aumentada por fatores como pressão social e a influência de adultos que possam se aproveitar dessa imaturidade.

O objetivo da lei é evitar que adultos usem de poder econômico ou influência para envolver adolescentes em práticas sexuais.

Ao tipificar a conduta de forma clara, a lei busca desestimular comportamentos predatórios e garantir um ambiente seguro para o desenvolvimento saudável dos jovens.

A lei protege a dignidade sexual de adolescentes entre 14 e 18 anos, o que é tanto uma necessidade jurídica quanto moral, especialmente em uma sociedade onde a sexualidade precoce é cada vez mais comum.

O termo "sugar baby" refere-se a um jovem que mantém uma relação com uma pessoa mais velha e financeiramente estável, o "sugar daddy", em que a troca de benefícios materiais é predominante.

Essas relações, geralmente, têm mais a ver com interesses materiais do que com afeto, sendo um acordo consensual entre adultos. A tipificação penal depende do contexto específico de cada caso. Em princípio, nessa relação, mesmo com troca de benefícios materiais, se não houver abuso ou vulnerabilidade, não há crime de exploração sexual, pois as duas partes são adultas e consentem com os termos do relacionamento.

Por outro lado, induzir um adolescente, entre 14 e 18 anos, a praticar ato sexual mediante benefícios econômicos configura o crime previsto no art. 218-B, § 2º, inciso I, do Código Penal. Essa prática, que substitui normas sociais afetivas por uma relação puramente comercial, degrada as relações interpessoais, algo que a lei proíbe.

Assim, induzir adolescentes, entre 14 e 18 anos, a relações sexuais por meio de vantagens econômicas, como no caso de sugar babies, viola os princípios de proteção à dignidade e ao desenvolvimento saudável dos jovens.

 

Em suma:

O relacionamento entre adolescente maior de 14 e menor de 18 anos (sugar baby) e um adulto (sugar daddy ou sugar mommy) que oferece vantagens econômicas configura o tipo penal previsto no art. 218-B, § 2º, I, do Código Penal, porquanto essa relação se constrói a partir de promessas de benefícios econômicos diretos e indiretos, induzindo o menor à prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso. 

STJ. 5ª Turma. AREsp 2.529.631-RJ, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 10/9/2024 (Info 825).


sábado, 26 de outubro de 2024

É possível penhorar o FGTS para pagar honorários advocatícios?

Imagine a seguinte situação hipotética:

João ajuizou ação contra Pedro.

O pedido foi julgado improcedente.

João foi condenado a pagar R$ 50 mil a título de honorários advocatícios em razão de sucumbência sofrida.

Esse valor (R$ 50 mil) deveria ser pago a Dr. Rafael, advogado de Pedro.

Houve o trânsito em julgado.

Rafael ingressou com cumprimento de sentença pedindo o recebimento do valor.

O juiz, a requerimento do credor, determinou a expedição de ofício à Caixa Econômica Federal determinando o bloqueio de eventual saldo em conta de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS.

Em palavras mais simples, o magistrado determinou o bloqueio do saldo do FGTS (de titularidade de João) para o pagamento da dívida. O juiz argumentou que, como os honorários constituem-se em verba alimentar, seria possível a utilização do FGTS para quitação dessa dívida.

 

A decisão do magistrado foi mantida pelo STJ? É permitido o bloqueio do saldo do FGTS para o pagamento de créditos relacionados a honorários advocatícios?

NÃO.

 

Créditos de honorários têm natureza alimentar

Inicialmente, é importante recordar que:

Os  créditos  resultantes  de  honorários  advocatícios têm natureza alimentar e equiparam-se aos trabalhistas para efeito de habilitação em falência.

STJ. Corte Especial. REsp 1.152.218/RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 7/5/2014 (Recurso Repetitivo).

 

Vale ressaltar que tanto os honorários sucumbenciais quanto os contratuais possuem natureza jurídica alimentar.

O art. 85, § 14, do CPC/2015 é claro ao estabelecer que “os honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho”.

 

É possível a penhora do saldo do FGTS para pagamento de pensão alimentícia

O STJ entende que é possível a penhora de valores constantes na conta vinculada do FGTS para a execução de alimentos. Isso porque a situação envolve a própria subsistência do alimentando, prevalecendo o princípio constitucional da dignidade da pessoa e do direito à vida. Nesse sentido: AgRg no REsp n. 1.427.836/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/4/2014.

 

No entanto, não é possível a penhora do saldo do FGTS para pagamento de honorários, mesmo sendo verba alimentar

O STJ, em diversos julgados, tem tratado de modo diverso prestações alimentícias e verbas de natureza alimentar. Isso ocorre porque o ordenamento jurídico estabelece uma hierarquia de penhorabilidade orientada pela relevância de cada bem.

As prestações alimentícias ocupam o topo dessa escala, dada sua importância para a manutenção da vida e da dignidade.

Por outro lado, os honorários advocatícios, embora reconhecidos como créditos de natureza alimentar, não possuem o mesmo grau de urgência e essencialidade do que os créditos alimentícios tradicionais, o que justifica o tratamento distinto.

Nessa direção, a Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp 1.815.055/SP, afirmou que “não se deve igualar verbas de natureza alimentar às prestações alimentícias, tampouco atribuir àquelas os mesmos benefícios conferidos pelo legislador a estas, sob pena de enfraquecer a proteção ao direito, à dignidade e à sobrevivência do credor de alimentos (familiares, indenizatórios ou voluntários), por causa da vulnerabilidade inerente do credor de alimentos quando comparado ao credor de débitos de natureza alimentar. [...]. As exceções destinadas à execução de prestação alimentícia, como a penhora dos bens descritos no art. 833, IV e X, do CPC/15, e do bem de família (art. 3º, III, da Lei 8.009/90), assim como a prisão civil, não se estendem aos honorários advocatícios, como não se estendem às demais verbas apenas com natureza alimentar, sob pena de eventualmente termos que cogitar sua aplicação a todos os honorários devidos a quaisquer profissionais liberais, como médicos, engenheiros, farmacêuticos, e a tantas outras categorias” (REsp n. 1.815.055/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 3/8/2020, DJe de 26/8/2020).

Recentemente, a Corte Especial reafirmou esse entendimento ao julgar os recursos especiais repetitivos n. 1.954.380/SP e 1.954.382/SP (Tema n. 1.153), estabelecendo que “a verba honorária sucumbencial, a despeito da sua natureza alimentar, não se enquadra na exceção prevista no § 2º do art. 833 do CPC/2015 (penhora para pagamento de prestação alimentícia)”.

Portanto, embora a penhora do FGTS seja permitida para garantir o pagamento de prestações alimentícias, essa mesma medida não deve ser aplicada aos créditos decorrentes de honorários advocatícios.

 

Finalidade do FGTS

O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço foi criado com a finalidade de proteger o trabalhador em situações de vulnerabilidade, oferecendo segurança financeira em momentos críticos como o desemprego involuntário, a aposentadoria e doenças graves, conforme estabelecido no art. 20 da Lei nº 8.036/1990. Esse fundo é constituído por depósitos mensais realizados pelo empregador, que correspondem a um percentual da remuneração do trabalhador, acumulando um montante que serve como reserva financeira destinada a atender necessidades básicas em situações específicas e urgentes.

A legislação brasileira impõe restrições ao uso dos recursos do FGTS, justamente para garantir que esse fundo cumpra sua função social de proteção ao trabalhador. As circunstâncias que autorizam o saque do FGTS são limitadas e voltadas a assegurar que o trabalhador e seus dependentes tenham suporte financeiro em situações que podem comprometer gravemente sua subsistência e dignidade. Essas situações incluem, além das mencionadas, casos como o falecimento do trabalhador, o que permite o saque pelos dependentes, e a compra da casa própria, que visa preservar o direito social constitucionalmente protegido à moradia.

Permitir a penhora do FGTS para o pagamento de dívida de honorários advocatícios comprometeria a função protetiva desse fundo. Penhorá-lo desvirtuaria seu propósito original, colocando o trabalhador em risco de desamparo financeiro em eventual circunstância de vulnerabilidade social.

Além disso, é importante destacar que o FGTS é um recurso destinado exclusivamente ao trabalhador, acumulado ao longo de sua vida laboral para garantir que ele possa enfrentar situações adversas com um mínimo de segurança econômica. Seu uso para quitar dívidas de natureza diversa daquelas previstas na lei enfraqueceria o papel do fundo como uma rede de proteção social e poderia levar a uma precarização ainda maior do trabalhador, especialmente em um contexto de crise ou dificuldade financeira.

 

Lei afirma que as verbas do FGTS são impenhoráveis

Considerando o relevante caráter social do FGTS, o art. 2º, § 2º, da Lei nº 8.036/1990 estabelece que “as contas vinculadas em nome dos trabalhadores são absolutamente impenhoráveis”.

Essa disposição visa a garantir sua função essencial de proteção ao trabalhador em momentos críticos, assegurando sua dignidade e segurança financeira.

Nessa perspectiva, a 3ª Turma do STJ já afastou a hipótese de penhora do FGTS para pagamento de honorários de sucumbência: REsp 1.619.868/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 24/10/2017, DJe de 30/10/2017.

 

Da penhora de 30% dos vencimentos líquidos

Conforme a jurisprudência pacífica do STJ, a regra de impenhorabilidade das verbas salariais prevista no art. 833, inciso IV, do CPC excepcionalmente pode ser relativizada, independentemente de o crédito ser de natureza alimentar. Nesses casos atípicos, admite-se a penhora de parte da remuneração do devedor, desde que seja preservado o valor necessário para assegurar a subsistência digna dele e de sua família.

Diante disso, o STJ, no caso concreto, decidiu:

• afastar o bloqueio do saldo da conta de FGTS do executado;

• autorizar que o Tribunal de origem avalie se, após a penhora de 30% dos vencimentos líquidos, o valor restante é suficiente para garantir uma subsistência digna para o devedor e sua família.

 

Em suma:

Não é permitido o bloqueio do saldo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para o pagamento de créditos relacionados a honorários, sejam contratuais ou sucumbenciais. 

STJ. 4ª Turma. REsp 1.913.811-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 10/9/2024 (Info 825).


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

A nota jornalística que divulga informações estritamente pessoais da vida da primeira-dama, abordando questões de ordem puramente privada do casal, gera indenização por danos morais

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

Em 21/02/2020, a revista “ISTO É” publicou uma nota intitulada “O esforço de Bolsonaro para vigiar a mulher de perto”. Confira o teor:

 

O esforço de Bolsonaro para vigiar a mulher de perto

Michelle Bolsonaro, de 37 anos, demonstra certo desconforto no casamento. Foi sozinha à festa de casamento da deputada Carla Zambelli, na sexta-feira 14.

Na véspera do Natal, resolveu fazer uma cirurgia nos seios, e o marido viajou para a praia na Bahia.

Nos últimos meses, viajava sozinha pelo País com o ministro Osmar Terra, que acaba de cair. Agora, Bolsonaro resolveu vigiá-la de perto e instalou-a na Biblioteca do Planalto.

https://istoe.com.br/o-esforco-de-bolsonaro-para-vigiar-a-mulher-de-perto/

 

Michelle Bolsonaro ajuizou ação de obrigação de fazer com pedido de indenização por danos morais contra a editora responsável pela revista e contra o jornalista que assinou a coluna, alegando que a nota publicada era puramente especulativa sobre a integridade e o caráter da autora, insinuando de maneira sorrateira e tendenciosa que ela havia sido infiel em seu matrimônio.

 

Sentença e acórdão negaram a indenização

Em primeira instância, o juízo julgou o pedido improcedente.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo manteve a improcedência por entender que a autora, casada com o então Presidente da República, era pessoa pública e estava sujeita à constante visibilidade e à exposição de sua vida pública e pessoal.

 

Recurso especial

Inconformada, a autora interpôs recurso especial alegando que as informações publicadas estavam ligadas diretamente à sua intimidade e vida privada, fazendo menção a suposto desconforto no matrimônio, ao seu comparecimento sozinha a uma festa e à realização de uma cirurgia estética, fatos esses destituídos de qualquer interesse público e de relevância para o convívio em sociedade.

Além disso, alegou que a nota havia manipulado a opinião do leitor para despertar no público a ideia de que haveria infidelidade conjugal no relacionamento dela com o então Presidente.

 

O STJ deu provimento ao recurso?

SIM.

No caso concreto, temos a interseção entre a liberdade de imprensa e a intimidade de pessoas públicas. Trata-se de tema complexo.

A liberdade de imprensa é vital para a manutenção e o aprimoramento do estado de direito e da democracia. Por outro lado, a proteção da intimidade é essencial para preservar a dignidade das pessoas e os direitos individuais.

Pessoas públicas, como políticos, celebridades e figuras de destaque, naturalmente se veem no centro das atenções da mídia. Essas personalidades podem ter expectativa reduzida de privacidade em comparação com cidadãos comuns, dada a natureza de suas posições e do interesse público que as envolve. No entanto, tal circunstância não autoriza a desconsideração total de sua intimidade.

A imprensa desempenha papel importante ao informar o público sobre comportamento, ações e decisões de figuras públicas. É essencial, contudo, que essa cobertura seja conduzida com responsabilidade e respeitando os limites éticos e legais. O interesse público deve ser cuidadosamente ponderado em relação ao direito à intimidade, evitando-se a divulgação ou especulações desnecessárias sobre detalhes da vida pessoal sem relevância para o escopo público.

A proteção aos direitos da personalidade é assegurada a todos os indivíduos. É certo, no entanto, que a esfera de proteção dos direitos da personalidade de pessoas públicas ou notórias é reduzida. Especialmente com relação aos representantes do povo, a redução da salvaguarda se justifica à medida em que são responsáveis pela gestão da coisa pública. A transparência de certas condutas tem especial relevância no regime democrático, porquanto viabiliza o controle e a fiscalização pelo povo.

É verdade que se o fato for eminentemente relacionado à vida privada, não guardando qualquer pertinência com o desempenho da atividade pública, estará ausente o interesse público a justificar a sua divulgação pela imprensa.

No caso concreto, o texto publicado abordou aspectos da vida pessoal da então primeira-dama do Brasil, reportando eventos e situações cotidianas particulares, com menções à sua vida conjugal e à sua saúde.

Tais informações não apresentam interesse público nem relevância jornalística, considerando que estão relacionadas com a vida estritamente privada da então primeira-dama.

O modo como a nota foi estruturada deu à notícia um ar de “fofoca”.

De fato, a publicação revela tom sensacionalista ao sinalizar, logo no início, um “desconforto no casamento” atribuído à recorrente.

Além disso, imediatamente após mencionar que a primeira-dama “viajava sozinha pelo País com o ministro Osmar Terra”, o texto sugere que o Presidente decidiu “vigiá-la de perto”, insinuando que o casal estaria passando por certa crise no matrimônio.

Percebe-se, portanto, que não havia interesse público que justificasse a divulgação desse tipo de notícia pela imprensa. Além disso, não houve zelo na apuração dos fatos, carecendo de verossimilhança as informações relatadas. Logo, é possível concluir que houve abuso da liberdade de informar.

A figura da “primeira-dama” desempenha papel significativo na sociedade, influenciando a percepção do governo, de suas políticas e até mesmo da cultura no País. Embora não exerça função oficialmente definida, a primeira-dama é frequentemente compreendida como representante simbólica da Nação, envolvida em eventos diplomáticos e na promoção de causas sociais. Portanto, a maneira como ela é retratada pela mídia pode ter consequências sociais profundas e duradouras, o que reforça a necessidade da divulgação mais criteriosa de informações relacionadas a sua pessoa.

Assim, o texto em questão, ao divulgar informações pessoais com conteúdo pejorativo, sem clara relevância pública ou justificativa jornalística, violou a honra, a intimidade e a imagem pública da então primeira-dama, contrariando princípios fundamentais de respeito aos direitos da personalidade.

 

Caracterizados o ato ilícito e o dano moral, cabe indenização. Como calculá-la?

O método bifásico, utilizado como referência pelo STJ para medir a indenização por danos morais, atende aos requisitos de uma avaliação justa, reduzindo possíveis arbitrariedades e evitando a adoção de critérios puramente subjetivos por parte do julgador.

O método elimina a rigidez na quantificação do dano, proporcionando um ponto de equilíbrio que busca estabelecer correspondência adequada entre o valor da indenização e o interesse jurídico prejudicado, permitindo, por conseguinte, a definição de um montante mais condizente com as particularidades do caso em questão.

O STJ levou em consideração:

• os padrões aplicados em julgamentos similares, que versaram sobre o abuso da liberdade de expressão e informação;

• o fato de a ofendida ser a primeira-dama do País na época dos fatos;

• a circunstância de a matéria jornalística ter sido publicada em influente revista em formato digital, com abrangência nacional.

 

Com base nessas parâmetros, o Tribunal condenou

• a editora (revista) a pagar R$ 30 mil;

• o jornalista autor da nota a pagar R$ 10 mil.

 

Retratação

A compensação financeira, por si, não seria suficiente para reparar os danos. Por esse motivo, o STJ determinou que a editora publique, pelo mesmo meio digital e com a mesma amplitude de divulgação, uma retratação dentro do prazo de 15 dias, contados do trânsito em julgado da decisão, sob pena de pagamento de multa diária de R$ 1.000,00 (um mil reais), limitada a R$ 30.000,00 (trinta mil reais).

 

Em suma:

A nota jornalística que divulga informações estritamente pessoais da vida da primeira-dama do Brasil, abordando questões de ordem puramente privada do casal presidencial, aparta-se da legítima prerrogativa de informar, contrariando princípios fundamentais de direitos da personalidade. 

STJ. 4ª Turma. REsp 2.066.238-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, julgado em 3/9/2024 (Info 825).


quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Comentários à Súmula 672 do STJ

Imagine a seguinte situação hipotética:

João e sua esposa Regina foram parados em uma blitz da Polícia Rodoviária Federal.

João, que conduzia o veículo, apresentava sinais de embriaguez.

Os policiais solicitaram que João fizesse o teste do bafômetro.

Regina, que era Policial Rodoviária Federal, mas estava de folga, decide interferir, dizendo ao marido para se recusar a realizar o teste. Em seguida, ela entrou no posto policial e, exaltada, apresentou sua identidade funcional, exigindo que seu marido fosse liberado sem que o bafômetro fosse realizado. Ela falou que, como colega, merecia um tratamento diferenciado e chega a ofender os policiais, tentando utilizar seu cargo para obter vantagem pessoal.

Os policiais reportaram o episódio à corregedoria, que instaurou um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) para apurar a conduta de Regina.

A comissão processante apurou os fatos e emitiu um relatório sugerindo a aplicação de uma suspensão de 60 dias contra Regina. Isso porque a comissão processante entendeu que a servidora descumpriu os devedores capitulados nos arts. 116, II, III e IX, da Lei 8.112/90:

Art. 116. São deveres do servidor:

(...)

II - ser leal às instituições a que servir;

III - observar as normas legais e regulamentares;

(...)

IX - manter conduta compatível com a moralidade administrativa;

 

Essa foi a capitulação legal feita pela comissão.

O Ministro da Justiça, contudo, discordou e alterou a capitulação legal, aplicando, por consequência, uma penalidade mais severa, qual seja, a demissão, com base no art. 132, V e XIII da Lei nº 8.112/1990:

Art. 132. A demissão será aplicada nos seguintes casos:

(...)

V - incontinência pública e conduta escandalosa, na repartição;

(...)

XIII - transgressão dos incisos IX a XVI do art. 117.

 

Art. 117. Ao servidor é proibido:

(...)

IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

 

Inconformada, Regina impetrou mandado de segurança alegando que a alteração da classificação jurídica da conduta violou seu direito ao contraditório e à ampla defesa, e que o PAD deveria ser anulado.

 

O STJ concordou com os argumentos da impetrante?

NÃO.

O indiciado se defende dos fatos que lhe são imputados e não de sua classificação legal, de sorte que a posterior alteração da capitulação legal da conduta não tem o condão de inquinar de nulidade o PAD. A descrição dos fatos ocorridos, desde que feita de modo a viabilizar a defesa do acusado, afasta a alegação de ofensa ao princípio da ampla defesa. Nesse sentido:

A ampliação da acusação ou mesmo mudança da tipificação da conduta infracional não determina a invalidade do procedimento porquanto, como cediço, o indiciado se defende dos fatos que lhe são imputados e não de sua classificação legal. A descrição dos fatos ocorridos, desde que feita de modo a viabilizar a defesa do acusado, afasta a alegação de ofensa ao princípio da ampla defesa.

STJ. 1ª Seção. MS n. 22.200/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 28/8/2019.

 

Jurisprudência em Teses (Ed. 154):

8) No PAD, a alteração da capitulação legal imputada ao acusado não enseja nulidade, uma vez que o indiciado se defende dos fatos nele descritos e não dos enquadramentos legais.

 

Esse é também o entendimento do STF:

Processo administrativo-disciplinar: congruência entre a indiciação e o fundamento da punição aplicada, que se verifica a partir dos fatos imputados e não de sua capitulação legal. 

STF. Plenário. MS 23.299, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgado em 6/3/2002.

STF. 2ª Turma. RMS 24536, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 2/12/2003.

STF. 1ª Turma. RMS 25300 AgR, Rel. Min. Rosa Weber, julgado em 12/11/2018.

 

Em suma:

Súmula 672-STJ: A alteração da capitulação legal da conduta do servidor, por si só, não enseja a nulidade do processo administrativo disciplinar.

STJ. 1ª Seção. Aprovada em 11/9/2024 (Info 825).


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Comentários à Súmula 673 do STJ

Qual é a natureza jurídica dos Conselhos Profissionais (exs.: CREA, CRM, COREN, CRO etc.)?

Os Conselhos Profissionais possuem natureza jurídica de autarquias federais.

Exceção: a OAB que, segundo a concepção majoritária, é um serviço público independente, categoria ímpar no elenco das personalidades jurídicas existentes no direito brasileiro.

 

Anuidades

Os Conselhos podem cobrar um valor todos os anos dos profissionais que integram a sua categoria. A isso se dá o nome de anuidade (art. 4º, II, da Lei nº 12.514/2011).

 

Qual é a natureza jurídica dessas anuidades?

Conforme jurisprudência do STF (ADI 4697/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 06/10/2016), a anuidade devida aos conselhos profissionais são tributos da espécie contribuições de interesse das categorias profissionais (art. 149, CF/88):

O entendimento iterativo do STF é na direção de as anuidades cobradas pelos conselhos profissionais caracterizarem-se como tributos da espécie “contribuições de interesse das categorias profissionais”, nos termos do art. 149 da Constituição da República.

STF. Plenário. ADI 4697, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 06/10/2016.

 

Essa é também a posição do STJ:

As anuidades devidas aos conselhos profissionais constituem contribuições de interesse das categorias profissionais e estão sujeitas a lançamento de ofício, o qual apenas se aperfeiçoa com a notificação do contribuinte para efetuar o pagamento do tributo e o esgotamento das instâncias administrativas, em caso de recurso, sendo necessária a comprovação da remessa da intimação.

STJ. 2ª Turma. AgInt no AREsp 1689783/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, julgado em 26/10/2020.

 

Fato gerador

O fato gerador das anuidades é a existência de inscrição no conselho, ainda que por tempo limitado, ao longo do exercício (art. 5º da Lei nº 12.514/2011).

 

Lançamento

As anuidades devidas aos conselhos profissionais estão sujeitas a lançamento de ofício.

Após o Conselho realizar o lançamento, ele precisa comunicar que fez isso ao sujeito passivo (profissional) para que este possa pagar a contribuição ou impugná-la, caso não concorde com o que está sendo cobrado.

 

Forma de notificação do profissional

A legislação não prevê a forma como o profissional deverá ser notificado de que houve o lançamento de ofício e de que ele deverá pagar a contribuição.

 

Execução fiscal

Como a anuidade é um tributo e os Conselhos profissionais são autarquias, em caso de inadimplemento, o valor devido é cobrado por meio de uma execução fiscal.

 

Competência

A execução fiscal, nesse caso, é de competência da Justiça Federal, tendo em vista que os Conselhos são autarquias federais (Súmula 66 do STJ).

 

Feitos esses esclarecimentos, imagine a seguinte situação hipotética:

João é profissional inscrito no Conselho Regional de Farmácia do Estado de São Paulo.

Ele ficou em débito com as anuidades devidas ao Conselho nos exercícios de 2012 a 2014.

Em razão da inadimplência, o Conselho realizou o lançamento de ofício das anuidades atrasadas e propôs execução fiscal para cobrança do débito.

O Juiz Federal determinou que o exequente, no prazo de 15 dias, comprovasse que fez a notificação do executado acerca das anuidades cobradas.

O exequente não comprovou, razão pela qual o juízo de primeiro grau julgou extinta a execução fiscal devido à falta de notificação do executado sobre as anuidades cobradas. Desse modo, considerou que a Certidão de Dívida Ativa não preenchia os requisitos de liquidez e certeza do título executivo.

A sentença foi mantida pelo TRF da 3ª Região.

Ainda inconformado, o Conselho interpôs recurso especial.

 

A sentença e o acórdão do TRF foram mantidos pelo STJ?

SIM.

Essas decisões estão em conformidade com a orientação consolidada no STJ, segundo a qual as:

Anuidades devidas aos conselhos profissionais constituem contribuições de interesse das categorias profissionais e estão sujeitas a lançamento de ofício, que apenas se aperfeiçoa com a notificação do contribuinte para efetuar o pagamento do tributo e o esgotamento das instâncias administrativas, em caso de recurso, sendo necessária a comprovação da remessa da comunicação.

STJ. 2ª Turma. REsp 1.788.488/RS, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 8/4/2019.

 

As anuidades devidas aos conselhos profissionais estão sujeitas a lançamento de ofício, que apenas se aperfeiçoa com a notificação do contribuinte para efetuar o pagamento do tributo e o esgotamento das instâncias administrativas, em caso de recurso, sendo necessária a comprovação da remessa da comunicação. 

STJ. 1ª Turma. AgInt no REsp 2.133.371-SP, Rel. Min. Regina Helena Costa, julgado em 17/6/2024 (Info 19 – Edição Extraordinária).

 

Esse entendimento reiterado do STJ foi consolidado em uma súmula:

Súmula 673-STJ: A comprovação da regular notificação do executado para o pagamento da dívida de anuidade de conselhos de classe ou, em caso de recurso, o esgotamento das instâncias administrativas são requisitos indispensáveis à constituição e execução do crédito.

STJ. 1ª Seção. Aprovada em 11/9/2024 (Info 825).

 

Resumo dos principais fundamentos dos acórdãos que deram origem ao enunciado:

• As anuidades devidas aos conselhos profissionais (como o Conselho Regional de Farmácia) são consideradas contribuições de interesse das categorias profissionais.

• Essas contribuições possuem natureza tributária, ou seja, são tratadas como um tributo.

• Como tributo, o crédito das anuidades está sujeito a lançamento de ofício. O lançamento de ofício é um procedimento administrativo em que a administração fiscal realiza a constituição do crédito tributário sem a participação direta do contribuinte.

• O lançamento tributário, para ser considerado válido, apenas se aperfeiçoa com a notificação do contribuinte.

• A notificação serve para que o contribuinte seja formalmente informado sobre a obrigação de pagamento do tributo.

• Essa notificação é essencial para que o contribuinte tenha a oportunidade de:

i) Pagar o tributo; ou

ii) Apresentar defesa ou recurso na esfera administrativa, caso discorde do valor ou da obrigação.

 

• O esgotamento das instâncias administrativas, no caso de recurso, é condição para que o crédito seja constituído definitivamente e possa ser cobrado judicialmente.

• É necessária, portanto, a comprovação da remessa da comunicação ao contribuinte. Vale ressaltar que a simples alegação de que houve notificação não é suficiente. Deve haver prova documental de que o contribuinte foi efetivamente comunicado.

• A Certidão de Dívida Ativa (CDA), que é o documento utilizado para cobrar judicialmente o tributo não pago, goza de uma presunção de certeza, liquidez e exigibilidade. No entanto, essa presunção somente se mantém se o crédito foi regularmente constituído, o que implica, entre outras coisas, a notificação válida do contribuinte. A ausência de uma notificação válida afasta a presunção de certeza e liquidez da CDA. Assim, se não houver comprovação de que a notificação foi enviada ao contribuinte, o título executivo se torna inválido e não pode ser utilizado para a execução fiscal.


Dizer o Direito!